É muito difícil abordar um símbolo no cinema sem que o filme não se transforme numa hagiografia. Por serem símbolos, ultrapassam, na imaginação, o estatuto de homens e quase se tornam intocáveis. Um livro que estou a ler de momento, chamado "Irmãos", fala num capítulo na maneira como o senador Robert Kennedy se passeou pela frustrada campanha em busca da nomeação do Partido Democrata para a corrida presidencial em 1968: Kennedy encontrava multidões de pessoas que tinham viajado só para vê-lo e tocar-lhe. Uma jovem, a certa altura, consegue raspar-lhe com a mão e grita "Não vou lavar as mãos durante uma semana". Não estamos a falar de deuses ou estrelas: estamos a falar de um homem, um político ainda por cima. Mas pela força das suas ideias, alcança um lugar a que não se pode chegar sem um endeusamento popular. Abraham Lincoln ocupa um lugar quase divino no panteão da religião civil norte-americana. Com uma história curta como nação e sem o impulso inicial da religião como elemento aglutinador do patriotismo nacional (basta lembrar que a maioria daqueles que assinaram a Declaração da Independência era ateu, agnóstico ou pensador-livre), os norte-americanos foram-se apoiando em mitos civis que ainda hoje são constantemente referidos: os "Founding Fathers" ou a "Camelot", de Kennedy são dois exemplos recorrentes (doutor Fernando Catroga e leitores, peço imensa desculpa por este passeio escusado...). O cinema, como arte mais representativa do país, fixou esses símbolos, até um ponto onde se tornam documentos históricos mesmo quando falham em estabelecer a História real. Alguém disse que da mesma maneira que os antigos tinham os livros de História para aprender o passado, os norte-americanos têm os seus filmes; e Steven Spielberg tem sido uma parte importante da forma como a América se recorda do seu próprio percurso histórico. Desde "A cor púrpura" que o cineasta tem passeado pela história norte-americana questionado a sua identidade e aquilo que torna a experiência norte-americana como algo fascinante e frustrante em doses iguais. Poucas figuras representam bem essa dicotomia como Abraham Lincoln, um dos santos maiores no altar dos EUA, um homem constantemente representado pelo cinema como puro e perfeito, como uma bússola moral que deve guiar os cidadãos do país e alguém cuja moralidade intocável devemos apenas aspirar.
O refrescante de "Lincoln", o fabuloso novo filme de Steven Spielberg, é que o bom velho Abe não é representado como alguém acima de todos nós. No início do filme Abraham Lincoln é um homem admirado pelas suas tropas, que até decoram passagens dos seus discursos, mas que entretém dois soldados com uma anedota sobre barbeiros e é ensinado por um negro acerca das injustiças raciais presentes mesmo em palco de guerra. As palavras desse soldado, que recorre ao famoso discurso de Gettysburg, lançam o restante filme, na batalha que o presidente teve, contra muitos factores, em fazer passar a 13ª emenda que bania a escravatura da lei norte-americana. Apertado por uma mulher à beira de um ataque de nervos, pelo seu governo que o força a escolher entre a paz no país e esta emenda, e também pelo seus adversários no Senado, Lincoln atravessa tudo isto não como santo, mas como um homem de grande inteligência, conhecedor da maneira como as pessoas funcionam e que não hesita em recorrer às tácticas sujas da política para fazer passar uma ideia que ele considera não só moralmente aceitável, mas que, de facto, é uma jogada política para acabar com a economia sulista no futuro, deixando os seus adversários de Guerra Civil à mercê nos acordos de paz. O filme nem sequer pode ser considerado uma biografia, pois concentra-se, numa opção sábia, apenas neste período final da vida do antigo presidente norte-americano. Lincoln debate-se com o problema da escravatura ao longo do filme, descobrindo a sua própria moral durante o tempo em que tenta fazer passar esta emenda constitucional. De facto, o texto a ser passado não diz directamente que a diferença racial não existe: apenas que todos os homens são iguais perante a lei e que a escravatura é ilegal. Contrariamente a forçar uma verdade universal de beatitude, Lincoln procura o compromisso para conseguir os seus objectivos. Debatendo-se com a quantidade de sangue que foi derramada em nome da igualdade, Lincoln recusa que esse sacrifício seja em vão, mas sabe equilibrar a sua abordagem, sem nunca descurar os seus objectivos. Ele não sabe isto desde que nasceu: descobre-o; e é maravilhoso como o filme celebra a inteligência dos homens na procura e concretização de ideias maiores do que eles mesmo. O filme é sobre valores, mas acima de tudo, sobre como apenas o entendimento entre os homens e a compreensão de que a História e o bem comum são maiores do que todos nós. Mesmo que para utilizar os poderes que lhe concedem o direito a passar esta emenda, Abraham Lincoln use subterfúgios jurídicos que roçam a ilegalidade.
As pressões para passar emenda vêm também da sua própria família: Mary Todd (interpretada como um pitbull bipolar por Sally Field, não se importando de ser odiada quando tal é necessário e verdadeiro) e os dois filhos, a criança Tad e o jovem Robert. A esposa de Lincoln, registada nos livros de História como uma constante fonte de loucura e conflito, chegando a ser internada num manicómio pelo filho mais velho no final dos seus dias, é capaz de acessos de apoio incondicional ao marido, mas também de crises de depressão profunda onde esquece tudo o resto e arrasta Lincoln à boleia para uma dor e uma culpa que vão para lá do que ele próprio pode mostrar publicamente. Há referências à morte, anterior aos eventos do filme, do filho Willie, de doença. Numa cena em particular, de uma intensidade que faz tremer o ecrã, Lincoln explode no seu estoicismo (acontecerá novamente no filme num momento decisivo) e mostra que não é aquela figura intocável e imune a tudo dos livros de História: é comido pela dor profunda da morte de um filho, mas não tem outro remédio senão engolir em seco e seguir em frente, porque os vivos interessam mais do que os mortos. Não é que não pese sobre si a culpa: apenas sabe, e é uma atitude sábia, de que não adianta grande coisa. É o reflexo da sua própria atitude em relação à Guerra Civil americana. É uma relação complexa entre Lincoln e Mary Todd, um casal que nutria um enorme amor um pelo outro, mas com confrontos igualmente intensos.
Mas é através da forma como lida com os seus filhos que se vê o lado de Lincoln que tenta expiar aquilo que vê como os seus pecados (derivados da culpa de carregar quatro anos de Guerra Civil e os seus mortos ao colo). Robert, o mais velho, deseja ir para a guerra, que está a acabar, mas o seu pai está obviamente renitente, mesmo sabendo que outros pais enfrentaram a angústia de ver os seus filhos partir para os lamacentos campos de batalha sem saber se voltariam a ver os filhos. Lincoln como presidente, é provavelmente o único pai em toda a América que pode evitar que os seus filhos enfrentem directamente no conflito. Numa confrontação que tem tanto de humano e real que nos esquecemos quem está, de facto, a discutir, o pai é obrigado a entender o filho, e a fazer, também ele, um sacrifício. Refugia-se portanto no mais novo, Tad, em momentos onde Lincoln deixa de ser presidente e é verdadeiramente pai, em todo o seu amor, preocupação e até disciplina. Um momento em particular, onde o presidente leva o Tad às cavalitas, com este a dormir, é tão inesperado quanto tocante, quando deixa ver para lá da cortina da lenda um homem com as mesmas preocupações que todos os pais possuem. São pequenos instantes, pormenores, mas que desconstroem a maneira como se filmam "lendas".
O que realmente faz e eleva este filme para lá de uma peça de teatro bem filmada (uma acusação que tem sido feita por críticos e pessoas que tiveram um gosto pelo filme e por aquilo que o constrói bem diferente do meu) é a tríade que para mim é sagrada em qualquer filme: argumento, actores e realização. O guião de Tony Kushner é um portento em termos de linguagem e pesquisa de época: desde o diálogo fiel ao século XIX (já não se insulta como naquele tempo: ninckampooh é uma palavra de absoluta delícia), passando pelas citações várias que saem da boca de Lincoln naturalmente, que vão de Shakespeare à Bíblia, até à forma como torna excitante o processo político de passar uma emenda. O filme abre e fecha com excertos do discurso de Gettysburg, e está estruturado para que se perceba como se pode ir das palavras aos actos. Não é um texto nada fácil para os actores, principalmente porque assenta tanto em emoções, como em jargão e maquinação política; e no entanto, Kushner nunca é obscuro ou difícil de entender. Achei especialmente admirável a maneira como desmonta o raciocínio interno de Lincoln, decompondo-o, colocando-nos no interior da sua travessia moral. Claro que a estupenda interpretação de Daniel Day Lewis é um auxiliar poderoso. É repetitivo dizer que o actor irlandês habita os personagens, mas neste filme, esse dom adquire proporções fantasmagóricas. Como ele bem disse numa cerimónia de prémios, visto que foi um actor a matar Lincoln, nada mais justo que, de vez em quando, outros o tragam de volta à vida. Day-Lewis faz isso e mais além: reinterpreta a maneira como a história cravou a figura na nossa memória e dá-lhe uma dimensão humana em compaixão, esperteza e até maquiavelismo intencionado que não são comuns. Um pouco à maneira de Miguel Ângelo, dá vida a uma estátua de mármore, no caso uma gigante que se senta em Washington, no Capitólio.
O que raramente se vê referido é a grande qualidade do elenco secundário. O principal segredo da naturalidade do filme vem precisamente dos actores que o compõem, relevando o que parece plano: se isto é uma aula de História, como alguns críticos acusam, então é a melhor aula de História que eu nunca poderei dar. Tommy Lee Jones usa as rugas rezingonas com que nasceu para o melhor dos efeitos como o intransigente Thaddeus Stevens; David Strathairn é pragmático, mas expirando uma moralidade quase incómoda e ingénua no papel de William Seward, o secretário de Estado de Lincoln; James Spader, John Hawkes e Tim Blake Nelson compõem um trio de lobbistas que se passeiam a corromper... perdão, convencer senadores para que votem positivamente na 13ª Emenda, actuando quase num filme de comédia à parte. Spader, em particular, parece Alan Shore de "Boston legal" transplantado no século XIX; Bruce McGill, breve, mas de memorável irascibilidade como Edwin Stanton; Elizabeth Reuben, como a criada da família Lincoln, a lembrança real do que representa a escravatura para aqueles que foram libertados... Não há uma única nota falta neste cast, e só Joseph Gordon-Levitt, que não vai mal, vacila de vez em quando. Quando se tem actores desta categoria, tem-se um filme.
Spielberg desaparece: não há sequências de grande virtuosismo, mas sim enquadramentos cuidados e planos delineados a servir quem realmente interessa. O aspecto cuidado e fixo dos enquadramentos, e quantidade de tons que Janusz Kaminski consegue encontrar no chiaro-scuro dos edifícios novecentinos dos EUA evocam não só a época, mas também um sentimento de peso e de ambiente. A direcção de fotografia é magnífica como de costume, John Williams continua a sua suite de presidentes norte-americanos (Nixon, JFK, John Quincy Adams) com temas discretos, mas evocativos. A sua composição para a peça que acompanha a personagem de Lincoln tem uma fulminante onda de tragédia que suscita oportunidades perdidas.Apoiado na sua equipa técnica de sempre, Spielberg aplica o seu dom maior de traduzir complexidade para entretenimento como poucos o conseguiriam: dando um ar de thriller político e moral a todo o processo de aprovação da 13ª Emenda, Spielberg faz pensar, sentir e divertir numa inpossibilidade aparente; e no entanto, resulta.
Do que tenho lido por aí, "Lincoln" tem sido equiparado a uma simples peça de teatro filmado. Apelidam-nos de aborrecido, porque se fala muito; desinteressante, porque é sobre os "pretinhos"; que só vale pela interpretação de Daniel Day-Lewis. No mesmo ano em que sai um outro filme bem mais cínico sobre a escravatura, e que é louvado ad nauseam e, a meu ver, injustamente, esta recepção a "Lincoln" mostra algumas coisas. Em primeiro, que o público espectador de hoje já não suporta facilmente a sinceridade emocional directa no cinema. Em segundo, que, como tenho dito várias vezes, o gosto e o respeito pela palavra dita estão em vias de extinção. Em terceiro, que Spielberg, como sempre, é olhado de lado por um público que raras vezes se apercebe do que aprendeu com ele enquanto crescia; semelhante fenómeno está a dar-se com Scorsese, o que me preocupa bastante. Por último, que já não reconhecemos uma obra-prima quando ela aparece porque estamos distraídos demais com outro fogo de artifício que vai surgindo. Não tenho medo de dizê-lo: esta é uma obra-prima, e juntamente com "Munich", o melhor filme de Spielberg desde 2000. É sobre política, sobre ética, sobre moral e rebate nos sinos das igrejas uma obrigação de rever a maneira como pensamos os valores mais importantes, e de como o mundo não é um preto e branco. Ao contrário das reacções que tem suscitado, evoca compromisso; e felizmente, também tem despertado a importância do diálogo, de falarmos e chegarmos a entendimento. Tudo isto num filme de duas horas e meia onde se fala muito, e que me deixa, ainda assim,com um défice de palavras e ideias.
Gostei muito do filme. Achei um luxo. O guarda roupa, a fotografia, as interpretações e o argumento. Estava um bocado receoso porque não gosto quando o Spielberg começa a ser sentimentalão com as histórias que quer contar e ao contrário do que a cena inicial fazia prever, conteve-se. Achei a música do John Williams um bocado piegas o que tirava força a muitas cenas. Por outro lado, toda a sequência da votação ficou àquem do resto do filme, mas isso são pequenos pormenores dum filme luxuoso e, na minha opinião, um dos melhores do Spielberg.
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