terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Gravity"


O Espaço é a última fronteira na realidade e na ficção; no cinema então, isso é mais verdade do que pensamos. Por estranho que pareça, quanto mais os efeitos visuais avançaram, com a Idade do Digital a poder replicar quase tudo o que se queira (excepto, mais vezes do que poucas, a Realidade), a tela espacial vai-se tornando falsa e o espectador, naquela parte de trás da mente que "sabe tudo", tem a plena noção de que é tudo fabricado num computador, e não se impressiona. Se pensarmos nos filmes desenrolados fora do planeta Terra que nos impressionaram pela representação credível do abismo vazio da dança das estrelas e o vácuo que as envolve, temos de recuar algumas décadas. "2001" é incontornável, mas também "Alien" e toda a saga original "Star Wars" que, com efeitos práticos e quase prescindindo de computadores, deixaram como legado a imagem colectiva que possuímos daquilo que é a imensidão espacial. É estranho que a tecnologia digital não tenha conseguido criar verdade nessa zona, quando já ultrapassou barreiras aparentemente mais impossíveis (os recentes "The curious caso of Benjamin Button", "Avatar" e "Life of Pi" criaram vida humana e animal onde esta não existe, e com uma realidade tal que a definição de virtual se torna impossível de escrever). O problema acerca do Espaço é que quase ninguém lá esteve. O que sabemos é o que vemos daqui e o que vemos já não existe.



"Gravity", de Alfonso Cuáron, é assombroso em muitas coisas, mas aquela em que se torna pioneiro é na representação dessa área que não conhecemos por fora, mas cuja música escutamos dentro de nós quando observamos as estrelas. É uma obra de ficção, mas não do tipo científica: o tempo é o Presente; a realidade é a de um trio de astronautas que reparam a estação espacial Hubble, até que o erro de cálculo no lançamento de um míssil russo lança uma luta pela sobrevivência; e a ciência é quase sempre credível, na representação do Espaço, nas opções dadas aos personagens para o avanço da história e no respeito pelas leis da Física. É notório que Cuáron respeita, e muito, a exploração espacial, e este filme é a demonstração desse amor através daquilo que um cineasta pode fazer: levar aos espectadores uma experiência real e visceral de presença  fora da Terra. Demorou quatro anos a fazê-lo, e teve de desenvolver muitas das tecnologias aplicadas (numa entrevista, disse que esta devia ser a primeira obra de cinema onde a pós-produção ficou pronta antes da pré-produção), mas o esforço técnico compensou. O primeiro plano dá o mote: fixo num ponto algures entre as galáxias, mostra uma imagem da curvatura do planeta, com o familiar tom azul, onde se distinguem montanhas, formas de continentes (no caso, a América), nuvens, e até esporádicos olhos de luz chamados cidades. Ao longe, muito subtilmente e acompanhando a órbita do planeta, surge um space shuttle no nosso campo de visão ainda fixo, e está estampada na nossa mente a imensidão do Cosmos, o quão pequenos somos dentro dele e o nosso respeito pelo que é o principal antagonista do filme, de facto, estabelece-se. Começa aqui um "long shot" de 20 minutos que é tão espantoso quanto demiurgo no seu pormenor e execução (algures, num local acima deste, Kubrick aplaude), e balança a calma do espaço com o choque da tragédia iminente e que deixa dois astronautas à deriva no Espaço, quase sem apoios, reféns da gravidade que dá titulo ao filme; e incrivelmente, o filme só fica mais tenso a partir daqui.


George Clooney e principalmente Sandra Bullock são os protagonistas do drama que se segue, com dois personagens diferentes na atitude perante o espaço: Matt Kowalsky é um vivido astronauta que se sente à vontade no silêncio do Universo, como se estivesse na sala de estar, e parece estar preparado para a incerteza de qualquer imprevisto; Ryan Stone, na sua primeira viagem espacial, está nervosa e leva consigo uma mágoa que transforma o seu conflito com o Espaço numa luta com a sua própria vida. Ambos os actores estão excelentes, e o filme, longe de querer entrar em considerações sobre ciência espacial ou a mecânica do Espaço, é afinal intimista na maneira como coloca toda a acção de hora e meia de filme numa questão antiga na dramaturgia: a superação do ser humano perante as adversidades e o renascimento depois de estas estarem ultrapassadas. À deriva no Espaço, Ryan Stone vê-se obrigada a salvar as suas duas vidas: aquela que a situação de crise coloca em risco, e a que trazia já quando descolou da Terra, como se fosse uma fuga ao que a traumatiza. Essa salvação apenas pode ser conseguida querendo viver e voltar a Casa, aquela casa que está permanentemente à vista debaixo dela. Num filme em que a Tecnologia domina, esta atenção ao factor humano, afinal o que diminui tantas obras de grande espectáculo ou simplesmente passadas no Espaço, é o engrandece, e mostra a diferença entre um tarefeiro e um realizador. A cinematografia de Cuáron é dominada por histórias que raramente perdem essa ligação humana com o espectador, mesmo quando o pano de fundo sejam futuros distópicos ou escolas de feitiçaria. É por isso que a acção decorre fluida, sem pausas e sobressaltos, nunca forçada na desenrolar dos problemas. O maior triunfo é sempre o humano.


Alfonso Cuáron e Emanuel Lubezki triunfam não só na recriação visual do Espaço, mas acima de tudo trazendo o seu ritmo: as personagens movem-se numa câmara lenta permanente, como se a estadia no Espaço fosse uma vida suspensa e tudo tivesse o sue movimento próprio. Como se o Espaço fosse uma outra realidade, e é aqui que Cuáron reúne o seu virtuosismo técnico e a história emocional do filme num só ponto, cruzando com referências da nossa própria memória visual de espectadores, seja citando filmes, como criando imagens arquetípicas, como um plano que fica na memória onde Stone regride toda a sua vida em poucos segundos que talvez sejam óbvios, mas não deixam de ter impacto por isso. Cuáron construiu a sua fama de virtuoso com os seus planos longos e sem cortes aparentes. Neste filme, ele ri-se disso, e constrói uma série de planos que duram dezenas de minutos, e nunca parecem forçados. Stone e Kowalsky estão livres, e nunca se viu tanta liberdade em qualquer outro filme. Há uma graciosidade no movimento, uma naturalidade na acção, e um sentimento de estarmos a viver e não a ver. É a visão dos dois mexicanos que triunfa, um respeito pelo poder da imagem e das sensações que se vivem numa sala de cinema. Não há atropelos: há visceralidade que começa no ecrã e acaba em nós. É, afinal, o trabalho do realizador: fazer o coração bater e saltar batidas através dos nossos olhos.


A gravidade é o mote do filme, e no caso de Ryan Stone (Sandra Bullock atrai tão naturalmente o nosso interesse que é um casting quase óbvio) aquilo que a faz regressar à Terra. É o julgamento através do fogo, e a força humana como um prodígio tão grande como o assombro do Espaço. "Gravity" coloca o homem na sua devida dimensão perante o Cosmos, mas sem nunca reduzir a sua capacidade de superação e de ter em si a força e a fé que faz mover montanhas. Talvez não mova planetas, mas é aquilo que impele cada pequeno mundo individual a superar-se e a encontrar-se. Estar perdido no Espaço pode significar reencontrar-se onde o coração está. É essa a nossa casa, afinal.

2 comentários:

  1. Saúdo o regresso.
    Já ando tão farto dos blockbusters que este ano só vi o Elysium (gostei bastante por sinal). Um Verão inteiro sem ver cinema americano :) Agora graças a Alfonso Cuaron e só por causa dele porque gosto bastante dos seus filmes, não só vou ver um blockbuster com a Sandra Bullock como até, para a loucura ser completa, o vou ver em Imax. Agora em 3D é que não consigo!

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    1. Adorava poder ver em Imax, mas ao preço do bilhete teria de acrescentar o da viagem. Saía-me caro :) Acho que este foi o primeiro filme que vi em 3D (e antes deste, tinha visto dois, salvo erro "Thor" e "Pacific Rim") e foi só neste que encontrei uma justificação para o uso dessa tecnologia. Acredito que a experiência em IMAX seja de uma brutalidade superlativa! É um facto que o panorama blockbuster deste ano anda pobre... Ainda não vi o "Man of steel", mas até agora, nada que tenha tido impacto

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