quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Crónicas americanas


O declínio de Oliver Stone é um dos grandes mistérios do século XXI cinematográfico. Não é o objectivo deste artigo tentar explicar as razões desse fenómeno, mas seria omisso se ignorasse esta evidência, tão mais evidente pelo percurso formidável que o realizador traçou desde meados da década de 80 até ao final dos dez últimos anos do século XX. Embora tenha começado a carreira como argumentista (ganhando um Oscar por "Midnight Express" e arrepiado sensibilidades com a verdadeira ópera de serrabulho barroca que é "Scarface"), Oliver Stone adquiriu fama de imbatível com três clássicos feitos praticamente de rajada: "Plattoon", "Born in the 4th of July" e "Wall Street". Os dois primeiros, que começam e seguem a sua trilogia do Vietname (completada, em 1993, por "Heaven and Earth") remetem para a experiência mais marcante da vida de Oliver Stone, o artista: o período em que combate no Sudeste Asiático.


"Platoon" bebe directamente nessa vivência. O personagem de Charlie Sheen emula, por admissão do realizador, o próprio Stone, e no meio do caos da guerra, "Platoon" é no seu centro uma batalha moral, onde a humanidade e a bestialidade que se debatem dentro de cada soldado são representadas, respectivamente, pelos sargentos Elias e Barnes. "Platton" é reconhecido por captar a vertigem da guerra, mas é interessante como se centra não tanto na tensão, mas mais na desorientação e de como as regras da moral, no conflito, são viradas ao contrário. "Born in the 4th of July" continua este abandono das regras, no caso as da decência. O relato de Ron Kovic, um paraplégico que caminha do patriotismo convicto para o patriotismo enraivecido, zangado por ter sido abandonado e usado pelo país em nome do qual lutou no Vietname, é apenas a continuação lógica das próprias reflexões de Stone sobre o conflito, não deixando que a América esquecesse uma ferida que estaria aberta enquanto não a quisessem fechar convenientemente. "Wall street" é uma variação deste tema, de uma América que se ataca a si mesma, e aos próprios cidadãos. Através da figura de Gordon Gekko, um amoral e no entanto moralista profeta do capitalismo, convencido de que esta ideologia é a panaceia geral do mundo, o cataclismo financeiro que nos adoece hoje é entrevisto de forma quase sobrenatural. Oliver Stone é o cronista, por excelência, da moderna história americana, e do espírito nacional dos EUA. Um patriota inquisitivo, como o próprio se gosta de intitular.


Há, no entanto, outras três títulos maiores no colossal período da sua carreira (entre 1986 e 1995) onde fez um punhado de obras-primas que passam ao lado dos três clássicos acima referidos.Duas excepções surgem: "The doors" é um biopic razoável com uma excelente interpretação lá dentro; e "Natural born killers" é uma obra bruta, experimental e desafiante do ponto de vista das ideias, mas com uma desorientação visual nada comum no realizador, e que acaba por afectar um produto final com tanta coisa boa (os actores deste filme, usando o over-acting como instrumento natural e óbvio, são uma coisinha tão boa que vale a pena, apesar de tudo). Tudo o resto é maravilha; e com naturalidade sobressaem três obras que espelham não só o clássico traço de denúncia presente no cinema de Oliver Stone, como também um avassalador poder técnico para condensar informação que reduziria muitos argumentistas a destroços criativos.



"Salvador", de 1986, esteve durante muito tempo no armazém de um estúdio, mas com o sucesso de "Platoon", a sua estreia tornou-se lógica; e é um excelente filme, acompanhando o trajecto de dois homens, um jornalista e um seu amigo, no conturbado ano de 1980, em El Salvador. Num país dominado por uma ditadura militar protegida pelos EUA, e à beira de uma guerra civil graças à acção de guerrilhas esquerdistas, é uma denúnica exposé através do olhar do jornalista, Richard Boyle, que procura no meio do conflito uma história para vender, e acaba por atravessar a linha que o separa da ditadura e dos revolucionários com um equilibrismo perigoso, pronto a cair. James Woods é intenso como Boyle, mas fica na memória um fotógrafo de guerra interpretado por John Savage, cuja vida e os conflitos bélicos se misturam. Um verdadeiro drogado, mais viciado no pó dos campos de batalha do que noutros mais característicos da América Latina. Embora desenvolva também uma história mais pessoal de Boyle, que inclui uma mulher por quem se apaixona e o seu filho, o ponto central no filme é a denúncia das atrocidades, a exposição do lado secreto da política externa norte-americana e uma certa ideia ingénua dos salvadorenhos, e por arrasto todos os povos a viver as dores de parto do pós-colonialismo, como tendo uma vida perfeita se ao menos não houvesse ingerências.


"Nixon", realizado 11 anos depois, continua essa reflexão sobre a alma política norte-americana, não só na sua relação com o mundo, mas acima de tudo na relação que mantém com ela mesmo, e com a memória e esperanças dos norte-americanos. Tenta ser, ao mesmo tempo, uma biografia ponderada e equilibrada (em certos pontos, talvez demasiado) de Richard Nixon, umas das mais vilanizadas, e controversas figuras da histórias dos EUA. Um homem cujo ódio por si mesmo conseguia ser maior do que aqueles que os outros lhe tinham. Anthony Hopkins é portentoso ao subverter todas as expectativas de imitação que existem nos biopics: apesar de não se parecer fisicamente com Nixon, ele é-o, soa a ele, desempenha-o e mergulha-nos na complexidade que só os grandes vilões possuem. O facto de a figura do presidente ser, em simultâneo, uma das mais bem sucedidas na sua política e uma das mais desgraçadas no seu legado confunde-o com a própria América, o país onde o desequilíbrio entre a sua promessa fundacional e a sua existência prática serão das mais assimétricas no planeta. O filme não funciona totalmente como o esperado (conhecendo a tendência de Stone para perseguir teorias da conspiração e a história escondida da América, fica-se com a sensação de que se passou ao lado de uma enorme oportunidade de festa, mesmo que Watergate, a Baía dos Porcos, oligarcas texanos e o assassinato de Kennedy sejam mencionados ao longo do filme), mas Stone está mais à procura de Shakespeare do que de si mesmo; e isso acaba por dar os seus frutos. Ond "JFK", por exemplo, será um filme para chocar e enraivecer, "Nixon" é mais fascinante e uma obra que pretende ser lida de diversas maneiras, nas leituras várias que faz da História.


No entanto, na minha opinião, nenhum filme de Stone mostra o seu poder quanto "JFK", uma obra prodigiosa em todos os aspectos possíveis. A começar pela subversão. Uma regra não escrita do guionismo diz-nos que um bom filme deve ter 90% de acção e 10% de exposição. "JFK" não só subverte esta regra, como é bem sucedido gloriosamente, ainda por cima como thriller. Não escondo que é dos meus filmes preferidos, e considero-o, tecnicamente, o filme mais perfeito que já vi, mesmo sendo de 1991: usa mais de vinte tipos de filmes diferentes, 15 câmaras a filmar diferentes velocidades, e consegue enfiar várias vezes o Rossio na rua da Betesga, ao sobrepor 3 espaços temporais numa mesma cena. Usando a subjectividade do nosso pensamento, com o cruzamento de imagens de eventos referidos em diálogos no exacto momento que são trazidos à acção, aumenta o impacto imagético, e sobre põe palavra, imagem, som e, o que é raro, memória de uma forma única. Assisto a "JFK" duas vezes por ano, no mínimo, e nunca deixo de me surpreender com cada pormenor que descubro e com a imponência de uma obra de três horas e meia, em que passadas duas estamos no início de um julgamento e mesmo assim, o espectador não se cansa e quer mais. E as interpretações,mesmo que fugazes, todas perfeitas? A banda sonora de John Williams, uma das suas mais subvalorizadas? O crescendo de gritos em Dealey Plaza, que culmina num coro que clama pela alma perdida dos EUA? Um parágrafo não chega para pôr em palavras o puro poderio brutal de JFK, e a ausência de palavras obriga a que as imagens falem por si.



Não sei o que se passou com Oliver Stone desde o seu último verdadeiro grande filme, "Nixon". "Any given sunday" tem momentos de grande impacto, daqueles que se esperam do que foi, numa certa altura, um dos mais fascinantes cineastas norte-americanos. Continuou a experimentar géneros, a cumprir projectos longamente acalentados e a ceder ocasionalmente a oportunidades fáceis de ganhar dinheiro, permitindo a a estúdios explorar os seus sucessos e a sua própria fama de provocador político. No entanto, embora adormecido, não creio que Stone esteja morto artisticamente. A estreia, na próxima semana, de uma série documental que produz e realiza, "The untold story of the United States of America" pode ser a prova disso. Este é, afinal, o mais romântico cronista político dos Estados Unidos da América. truculento, polemista e gritando contra o seu próprio país as vezes suficientes para nos provar que o ama verdadeiramente.

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