sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Óscares: as previsões



A corrida dos Óscares deste ano foi começou por ser brutalmente emocionante, pois não se vislumbrava qualquer favorito. "Lincoln" tinha o maior pedigree entre aqueles que se suspeitavam ser nomeados, mas as várias flutuações de humor de críticas e indústria foram elevando outros heróis nesta epopeia ("Zero dark thirty", "Les miserables, "Django unchained") que foram perdendo gás por uma ou outra razão (denúncia da tortura, numa campanha calramente política e de jogos de bastidores que já vêm sendo hábito nestes prémios; a falta de unanimidade relativa à qualidade do filme; os problemas levantados de cada  vez que um filme aborda o racismo de maneira... pouco institucional, digamos) e à medida que "Lincoln" continuava a ser  o único filme com gás suficiente para chegar à recta da meta em primeiro (juntava a uma grande qualidade a espantosa proeza de ter chegado quase aos 200 milhões de dólares só na bilheteira norte-americana). No entanto, saíram as nomeações, no início de Janeiro, e embora "Lincoln" fosse, de facto, o filme mais nomeado, a questão mais falada era a não nomeação de Benn Affleck na categoria de realizador por "Argo". Impensável, até à altura. Aliás, Affleck tinha já sido referido pela DGA e nada fazia prevê-lo. Não era a primeira vez que existiria uma dissociação entre ambas as Academias, mas neste caso, fez surgir uma narrativa que conduziu e orientou toda a restante época de prémios até ao seu fim: Afflek, o David, roubado dos seus sonhos por "Lincoln", malvado Golias. Não interessa que, de facto, Affleck não tenha ficado de fora por causa deste filme, mas talvez pelas nomeações surpresa de Michael Haneke e, principalmente, Behn Zeitlin. O que fica para a História são os factos, e "Argo" passou de filme sólido, mas sem ser uma obra-prima, a matulão de premiação, limpando tudo o que houve para limpar até agora. Como em tudo o que é entretenimento, o que interessa nos Óscares é haver uma boa história; e poucas resultam melhor do que a do underdog que vence tudo e todos, apesar das suas fraquezas. Claro que em Holywood, ser produzido por George Clooney e realizado por Ben Affleck não é uma fraqueza. Mas esqueçam os factos: estamos na Quinta Dimensão.

Posto isto, deixo aqui as minhas previsões, tendo tudo em conta e, por uma vez, deixando de fora as estatísticas, pois estas tiraram férias este ano: o provável vencedor deste ano ganhará sem a nomeação de realizador, e isto apenas aconteceu uma vez em toda a história dos Óscares. Há categorias que ainda estão bastante divididas, mas nessas aplicarei uma dose de preferência pessoal. Se tiver que errar, que seja por uma questão de gosto: irei ao fundo no meu navio, e espero que não me apareça um tigre no salva-vidas. (Saltarei as curtas, que não percebo nada disso... mas gostava que ganhasse a "Paperman", na curta de animação)

Melhor canção: "Skyfall", por Adele e Paul Epworth
Melhor caracterização: "Les miserables"
Melhores efeitos visuais: "Life of Pi"
Melhor guarda-roupa: "Lincoln"
Melhor montagem sonora: "Skyfall"
Melhor som: "Skyfall"
Melhor cenografia: "Anna Karenina"
Melhor banda sonora: Mychael Danna, "Life of Pi"
Melhor direcção de fotografia: Claudio Miranda, "Life of Pi"
Melhor montagem: William Goldenberg, "Argo"
Melhor filme de animação: "Frankenweenie", Tim Burton
Melhor documentário: "Searching for sugarman"
Melhor filme estrangeiro: "Amour", Michael Haneke
Melhor argumento adaptado: Tony Kushner, "Lincoln"
Melhor argumento original: Mark Boal, "Zero dark thirty"
Melhor actor secundário: Tommy Lee Jones, "Lincoln" (merecia ganhar: Philip Seymour Hoffman, "The master")
Melhor actriz secundária: Anne Hathaway (merecia ganhar: Helen Hunt, "The sessions")
Melhor actor: Daniel Day-Lewis, "Lincoln"
Melhor actriz: Emanuelle Riva, "Amour"
Melhor realizador: Stevem Spielberg, "Lincoln" (se ganhasse Ang Lee, ficava contente na mesma)
Melhor filme: "Argo"






quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Life of Pi"


Não há muitas maneiras de abordar a espiritualidade no cinema. Na realidade, há apenas duas: ou se tem, ou não se tem. Na primeira, é-se honesto e sensível, e corre-se o risco de parecer ingénuo e sentimentalão  Na segunda, é-se duro, frio e pessimista, e corre-se o risco de ser louvado ao ponto do pindérico por Vasco Câmara. Entre estas duas áreas, alguns dos grandes mestres do cinema tentaram responder à principal pergunta que a espiritualidade (não falo de religião propositadamente) nos coloca: o que estamos aqui a fazer? Na verdade, é uma das questões mais importantes de toda a história da filosofia, e o cinema, como moderna arte narrativa por excelência, não podia fugir-lhe. É famosa a conversa silenciosa com Deus (ou que entidade seja) por Ingmar Bergman; Stanley Kubrick caminhou pelos confins da História e do Espaço à procura desse sentido na origem de tudo, e deve ter-se cruzado com Andrei Tarkovski, que também procurou o sentido na arte de Andrei Rublev. Woody Allen viu-se dividido entre as irmãs de Hanna, Martin Landau e até foi ao Inferno para procurar o Diabo. Bresson, Ferrara, Lars von Trier... No ano passado, Terrence Malick, um homem que tem perseguido o efémero com uma câmara de filmar praticamente desde que Sissy Spacek adquiriu a maioridade cinematográfica, trepou em 2011 a uma árvore só para nos mostrar que sem a orientação do espírito, o Homem está entregue à selva que é ele mesmo.


Nunca li o livro "Life of Pi", mas se for tão encantador e intrigante quanto a excelente adaptação cinematográfica que mereceu de Ang Lee, então tem direito a todos aqueles prémios enumerados na contra-capa! Ang Lee tem construído uma das mais interessantes carreiras cinematográficas do cinema recente, tendo atravessado praticamente todos os géneros cinematográficos, nunca recorrendo a atalhos, e quase sempre com sucesso. Mesmo quando se espalha ("Hulk), preenche esse falhanço com suficientes pormenores de interesse para revisitarmos outra vez o filme. Que outro realizador faria duas obras magníficas tão diferentes como "Crouching tiger, hidden dragon" e "Brokeback mountain"? Quase nenhum; e é precisamente esse talento todo o terreno que o tornou no realizador ideal ara adaptar a história de um rapaz indiano, Pi (diminutivo de Piscine) que se vê preso num barco com um oragontango, uma hiena, uma zebra e um tigre, depois de um naufrágio que matou a sua família. Não é fácil criar conflito dramático a partir de um cenário aparentemente tão inerte. No entanto, situações extremas de sobrevivência já nos deram belos filmes, como "Castaway". "Life of Pi" equilibra todos os problemas que vêm da condição de náufrago com a procura que Pi faz, desde criança, por Deus e por um sentido unificador da vida. O pai, um materialista, e a mãe, completamente espiritual, equilibram-se dentro de si, com vantagem para o lado materno. A experiência de Pi, à deriva no mar, é a metáfora precisa desse sentimento de incógnita em que estamos num oceano de dúvidas existenciais tão primárias quanto inegáveis. Mas no caso do filme, o que se discute não é tanto uma religião específica, mas sim a necessidade de acreditar, acima de tudo. Seja em deuses, seja na ciência, mas acreditar em algo. Sem isso, não se encontra qualquer motivação para avançar. Estar preso num barco com um tigre chamado Richard Parker é uma prova exagerada que força Pi a descobrir o que seja a motivá-lo a continuar, mas resulta: se um grande desafio, nunca nos podemos confrontar seriamente com aquilo que desejamos ou acreditamos. Fica também marcada a ideia de que a demanda espiritual é, no fundo, uma escolha narrativa. As mitologias e as religiões são a maneira como escolhemos explicar as nossas vidas de uma forma mais elegante. Existem histórias mitológicas que são, na verdade, poemas explicativos e descrevem as aventuras humanas da forma como gostamos de ver a nossa vida: algo transcendente. Um das diferenças entre a Ciência e a Religião reside neste preciso ponto: ou escolhemos contar uma histórias ou escolhemos os factos. O etéreo ou a secura da realidade. Ambas são mágicas, mas numa há revelação, e noutra o prazer de um mistério pendente.


Ang Lee faz parecer fácil um filme onde a quantidade de efeitos visuais utilizada empalideceria indivíduos menos zen. "Life of Pi" é um espantoso exercício visual, com pequenos momentos memoráveis (a sequência do naufrágio culmina com uma imagem, ao mesmo tempo trágica e bela, que deve ter feito James Cameron dar cabeçadas numa parede, de inveja), que assenta na soberba direcção de fotografia de Claudio Miranda. Tal como no seu trabalho anterior com David Fincher em "The curious case of Benjamin Button", Miranda executa o seu trabalho totalmente no mundo digital, ajustando e criando na pós-produção e o resultado é, tal como no filme mencionado, precisão de cor e sombra, e também um conjunto de imagens que não são nada fáceis de esquecer. Seria fácil, se o filme não tivesse um centro humano tão forte em Pi (uma prestação difícil, mas conseguida, do estreante Suraj Sharma, na fase de náufrago da história), deixarmo-nos absorver pelo espectáculo visual que Claudio Miranda e Ang Lee apresentam. A realização de Lee parece tão relaxada e segura de si que nem notamos na dificuldade de adaptação desta história. O realizador de Taiwan percebe que não adianta ter os pés na realidade: esta história presta-se ao voo da imaginação e ao tom de fábula, e é assim que constrói e apresenta a história. Pi é um homem contra os elementos, mas que não foge a maravilhar-se deles e com eles.Ao contrário da restrição emocional que povoa a obra de Lee, este filme é uma explosão constante de emoção, que serve bem a história. No fundo, o que Lee está a filmar é uma narrativa sobre as narrativas que contamos a nós mesmos. A delicada banda sonora de Mychael Danna serve esse propósito.


Embora inicialmente "Life of Pi" apresente a perspectiva de se transformar num exercício de ecumenismo religioso chato, é com facilidade que o espectador se apercebe que o tema principal do filme não está aí. O filme é sobre as narrativas que contamos a nós mesmos para continuarmos a boiar no oceano da vida. Da maneira como queremos interpretar a banalidade do quotidiano, transformando-a em sinais ou motivações. É sobre imaginação, não só a nossa, mas também a de Ang Lee, que constrói um belíssimo e permanente quadro em movimento. Um pouco como a vida que vamos desfiando todos os dias, portanto.


domingo, 3 de fevereiro de 2013

"Lincoln"



É muito difícil abordar um símbolo no cinema sem que o filme não se transforme numa hagiografia. Por serem símbolos, ultrapassam, na imaginação, o estatuto de homens e quase se tornam intocáveis. Um livro que estou a ler de momento, chamado "Irmãos", fala num capítulo na maneira como o senador Robert Kennedy se passeou pela frustrada campanha em busca da nomeação do Partido Democrata para a corrida presidencial em 1968: Kennedy encontrava multidões de pessoas que tinham viajado só para vê-lo e tocar-lhe. Uma jovem, a certa altura, consegue raspar-lhe com a mão e grita "Não vou lavar as mãos durante uma semana". Não estamos a falar de deuses ou estrelas: estamos a falar de um homem, um político ainda por cima. Mas pela força das suas ideias, alcança um lugar a que não se pode chegar sem um endeusamento popular. Abraham Lincoln ocupa um lugar quase divino no panteão da religião civil norte-americana. Com uma história curta como nação e sem o impulso inicial da religião como elemento aglutinador do patriotismo nacional (basta lembrar que a maioria daqueles que assinaram a Declaração da Independência era ateu, agnóstico ou pensador-livre), os norte-americanos foram-se apoiando em mitos civis que ainda hoje são constantemente referidos: os "Founding Fathers" ou a "Camelot", de Kennedy são dois exemplos recorrentes (doutor Fernando Catroga e leitores, peço imensa desculpa por este passeio escusado...). O cinema, como arte mais representativa do país, fixou esses símbolos, até um ponto onde se tornam documentos históricos mesmo quando falham em estabelecer a História real. Alguém disse que da mesma maneira que os antigos tinham os livros de História para aprender o passado, os norte-americanos têm os seus filmes; e Steven Spielberg tem sido uma parte importante da forma como a América se recorda do seu próprio percurso histórico. Desde "A cor púrpura" que o cineasta tem passeado pela história norte-americana questionado a sua identidade e aquilo que torna a experiência norte-americana como algo fascinante e frustrante em doses iguais. Poucas figuras representam bem essa dicotomia como Abraham Lincoln, um dos santos maiores no altar dos EUA, um homem constantemente representado pelo cinema como puro e perfeito, como uma bússola moral que deve guiar os cidadãos do país e alguém cuja moralidade intocável devemos apenas aspirar.


O refrescante de "Lincoln", o fabuloso novo filme de Steven Spielberg, é que o bom velho Abe não é representado como alguém acima de todos nós. No início do filme Abraham Lincoln é um homem admirado pelas suas tropas, que até decoram passagens dos seus discursos, mas que entretém dois soldados com uma anedota sobre barbeiros e é ensinado por um negro acerca das injustiças raciais presentes mesmo em palco de guerra. As palavras desse soldado, que recorre ao famoso discurso de Gettysburg, lançam o restante filme, na batalha que o presidente teve, contra muitos factores, em fazer passar a 13ª emenda que bania a escravatura da lei norte-americana. Apertado por uma mulher à beira de um ataque de nervos, pelo seu governo que o força a escolher entre a paz no país e esta emenda, e também pelo seus adversários no Senado, Lincoln atravessa tudo isto não como santo, mas como um homem de grande inteligência, conhecedor da maneira como as pessoas funcionam e que não hesita em recorrer às tácticas sujas da política para fazer passar uma ideia que ele considera não só moralmente aceitável, mas que, de facto, é uma jogada política para acabar com a economia sulista no futuro, deixando os seus adversários de Guerra Civil à mercê nos acordos de paz. O filme nem sequer pode ser considerado uma biografia, pois concentra-se, numa opção sábia, apenas neste período final da vida do antigo presidente norte-americano. Lincoln debate-se com o problema da escravatura ao longo do filme, descobrindo a sua própria moral durante o tempo em que tenta fazer passar esta emenda constitucional. De facto, o texto a ser passado não diz directamente que a diferença racial não existe: apenas que todos os homens são iguais perante a lei e que a escravatura é ilegal. Contrariamente a forçar uma  verdade universal de beatitude, Lincoln procura o compromisso para conseguir os seus objectivos. Debatendo-se com a quantidade de sangue que foi derramada em nome da igualdade, Lincoln recusa que esse sacrifício seja em vão, mas sabe equilibrar a sua abordagem, sem nunca descurar os seus objectivos. Ele não sabe isto desde que nasceu: descobre-o; e é maravilhoso como o filme celebra a inteligência dos homens na procura e concretização de ideias maiores do que eles mesmo. O filme é sobre valores, mas acima de tudo, sobre como apenas o entendimento entre os homens e a compreensão de que a História e o bem comum são maiores do que todos nós. Mesmo que para utilizar os poderes que lhe concedem o direito a passar esta emenda, Abraham Lincoln use subterfúgios jurídicos que roçam a ilegalidade.



As pressões para passar emenda vêm também da sua própria família: Mary Todd (interpretada como um pitbull bipolar por Sally Field, não se importando de ser odiada quando tal é necessário e verdadeiro) e os dois filhos, a criança Tad e o jovem Robert. A esposa de Lincoln, registada nos livros de História como uma constante fonte de loucura e conflito, chegando a ser internada num manicómio pelo filho mais velho no final dos seus dias, é capaz de acessos de apoio incondicional ao marido, mas também de crises de depressão profunda onde esquece tudo o resto e arrasta Lincoln à boleia para uma dor e uma culpa que vão para lá do que ele próprio pode mostrar publicamente. Há referências à morte, anterior aos eventos do filme, do filho Willie, de doença. Numa cena em particular, de uma intensidade que faz tremer o ecrã, Lincoln explode no seu estoicismo (acontecerá novamente no filme num momento decisivo) e mostra que não é aquela figura intocável e imune a tudo dos livros de História: é comido pela dor profunda da morte de um filho, mas não tem outro remédio senão engolir em seco e seguir em frente, porque os vivos interessam mais do que os mortos. Não é que não pese sobre si a culpa: apenas sabe, e é uma atitude sábia, de que não adianta grande coisa. É o reflexo da sua própria atitude em relação à Guerra Civil americana. É uma relação complexa entre Lincoln e Mary Todd, um casal que nutria um enorme amor um pelo outro, mas com confrontos igualmente intensos. 
Mas é através da forma como lida com os seus filhos que se vê o lado de Lincoln que tenta expiar aquilo que vê como os seus pecados (derivados da culpa de carregar quatro anos de Guerra Civil e os seus mortos ao colo). Robert, o mais velho, deseja ir para a guerra, que está a acabar, mas o seu pai está obviamente renitente, mesmo sabendo que outros pais enfrentaram a angústia de ver os seus filhos partir para os lamacentos campos de batalha sem saber se voltariam a ver os filhos. Lincoln como presidente, é provavelmente o único pai em toda a América que pode evitar que os seus filhos enfrentem directamente no conflito. Numa confrontação que tem tanto de humano e real que nos esquecemos quem está, de facto, a discutir, o pai é obrigado a entender o filho, e a fazer, também ele, um sacrifício. Refugia-se portanto no mais novo, Tad, em momentos onde Lincoln deixa de ser presidente e é verdadeiramente pai, em todo o seu amor, preocupação e até disciplina. Um momento em particular, onde o presidente leva o Tad às cavalitas, com este a dormir, é tão inesperado quanto tocante, quando deixa ver para lá da cortina da lenda um homem com as mesmas preocupações que todos os pais possuem. São pequenos instantes, pormenores, mas que desconstroem a maneira como se filmam "lendas".

   
O que realmente faz e eleva este filme para lá de uma peça de teatro bem filmada (uma acusação que tem sido feita por críticos e pessoas que tiveram um gosto pelo filme e por aquilo que o constrói bem diferente do meu) é a tríade que para mim é sagrada em qualquer filme: argumento, actores e realização. O guião de Tony Kushner é um portento em termos de linguagem e pesquisa de época: desde o diálogo fiel ao século XIX (já não se insulta como naquele tempo: ninckampooh é uma palavra de absoluta delícia), passando pelas citações várias que saem da boca de Lincoln naturalmente, que vão de Shakespeare à Bíblia, até à forma como torna excitante o processo político de passar uma emenda. O filme abre e fecha com excertos do discurso de Gettysburg, e está estruturado para que se perceba como se pode ir das palavras aos actos. Não é um texto nada fácil para os actores, principalmente porque assenta tanto em emoções, como em jargão e maquinação política; e no entanto, Kushner nunca é obscuro ou difícil de entender. Achei especialmente admirável a maneira como desmonta o raciocínio interno de Lincoln, decompondo-o, colocando-nos no interior da sua travessia moral. Claro que a estupenda interpretação de Daniel Day Lewis é um auxiliar poderoso. É repetitivo dizer que o actor irlandês habita os personagens, mas neste filme, esse dom adquire proporções fantasmagóricas. Como ele bem disse numa cerimónia de prémios, visto que foi um actor a matar Lincoln, nada mais justo que, de vez em quando, outros o tragam de volta à vida. Day-Lewis faz isso e mais além: reinterpreta a maneira como a história cravou a figura na nossa memória e dá-lhe uma dimensão humana em compaixão, esperteza e até maquiavelismo intencionado que não são comuns. Um pouco à maneira de Miguel Ângelo, dá vida a uma estátua de mármore, no caso uma gigante que se senta em Washington, no Capitólio. 
O que raramente se vê referido é a grande qualidade do elenco secundário. O principal segredo da naturalidade do filme vem precisamente dos actores que o compõem, relevando o que parece plano: se isto é uma aula de História, como alguns críticos acusam, então é a melhor aula de História que eu nunca poderei dar. Tommy Lee Jones usa as rugas rezingonas com que nasceu para o melhor dos efeitos como o intransigente Thaddeus Stevens; David Strathairn é pragmático, mas expirando uma moralidade quase incómoda e ingénua no papel de William Seward, o secretário de Estado de Lincoln; James Spader, John Hawkes e Tim Blake Nelson compõem um trio de lobbistas que se passeiam a corromper... perdão, convencer senadores para que votem positivamente na 13ª Emenda, actuando quase num filme de comédia à parte. Spader, em particular, parece Alan Shore de "Boston legal" transplantado no século XIX; Bruce McGill, breve, mas de memorável irascibilidade como Edwin Stanton; Elizabeth Reuben, como a criada da família Lincoln, a lembrança real do que representa a escravatura para aqueles que foram libertados... Não há uma única nota falta neste cast, e só Joseph Gordon-Levitt, que não vai mal, vacila de vez em quando. Quando se tem actores desta categoria, tem-se um filme.
Spielberg desaparece: não há sequências de grande virtuosismo, mas sim enquadramentos cuidados e planos delineados a servir quem realmente interessa. O aspecto cuidado e fixo dos enquadramentos, e quantidade de tons que Janusz Kaminski consegue encontrar no chiaro-scuro dos edifícios novecentinos dos EUA evocam não só a época, mas também um sentimento de peso e de ambiente. A direcção de fotografia é magnífica como de costume, John Williams continua a sua suite de presidentes norte-americanos (Nixon, JFK, John Quincy Adams) com temas discretos, mas evocativos. A sua composição para a peça que acompanha a personagem de Lincoln tem uma fulminante onda de tragédia que suscita oportunidades perdidas.Apoiado na sua equipa técnica de sempre, Spielberg aplica o seu dom maior de traduzir complexidade para entretenimento como poucos o conseguiriam: dando um ar de thriller político e moral a todo o processo de aprovação da 13ª Emenda, Spielberg faz pensar, sentir e divertir numa inpossibilidade aparente; e no entanto, resulta.


Do que tenho lido por aí, "Lincoln" tem sido equiparado a uma simples peça de teatro filmado. Apelidam-nos de aborrecido, porque se fala muito; desinteressante, porque é sobre os "pretinhos"; que só vale pela interpretação de Daniel Day-Lewis. No mesmo ano em que sai um outro filme bem mais cínico sobre a escravatura, e que é louvado ad nauseam e, a meu ver, injustamente, esta recepção a "Lincoln" mostra algumas coisas. Em primeiro, que o público espectador de hoje já não suporta facilmente a sinceridade emocional directa no cinema. Em segundo, que, como tenho dito várias vezes, o gosto e o respeito pela palavra dita estão em vias de extinção. Em terceiro, que Spielberg, como sempre, é olhado de lado por um público que raras vezes se apercebe do que aprendeu com ele enquanto crescia; semelhante fenómeno está a dar-se com Scorsese, o que me preocupa bastante. Por último, que já não reconhecemos uma obra-prima quando ela aparece porque estamos distraídos demais com outro fogo de artifício que vai surgindo. Não tenho medo de dizê-lo: esta é uma obra-prima, e juntamente com "Munich", o melhor filme de Spielberg desde 2000. É sobre política, sobre ética, sobre moral e rebate nos sinos das igrejas uma obrigação de rever a maneira como pensamos os valores mais importantes, e de como o mundo não é um preto e branco. Ao contrário das reacções que tem suscitado, evoca compromisso; e felizmente, também tem despertado a importância do diálogo, de falarmos e chegarmos a entendimento. Tudo isto num filme de duas horas e meia onde se fala muito, e que me deixa, ainda assim,com um défice de palavras e ideias.