terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"Les miserables"


Em 1862, foi posto à estampa "Les miserables", hoje um clássico da literatura, da autoria de Victor Hugo. Embora celebrado actualmente, o livro, em cinco volumes, foi criticado na altura e retirando alguns comentários que se devem à atmosfera política contemporânea, uma das suas características mais evidentes é o excessivo sentimentalismo. Não é que o livro não coloque questões interessantes, relativas à moral, à redenção, ao primado da lei e à noção de Justiça (com maiúscula mesmo); mas seguindo os gostos de Victor Hugo, é de facto melodramática e exagerada, em situações e mesmo na escrita. Ninguém vai ao engano, pois estamos a falar do mesmo homem que escreveu "Notre Dame de Paris" (que alguns menos letrados conhecerão por "O corcunda de Notre-Dame") e se tornou num dos máximos expoentes do Romantismo na Europa. Não é à toa que no romance "Os Maias", João da Ega, sempre sóbrio, invectiva "Morte ao Romantismo e a todos os ídolos românticos, especialmente Victor Hugo". As suas obras são umas mistura de activismo social e emoção barroca, levada a extremos piedosos. No livro, Jean Valjean é basicamente um homem embrutecido pelo desprezo da sociedade e que apenas é salvo por um único bom acto de um bispo da província; e este género de eventos pequenos de significado grande vai-se repetindo durante o livro, amplificando o valor que a bondade inata do Homem tem mesmo numa sociedade desumanizante. Não surpreende que a Broadway, onde sentimentos exacerbados são apenas o quotidiano artístico, adoptasse o álbum-conceptual de um trio de franceses, seguindo "grosso modo" o enredo da obra do século XIX para um musical de sucesso estrondoso. Após a brincadeirinha de Susan Boyle ter reavivado  o interesse no espectáculo, demorou apenas três anos para que o filme chegasse aos cinemas.


A história simples mantém-se: Jean Valjean, um antigo condenado aos galés que esteve 19 anos presos por roubar uma pedaço de pão, é redimido pela acção de um pequeno bispo da província, mas continua a ser perseguido por um implacável oficial da lei chamado Javert. Durante anos, Valjean vai-se redimindo dos seus crimes, chegando a ser um homem de negócios bem sucedido, voltando a reencontrar Javert sem que este o reconheça. No entanto, quando despede injustamente uma das suas trabalhadoras, Fantine, e esta, por ser mãe solteira, se vira para a prostituição, morrendo no processo, Valjean adopta a sua filha, Cosette, como sua e foge para Paris, evitando Javert. Lá, tendo como pano de fundo eventos muito semelhantes à Comuna de Paris, o resto da história desenrola-se, entre os amores de Cosette por um revolucionário e a constante perseguição de Javert a Valjean. Logo para começar, isto é enredo a mais para um musical: "Les miserables" é um livro enorme e pensar que se pode adaptar o espírito do livro a um musical, com as complexidades que lhe dão valor, é um logro.O tipo de história que Victor Hugo escreveu presta-se aos excessos do género, mas o escritor francês tinha outro género de ideias em mente quando escreveu a obra, e praticamente nenhuma delas está transposta para o ecrã. Admito que muitos temas são orelhudos, e no fundo é isso que gera admiração entre os seus fãs, este é um filme compridíssimo, aborrecido e que morre depois da meia hora. Coincidência ou não, é que Anne Hathaway desaparece da história. Pela superior qualidade da sua performance, não é coincidência: o seu "I dreamed a dream" é uma vitória de verdade e honestidade no meio de uma emoção forçada de duas horas e quarenta e cinco minutos. Todo este tempo torna-se também penoso pela constante repetição de temas e cenas, onde apenas mudam os personagens e os seus lugares nelas.


O realizador Tom Hooper tem uma intenção clara, que é a de tornar "real" o teatro. A sua câmara mergulha na sujidade das ruas francesas e oferece grandes planos lindíssimos de cidades e locais naturais. É deliberado, até por colocar os actores a cantar "em directo" nos cenários. No entanto, Hooper quer também oferecer ao filme diferentes momentos emocionais que não passam só pela tristeza, e no entanto, quando o tenta, usa o mesmo estilo para todos os momentos. É uma repetição que torna a sua realização do filme banal, embora não seja má. Há ideias e intenções, mas Hooper não tem classe para mais. Este mesmo problema estava presente, por exemplo, em "The king's speech", mas num filme mais comedido, as falhas não se notam tanto. Aqui, falamos de um épico de grande escala cruzado com musical. O seu filme vai sendo salvo aqui e ali por actores  A história dos amantes jovens, interpretados por Amanda Seyfried e Eddie Redmayne, leva lágrimas ao tédio, mas Hugh Jackman, com o mesmo carisma animal que o tornou num Wolverine perfeito, tenta carregar toda a obra às costa, com a mesma força que fez de Valjean uma lenda. Jackman é perfeito por dar precisamente emoção e intenção às palavras e tons. Não é um cantor excepcional  mas nenhum grande cantor conseguiria atingir as emoções que faz ressoar. Os seus choques com Russel Crowe (cuja voz é discutível, mas a presença imponente como Javert é um contraponto bem conseguido com Jackman) são o único verdadeiro interesse do filme, precisamente por ser a relação que melhor desenha, no musical, um dos valores principais do livro: o confronto entre a possibilidade de redenção de um Deus maior e a irredutibilidade e preconceito que constrói as leis dos homens.


Em suma, um filme para quem já é fã deste musical. Quem não é fã sequer de musicais, também não será este a convencer-vos (quase três horas de filme cantado pede resistência extrema). Leitores de Victor Hugo, agarrem no livro: certamente que ver esta obra não será o vosso último desejo de condenados à morte.

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