domingo, 8 de dezembro de 2013

"Killer Joe"


Depois de abrir a carreira com dois dos filmes mais influentes nos respectivos géneros ("The french connection" e "The exorcist"), o sempre controverso e belicoso William Friedkin provou o sabor da hubris quando o seu remake "Sorcerer" falhou nas bilheteiras e, como ele próprio admite na sua auto-biografia, como filme. A partir daí, a sua carreira entrou num declínio que o levou a fazer filmes perfeitamente dispensáveis durante as décadas de 80 e 90 (salvo "Living and dying in LA"). No entanto, o facto de ter sido esquecido levou-o a um renascimento artístico em 2006, com o excelente e perturbante "Bug", e 2011 trouxe-nos o seu melhor filme em anos, que leva a perturbação a níveis muito mais íntimos, crus e, digo-o pessoalmente e com a certeza de poder despertar diagnósticos de psicopatia, de diversão inesperada. "Killer Joe" é uma obra onde a presença e a disfuncionalidade e da demência parecem ser requisitos pré-criação das vidas dos personagens, e não há grande explicação para a sua existência; no entanto, a unidade familiar que faz funcionar uma trama base de um filme noir (a morte de um parente é planeada pela necessidade de resgatar o dinheiro de uma apólice de seguro de vida) escolheu para si mesma o outro lado da moralidade como casa, com um quintal pleno de más decisões e algum azar no jogo que a vida lhes deu. Esta parte da história serve apenas para aguçar a entrada do personagem homónimo do título do filme, um untuoso, pervertido e assustador Matthew McConaughey, que deita pela janela qualquer tipo de preconceitos que o espectador tenha sobre ele logo na primeira vez que surge de corpo inteiro: uma serpente batendo à porta, com o seu Stetson, as suas luvas e a atitude de Leviathan devorador de almas. O filme sobrevive da vitalidade da sua interpretação, pois a intriga é aquilo que é, e tem poucas reviravoltas. No entanto, a presença de Killer Joe Cooper, em cada cena, é o sinal de que algo de muito errado tem todas as hipóteses de acontecer, e normalmente acontece. Friedkin filma McConaughey da mesma forma que filmou o demónio Pasuzu em "The exorcist", com a mesma atracção pelo desdém daquilo que é correcto ou que possa haver de Bem. Numa família onde esse compasso é a música da sua existência (Thomas Haden Church, um pau mandado que assenta sempre sobre areias movediças; Emile Hirsch, com um complexo incestuoso latente e uma paleta de escolhas de vida dignas de um guaxinim cego; Gina Gershon, como a mulher fatalmente a quem fatalmente calha ser mulher para mal dos seus pecados e regozijo de Killer Joe), só Dottie, que Juno Temple desenha como a imprevisibilidade nesta mecânica de podridão e a única pessoa razoavelmente pura (e que por isso serve de justificação a actos medonhos), escapa praticamente sem mácula. Um mundo a preto e branco, e onde apenas parece existir isso.



Há filmes cujas limitações são facilmente esquecidas quando a realização as afina, e "Killer Joe" conta com um William Friedkin que no Texas profundo redescobre o seu talento que usou para filmar paisagens urbanas e casas assombradas dos subúrbios. O desenho da família que precisa de dinheiro é batido e esquecível, mas a interpretação de McConaughey e a intransigência de Friedkin em filmar violência e sexo com uma potência desinteressada fazem de "Killer Joe" um filme com deses de fabuloso elevadas. Este ano, ouvirão falar muitas vezes do ressurgimento de Matthew McConaughey. Não se deixem iludir: ele começa neste filme.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Much ado about nothing"


Há uns anos, no seu documentário "Looking for Richard" sobre a sua adaptação da peça "Richard III" em Nova Iorque, Al Pacino queixava-se de que os actores norte-americanos tinham um medo quase patológico de Shakespeare e das suas peças. Era como se este pertencesse aos britânicos exclusivamente, até mesmo na língua, pois o inglês isabelino é em muitos aspectos um idioma bem diferente do actual com os seus "thous" e "thees" e "dousts". É por isso que "Much ado about nothing", de Joss Whedon, deve ser saudado como uma quebra nesse ciclo de receio: não é raro Hollywood adaptar o bardo, mas as suas tentativas são entregues quase sempre nas mãos de ingleses, e as poucas que não o são ("Romeo + Juliet", de Baz Luhrmann, ou "O", de Tim Blake Nelson são dois exemplos) modernizam a intriga, colocando-a nos nossos dias. Há pouco tempo, em "Coriolanus", Ralph Fiennes seguiu pelo mesmo caminho. O sucesso não depende exclusivamente das modernizações, mas mesmo a justificação de que os temas tratados pelo eterno William são universais e intemporais soam quase sempre a algum medo de abordar Shakespeare em colisão frontal, ou pelo menos mantendo no cinema a mise-en-scene que Shakespeare empresta às suas peças no palco. "Romeo + Juliet" resulta muito bem no cinema (é barroco, pictórico, sempre em desequilíbrio emocional, o que, afinal, é uma das marcas das peças de Shakespeare), mas é mais Luhrmaniano do que Shakespereano e a certa altura, quase vemos o dramaturgo a fugir a tanta velocidade que nem o delirium tremens do australiano consegue acompanhá-lo!

A tentativa de Joss Whedon, se bem que enveredando por um cenário moderno (e emanar o doce odor das hipsterianas sebes), mantém o texto original na íntegra, e opta por um encenação quase sempre rigorosa e quase teatral, respeitando o fluir do texto. Nem sempre é bem conseguido, e se Whedon pudesse evitar a demasia de câmara ao ombro, o seu filme ficava a ganhar com isso. No entanto, o orçamento era apertado e havia apenas 12 dias para filmar tudo. Ajuda que o elenco seja composto quase na totalidade por habitués de Whedon, e se os actores mantêm um nível no geral bom, há destaques: Amy Acker e Alexis Denisoff, como Beatrice e Benedick, a dupla "Odeio-o/Amo-o" funcionam na perfeição, até porque já têm experiência de par romântico na série "Angel", e Reed Diamond e Nathan Fillion são um absoluto prazer de observar nos seus papéis de Guarda de Messina e Don Pedro, respectivamente, manobrando o texto de Shakespeare com um tamanho à vontade e naturalismo que por momentos esquecemos que aquele inglês não é aquele que estamos habituados a ouvir. "Much ado about nothing" é mãe da comédia romântica moderna de enganos, com temas como o amor, a honra e até o valor da família, tendo um segundo acto quase a cair na tragédia, e é agradável como Whedon consegue a parte trágica do filme não afunde a leveza do mesmo, fazendo com que tudo seja tão natural como a vida. É uma boa adaptação, de um homem experimentado (Whedon realizou, durante vários anos, dramatizações de Shakespeare entre amigos) e de quem não se quer deixar encurralar pelo esmagador sucesso de "The avengers". Assim como o filme traça o duelo de wittiness entre o Beatrice e Bennedick, dois grandes mestres do one-liner e da frase curta encontram-se em 2013, e o melhor é que nenhum perde e ambos saem a ganhar. Não é uma obra-prima, mas é uma adaptação que relê Shakespeare em termos que não perdem o amor do britânico pela palavra, nem a paixão que Whedon tem para desconstruir seres humanos e as suas paixões. Do século XVI ao século, XXI, afinal, é aquilo que deve ser o alvo maior de um argumentista.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Gravity"


O Espaço é a última fronteira na realidade e na ficção; no cinema então, isso é mais verdade do que pensamos. Por estranho que pareça, quanto mais os efeitos visuais avançaram, com a Idade do Digital a poder replicar quase tudo o que se queira (excepto, mais vezes do que poucas, a Realidade), a tela espacial vai-se tornando falsa e o espectador, naquela parte de trás da mente que "sabe tudo", tem a plena noção de que é tudo fabricado num computador, e não se impressiona. Se pensarmos nos filmes desenrolados fora do planeta Terra que nos impressionaram pela representação credível do abismo vazio da dança das estrelas e o vácuo que as envolve, temos de recuar algumas décadas. "2001" é incontornável, mas também "Alien" e toda a saga original "Star Wars" que, com efeitos práticos e quase prescindindo de computadores, deixaram como legado a imagem colectiva que possuímos daquilo que é a imensidão espacial. É estranho que a tecnologia digital não tenha conseguido criar verdade nessa zona, quando já ultrapassou barreiras aparentemente mais impossíveis (os recentes "The curious caso of Benjamin Button", "Avatar" e "Life of Pi" criaram vida humana e animal onde esta não existe, e com uma realidade tal que a definição de virtual se torna impossível de escrever). O problema acerca do Espaço é que quase ninguém lá esteve. O que sabemos é o que vemos daqui e o que vemos já não existe.



"Gravity", de Alfonso Cuáron, é assombroso em muitas coisas, mas aquela em que se torna pioneiro é na representação dessa área que não conhecemos por fora, mas cuja música escutamos dentro de nós quando observamos as estrelas. É uma obra de ficção, mas não do tipo científica: o tempo é o Presente; a realidade é a de um trio de astronautas que reparam a estação espacial Hubble, até que o erro de cálculo no lançamento de um míssil russo lança uma luta pela sobrevivência; e a ciência é quase sempre credível, na representação do Espaço, nas opções dadas aos personagens para o avanço da história e no respeito pelas leis da Física. É notório que Cuáron respeita, e muito, a exploração espacial, e este filme é a demonstração desse amor através daquilo que um cineasta pode fazer: levar aos espectadores uma experiência real e visceral de presença  fora da Terra. Demorou quatro anos a fazê-lo, e teve de desenvolver muitas das tecnologias aplicadas (numa entrevista, disse que esta devia ser a primeira obra de cinema onde a pós-produção ficou pronta antes da pré-produção), mas o esforço técnico compensou. O primeiro plano dá o mote: fixo num ponto algures entre as galáxias, mostra uma imagem da curvatura do planeta, com o familiar tom azul, onde se distinguem montanhas, formas de continentes (no caso, a América), nuvens, e até esporádicos olhos de luz chamados cidades. Ao longe, muito subtilmente e acompanhando a órbita do planeta, surge um space shuttle no nosso campo de visão ainda fixo, e está estampada na nossa mente a imensidão do Cosmos, o quão pequenos somos dentro dele e o nosso respeito pelo que é o principal antagonista do filme, de facto, estabelece-se. Começa aqui um "long shot" de 20 minutos que é tão espantoso quanto demiurgo no seu pormenor e execução (algures, num local acima deste, Kubrick aplaude), e balança a calma do espaço com o choque da tragédia iminente e que deixa dois astronautas à deriva no Espaço, quase sem apoios, reféns da gravidade que dá titulo ao filme; e incrivelmente, o filme só fica mais tenso a partir daqui.


George Clooney e principalmente Sandra Bullock são os protagonistas do drama que se segue, com dois personagens diferentes na atitude perante o espaço: Matt Kowalsky é um vivido astronauta que se sente à vontade no silêncio do Universo, como se estivesse na sala de estar, e parece estar preparado para a incerteza de qualquer imprevisto; Ryan Stone, na sua primeira viagem espacial, está nervosa e leva consigo uma mágoa que transforma o seu conflito com o Espaço numa luta com a sua própria vida. Ambos os actores estão excelentes, e o filme, longe de querer entrar em considerações sobre ciência espacial ou a mecânica do Espaço, é afinal intimista na maneira como coloca toda a acção de hora e meia de filme numa questão antiga na dramaturgia: a superação do ser humano perante as adversidades e o renascimento depois de estas estarem ultrapassadas. À deriva no Espaço, Ryan Stone vê-se obrigada a salvar as suas duas vidas: aquela que a situação de crise coloca em risco, e a que trazia já quando descolou da Terra, como se fosse uma fuga ao que a traumatiza. Essa salvação apenas pode ser conseguida querendo viver e voltar a Casa, aquela casa que está permanentemente à vista debaixo dela. Num filme em que a Tecnologia domina, esta atenção ao factor humano, afinal o que diminui tantas obras de grande espectáculo ou simplesmente passadas no Espaço, é o engrandece, e mostra a diferença entre um tarefeiro e um realizador. A cinematografia de Cuáron é dominada por histórias que raramente perdem essa ligação humana com o espectador, mesmo quando o pano de fundo sejam futuros distópicos ou escolas de feitiçaria. É por isso que a acção decorre fluida, sem pausas e sobressaltos, nunca forçada na desenrolar dos problemas. O maior triunfo é sempre o humano.


Alfonso Cuáron e Emanuel Lubezki triunfam não só na recriação visual do Espaço, mas acima de tudo trazendo o seu ritmo: as personagens movem-se numa câmara lenta permanente, como se a estadia no Espaço fosse uma vida suspensa e tudo tivesse o sue movimento próprio. Como se o Espaço fosse uma outra realidade, e é aqui que Cuáron reúne o seu virtuosismo técnico e a história emocional do filme num só ponto, cruzando com referências da nossa própria memória visual de espectadores, seja citando filmes, como criando imagens arquetípicas, como um plano que fica na memória onde Stone regride toda a sua vida em poucos segundos que talvez sejam óbvios, mas não deixam de ter impacto por isso. Cuáron construiu a sua fama de virtuoso com os seus planos longos e sem cortes aparentes. Neste filme, ele ri-se disso, e constrói uma série de planos que duram dezenas de minutos, e nunca parecem forçados. Stone e Kowalsky estão livres, e nunca se viu tanta liberdade em qualquer outro filme. Há uma graciosidade no movimento, uma naturalidade na acção, e um sentimento de estarmos a viver e não a ver. É a visão dos dois mexicanos que triunfa, um respeito pelo poder da imagem e das sensações que se vivem numa sala de cinema. Não há atropelos: há visceralidade que começa no ecrã e acaba em nós. É, afinal, o trabalho do realizador: fazer o coração bater e saltar batidas através dos nossos olhos.


A gravidade é o mote do filme, e no caso de Ryan Stone (Sandra Bullock atrai tão naturalmente o nosso interesse que é um casting quase óbvio) aquilo que a faz regressar à Terra. É o julgamento através do fogo, e a força humana como um prodígio tão grande como o assombro do Espaço. "Gravity" coloca o homem na sua devida dimensão perante o Cosmos, mas sem nunca reduzir a sua capacidade de superação e de ter em si a força e a fé que faz mover montanhas. Talvez não mova planetas, mas é aquilo que impele cada pequeno mundo individual a superar-se e a encontrar-se. Estar perdido no Espaço pode significar reencontrar-se onde o coração está. É essa a nossa casa, afinal.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Elysium


A ficção científica é um género quase tão antigo quanto o próprio cinema (perguntem a Meliés), mas continua a ser visto como algo de menor ou pouco desenvolvido. É comum acusar obras do género como sendo apenas desfiles de efeitos visuais e naves e extraterretres e robôs e coisas que tais. Percebo a facilidade com que se trata todo o um género por esta bitola, mas não consigo deixar de vê-lo como um preconceito. É facilitismo e preguiça não passar para lá da ideia preconcebida, e se há muitas razões para não se gostar de um tipo de filme, acusá-lo de ser apenas "uma coisa que não faz pensar", como já me disseram, diz mais sobre o interlocutor do que sobre o próprio género. O que há mais no Cinema são filmes excelentes e complexos que envolvem o espaço, naves espaciais, extraterretres e efeitos visuais até fartar: "2001", "Solaris", "Blade Runner", "Alien", The day the earth stood still", "Close encounters of the third kind", "La jetee"... Dão para todos os gostos e todos os géneros, e se alguém se quiser chegar à frente e dizer que qualquer um destes é simplista, está perfeitamente à vontade para fazer figura de urso.


Há também algo comum a estes filmes que dei como exemplos: o mais recente tem mais de 25 anos. É um facto que embora os efeitos especiais tenham avançado nas últimas duas décadas, isso não correspondeu ao aumento de qualidade no género. Há excepções, ainda assim: Paul Verhoeven fez "Robocop", "Total Recall" e "Starship troopers", todos vistos, em maior ou menor grau, como clássicos de ficção científica; "Matrix" deu a origem a trilogia horrível, mas o primeiro continua a ser uma referência, embora a minha relação com a obra do Wachowsky é ambivalente, quanto muito. Há "Brazil", "Aliens", "Back to the future", mas quando mais nos aproximamos dos nossos dias, o número vai diminuindo. São raríssimos os "Eternal sunshine of the spotless mind" e "Donnie Darko". Há quatro anos, no entanto, no meio de outras pérolas interessantes, embora não excelentes, que começaram a saltirar dos filmes de orçamento mais modesto, surgiu um exemplar que chamou a atenção, e com razão. Pegando na clássica alegora de ficção cientifica dos "alienígenas" como espelho dos problemas da sociedade, criava um mundo de appartheid localizado num país onde não muito tempo antes uma segregação do género existira na realidade. Só que desta vez, os extraterrestres eram os proscritos. "District 9" revelou Neil Blomkampo como um daqueles realizadores que conseguia criar um mundo coerente, estruturado e cool com pouco orçamento, e que ainda assim conseguia ter uma história substantiva para contar. Não era necessariamente subtil, mas cada um com o seu estilo, e o de Blomkamp é bruto como tudo na denúncia social que veicula.



2013 marca o seu regresso com "Elysium", uma distopia futurista onde o que resta da Terra é uma paisagem destruída e caótica, e uma sociedade de pantanas onde o Homem é o predador do Homem. Os ricos já cá não moram e emigraram para Elysium, uma utopia em forma de estação espacial anelar no espaço. Um operário, Max da Costa (Matt Damon), fica doente e vê-se obrigado a chegar a esta estação, onde existem máquinas que curam e restauram tudo. O problema é que pelos padrões elíseos, ele não é cidadão, e a Secretária de Defesa Delacourt (Jodie Foster) tem uma política contra emigrantes particularmente rígida. Portanto, nada de subtilezas aqui: a guerra de classes social mantém-se nesse futuro não muito distante, onde os pobres são cada vez mais pobres, e a opulência dos ricos leva a que estes vejam os menos favorecidos como coisas, e não seres humanos. O Sistema de Saúde está completamente obliterado, as pessoas sujeitam-se a tudo por um emprego e as mínimas aspirações de vida estão vedadas a quem não tem dinheiro. A face do Estado são so robôs que patrulham o que resta do planeta, e oferecem apenas frieza e incompreensão pelas necesidades das pessoas, e mesmo características humanas como o sentido de humor. Este género de ficçao científica orgânica é aquilo que de melhor o filme tem para dar, porque permite uma identificação quase imediata com este mundo e deita para longe qualquer acusação de que a ficção científica tem muito pouco a dizer sobre o mundo das pessoas. Do vestuário utlizado à caótica e destruída urbanização, há algo que neste munto que também é nosso, e mesmo o luxo do Elysium dos mais abastados é reconhecível. Parece Beverly Hills, mas multiplicado. No entanto, nunca entramos suficientemente no mundo de Elysium para perceber exactamente quem são estas pessoas que aparentemente abanodnaram a sua humanidade no planeta Terra para, em troca, beberem champanhe à vontade num ambiente filtrado a Purel. Entrevemos o seu nojo a qualquer coisa que possa vir lá de baixo num personagem que é dono de uma multinacional e trabalha na Terra, mas para um lugar que é referido várias vezes como um sonho inatingível e um antro de gente má, o nosso deslumbre não acontece e a compreensão que possamos ter do modo de vida dos seus habitantes é quase nula. Há uma ténue intriga política, mas sem se entende muito bem a sua profundidade. Dá a ideia de que Blomkamp aposta naquilo que é bom, ou seja o design de produção, e passa ao lado de pormenores que poderiam enriquecer bem mais o seu mundo e a sua mensagem. O filme até nem é muito longo, marcando abaixo das duas horas, e podia-se muito bem substituir uma segunda metade de desilusão (já lá vamos) por substância que tornaria "Elysium" um filme excelente e realmente digno de nota.


Onde o filme é realmente bom é naquilo em que "District 9" também era: há, tecnologicamente, um mundo que foi pensado consistentemente e com criatividade, desde os diversos tipos de naves conforme as suas utilidades e ocupantes, equipamento militar, fabril, material robótico e a estação especial Elysium, desenhada pelo grande Syd Mead. Mesmo que uma parte maior se desenrole numa favela global a que chamamos Terra (e não é por acaso que todos os actores filme chamados a preenchê-la, à excepção de Matt Damon, sejam latinos: Alice Braga, Diego Luna, Wagner Moura...), o mundo de "Elysium" é palpável e estruturado, sendo que a estação especial em si, embora nunca nos apareça num detalhe milimétrico, surge como o símbolo de um paraíso em forma de estrela, longe na sua proximidade com os sonhos dos personagens. Embora isto preencha os espaços do filme, está é acometido de outros problemas para além do já referido: as cenas de acção que envolvam luta são mal filmadas (e não pode ser acaso que um dos editores de "Elysium" seja Lee Smith, o colaborador habitual de Christopher Nolan, outro realizador com um olho para a grande escala, mas pitosga no que toca à luta corpo corpo) e isto estraga quase por completo toda a componente de acção do filme. Não é que de, resto, haja má acção (Blmokamp demonstra saber, por exemplo, como tratar bólides espaciais e voadores, com classe e pinta), mas estraga a experiência de divertimento do filme de maneira irrecuperável. Saber filmar acção é, continua a ser, um dom que não está ao alcance de muitos. É pena, porque há um vilão odiável e há Matt Damon com exo esqueleto de robô Tinha tudo para pancada de meia-noite e nada disso se concretiza. Embora seja corajoso na apresentação de ideias políticos polémicos, os seus personagens têm densidade de seda: Matt Damon faz de um mexicano com um sonho, Alice Braga recorre, novamente, no papel de anjo em tempo de ruína e Shalto Copley é o mercenário alucinado e psicopata que gosta de crianças. É por isso que depois de construir o filme com interesse em questões sociais e políticas, a segunda parte é lançada como acção non stop, sem grande estilo, com muito flash e pouca recompensa emocional. O que é realmente um desperdício. Isso e não colocar Jason Bourne e o capitão Nascimento a varrer robôs.

Fica aquela sensação de que se teve aqui uma bela oportunidade de filmaço, e de repente, por uma qualquer razão (provavelmente querer misturar dois filmes e tê-lo feito da maneira errada) se passou ao lado. Não é que "Elysium" seja mau: é uma filme razoável, que cativa o espectador a segui-lo e com suficiente encanto visual para ainda assim atenuar os efeitos da má realização já referida. Fica, no entanto, a meio caminho dos campos elíseos, um pouco acima do caos

segunda-feira, 29 de abril de 2013

"Iron man 3"


"Iron man 3", estranhamente para um filme de estúdio, é logo de caras um filme típico do realizador, Shane Black: passa-se no Natal californiano, uma parte importante do filme é protagonizada por duplas, há piadas relativamente à superficialidade das mulheres-norte americanas, os diálogos são fluentes em espírito macho, há uma voice-over omnisciente não só do filme mas também das regras do género, e a história é mais labirítinca que um cubo de Rubik. Nada mau para uma franchise comercial. É curioso que se até agora a Marvel tinha confiado os seus filmes a actores (Jon Favreau, Kenneth Branagh) ou a tarefeiros competentes (Louis Leterrier e Joe Johnston), a escolha agora parece recair nos argumentistas, com Joss Whedon em "The avengers" e agora Black. São duas vozes distintas, mas muito fortes e que reflectem precisamente a sua personalidade nos seus próprios filmes. Este é, facilmente, o melhor filme dos três, por vários motivos: é bastante bem escrito (há escolhas de história que os fãs vão questionar, mas eu interesso-me por algo como espectador, não como xiita) em estrutura e diálogo, é inteligente o suficiente para experimentar espaços novos onde Tony Stark pode ser ele mesmo e não um tipo num fato de metal, e existe finalmente uma intriga vilanesca digna desse nome. Para além disso, o guião faz o favor de dar tempo de antena a personagens mais secundários, o que permite a Don Cheadle uma oportunidade de finalmente aparecer em verve e esplendor. Há uma dinâmica interessante entre o seu personagem e Tony Stark, o que é tipico de Black, e imprime um dinamismo muito feroz ao terceiro acto.

A história coloca Tony Stark contra um terrorista global chamado Mandarim, cujo desdém pelo satã americano não o coloca longe de Bin Laden, e é atravessada peor um projecto chamado EXTREMIS que só visto o filme é que se percebe o que é. Mesmo que a temática da destruição seja permanente (afinal, os eventos do filme passam-se pouco tempo depois dos "The avengers", onde Stark morre durante uns momentos, sendo o impacto do momento uma permanente em "Iron Man 3"), a diversão é garantida. O potencial dessa diversão aumenta quando Stark emparelha com um miúdo que se revela não um aborrecimento para o filme, mas sim a oportunidade de criar uma intriga de fundo humano entre dois órfãos e solitários. É por aqui, e por Pepper Potts, que bate o coração do filme e o torna o melhor desta franchise até à data. Claro que tem defeitos (a sequência final, embora espectacular, está sempre à beira de ser OTT), mas compensa isso com excelentes sequências de acção e especialmente um lado McGyver latente num Tony Stark que na pele de Robert Downey Jr se transformou num modelo de herói de cinema atípico, mas que é mais forte do que qualquer das suas armaduras.

terça-feira, 23 de abril de 2013

"To the wonder"


"To the wonder", de Terrence Malick, contém tudo aquilo que os devotos do norte-americano adoram (a escolha impecável de banda sonora erudita, um instinto arrasador na composição de imagens, a atracção por um lado panteísta na visão do mundo, a recorrência da Natureza como reflexo do Homem) e os críticos apontam como suas falhas (a deriva narrativa, a utilização dos corpos como simples sombras, imagens gratuitas e que pouco têm a ver com o acto de contar uma história). No entanto, e mesmo não sendo um filme tão bom quanto o maravilhoso "Tree of life", esta obra de Malick centra-se na temática do Amor, e é aí que alcança os seus maiores triunfos, mostrando o realizador como alguém que tem um olho para o pequeno gesto, o quotidiano, os suspiro e tudo aquilo que realmente demonstra o amor entre dois seres humanos, para lá do lugar comum e dos gestos batidos. Essa atenção torna o primeiro terço de "To the wonder" numa experiência de paixão, onde a relação entre duas pessoas pode ser filmada com o mesmo poder da criação do Universo. Os filmes de Malick não funcionam como argumentos estruturados, mas sim experiências em que é pedido ao espectador que se concentre em temas em vez de histórias: os personagens vivem, mas muito mais em filosofia e arquétipos silenciosos,  passeando pelo mundo e perguntando-se (e a Deus, a elusiva personagem-mor que Malick persegue desde "Tree of life" com uma obsessão militante e sensível) o que é a vida. Se em "Tree of life" esta pergunta foi feita em termos mais gerais (colocando duas ideias em confronto), aqui o enfoque é no Amor como força que ao mesmo tempo nos torna divinos, e tão potente na sua destruição que nos leva a bestialidades ou ausências de humanidade punitivas. É novamente a Graça vs Natureza, mas percorrendo a initmidade da pele, e os espaços da alma onde vamos de adulto a criança no espaço de uma carícia. Foi aquilo de que mais gostei em "To the wonder". Um pedaço da mensagem que envolve a procura desesperada que um sacerdote faz de sinais divinos é talvez escusada, mas apresenta o personagem mais interessante, que Javier Bardem exibe com semblante carregado e o ar de quem arrasta 300 árvores às costas. As figuras que experimentam o amor na forma mais conhecida são diferentes entre si (sem no entanto nos ficarem muito na memória, tirando Olga Kurylenko, à força da exposição de um retrato próximo das musas românticas do cinema indie), mas há na profissão do personagem de Ben Affleck que analisa solos para determinar a contaminação dos mesmos por parte de empresas, um sinal daquilo que o homem ideal de Malick procura: a salvação da obra de Deus.

Atentando na agenda de Terrence Malick (o habitualmente recluso realizador tem agendados 4 filmes para um mesmo número de anos), não é difícil ver em "To the wonder" uma peça adicional no largo mosaico que parece formar-se, e esta procura pela salvação da obra de Deus é o tema recorrente até agora. Os dois primeiros filmes deste quarteto são coerentes estilistica e tematicamente, e será das esperas mais interessantes dos próximos anos saber o que nos reserva Malick na sua permanente busca da imanência do universo no vento, nas folhas e na irracionalidade dos nossos próprios movimentos.

quinta-feira, 14 de março de 2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Óscares: as previsões



A corrida dos Óscares deste ano foi começou por ser brutalmente emocionante, pois não se vislumbrava qualquer favorito. "Lincoln" tinha o maior pedigree entre aqueles que se suspeitavam ser nomeados, mas as várias flutuações de humor de críticas e indústria foram elevando outros heróis nesta epopeia ("Zero dark thirty", "Les miserables, "Django unchained") que foram perdendo gás por uma ou outra razão (denúncia da tortura, numa campanha calramente política e de jogos de bastidores que já vêm sendo hábito nestes prémios; a falta de unanimidade relativa à qualidade do filme; os problemas levantados de cada  vez que um filme aborda o racismo de maneira... pouco institucional, digamos) e à medida que "Lincoln" continuava a ser  o único filme com gás suficiente para chegar à recta da meta em primeiro (juntava a uma grande qualidade a espantosa proeza de ter chegado quase aos 200 milhões de dólares só na bilheteira norte-americana). No entanto, saíram as nomeações, no início de Janeiro, e embora "Lincoln" fosse, de facto, o filme mais nomeado, a questão mais falada era a não nomeação de Benn Affleck na categoria de realizador por "Argo". Impensável, até à altura. Aliás, Affleck tinha já sido referido pela DGA e nada fazia prevê-lo. Não era a primeira vez que existiria uma dissociação entre ambas as Academias, mas neste caso, fez surgir uma narrativa que conduziu e orientou toda a restante época de prémios até ao seu fim: Afflek, o David, roubado dos seus sonhos por "Lincoln", malvado Golias. Não interessa que, de facto, Affleck não tenha ficado de fora por causa deste filme, mas talvez pelas nomeações surpresa de Michael Haneke e, principalmente, Behn Zeitlin. O que fica para a História são os factos, e "Argo" passou de filme sólido, mas sem ser uma obra-prima, a matulão de premiação, limpando tudo o que houve para limpar até agora. Como em tudo o que é entretenimento, o que interessa nos Óscares é haver uma boa história; e poucas resultam melhor do que a do underdog que vence tudo e todos, apesar das suas fraquezas. Claro que em Holywood, ser produzido por George Clooney e realizado por Ben Affleck não é uma fraqueza. Mas esqueçam os factos: estamos na Quinta Dimensão.

Posto isto, deixo aqui as minhas previsões, tendo tudo em conta e, por uma vez, deixando de fora as estatísticas, pois estas tiraram férias este ano: o provável vencedor deste ano ganhará sem a nomeação de realizador, e isto apenas aconteceu uma vez em toda a história dos Óscares. Há categorias que ainda estão bastante divididas, mas nessas aplicarei uma dose de preferência pessoal. Se tiver que errar, que seja por uma questão de gosto: irei ao fundo no meu navio, e espero que não me apareça um tigre no salva-vidas. (Saltarei as curtas, que não percebo nada disso... mas gostava que ganhasse a "Paperman", na curta de animação)

Melhor canção: "Skyfall", por Adele e Paul Epworth
Melhor caracterização: "Les miserables"
Melhores efeitos visuais: "Life of Pi"
Melhor guarda-roupa: "Lincoln"
Melhor montagem sonora: "Skyfall"
Melhor som: "Skyfall"
Melhor cenografia: "Anna Karenina"
Melhor banda sonora: Mychael Danna, "Life of Pi"
Melhor direcção de fotografia: Claudio Miranda, "Life of Pi"
Melhor montagem: William Goldenberg, "Argo"
Melhor filme de animação: "Frankenweenie", Tim Burton
Melhor documentário: "Searching for sugarman"
Melhor filme estrangeiro: "Amour", Michael Haneke
Melhor argumento adaptado: Tony Kushner, "Lincoln"
Melhor argumento original: Mark Boal, "Zero dark thirty"
Melhor actor secundário: Tommy Lee Jones, "Lincoln" (merecia ganhar: Philip Seymour Hoffman, "The master")
Melhor actriz secundária: Anne Hathaway (merecia ganhar: Helen Hunt, "The sessions")
Melhor actor: Daniel Day-Lewis, "Lincoln"
Melhor actriz: Emanuelle Riva, "Amour"
Melhor realizador: Stevem Spielberg, "Lincoln" (se ganhasse Ang Lee, ficava contente na mesma)
Melhor filme: "Argo"






quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Life of Pi"


Não há muitas maneiras de abordar a espiritualidade no cinema. Na realidade, há apenas duas: ou se tem, ou não se tem. Na primeira, é-se honesto e sensível, e corre-se o risco de parecer ingénuo e sentimentalão  Na segunda, é-se duro, frio e pessimista, e corre-se o risco de ser louvado ao ponto do pindérico por Vasco Câmara. Entre estas duas áreas, alguns dos grandes mestres do cinema tentaram responder à principal pergunta que a espiritualidade (não falo de religião propositadamente) nos coloca: o que estamos aqui a fazer? Na verdade, é uma das questões mais importantes de toda a história da filosofia, e o cinema, como moderna arte narrativa por excelência, não podia fugir-lhe. É famosa a conversa silenciosa com Deus (ou que entidade seja) por Ingmar Bergman; Stanley Kubrick caminhou pelos confins da História e do Espaço à procura desse sentido na origem de tudo, e deve ter-se cruzado com Andrei Tarkovski, que também procurou o sentido na arte de Andrei Rublev. Woody Allen viu-se dividido entre as irmãs de Hanna, Martin Landau e até foi ao Inferno para procurar o Diabo. Bresson, Ferrara, Lars von Trier... No ano passado, Terrence Malick, um homem que tem perseguido o efémero com uma câmara de filmar praticamente desde que Sissy Spacek adquiriu a maioridade cinematográfica, trepou em 2011 a uma árvore só para nos mostrar que sem a orientação do espírito, o Homem está entregue à selva que é ele mesmo.


Nunca li o livro "Life of Pi", mas se for tão encantador e intrigante quanto a excelente adaptação cinematográfica que mereceu de Ang Lee, então tem direito a todos aqueles prémios enumerados na contra-capa! Ang Lee tem construído uma das mais interessantes carreiras cinematográficas do cinema recente, tendo atravessado praticamente todos os géneros cinematográficos, nunca recorrendo a atalhos, e quase sempre com sucesso. Mesmo quando se espalha ("Hulk), preenche esse falhanço com suficientes pormenores de interesse para revisitarmos outra vez o filme. Que outro realizador faria duas obras magníficas tão diferentes como "Crouching tiger, hidden dragon" e "Brokeback mountain"? Quase nenhum; e é precisamente esse talento todo o terreno que o tornou no realizador ideal ara adaptar a história de um rapaz indiano, Pi (diminutivo de Piscine) que se vê preso num barco com um oragontango, uma hiena, uma zebra e um tigre, depois de um naufrágio que matou a sua família. Não é fácil criar conflito dramático a partir de um cenário aparentemente tão inerte. No entanto, situações extremas de sobrevivência já nos deram belos filmes, como "Castaway". "Life of Pi" equilibra todos os problemas que vêm da condição de náufrago com a procura que Pi faz, desde criança, por Deus e por um sentido unificador da vida. O pai, um materialista, e a mãe, completamente espiritual, equilibram-se dentro de si, com vantagem para o lado materno. A experiência de Pi, à deriva no mar, é a metáfora precisa desse sentimento de incógnita em que estamos num oceano de dúvidas existenciais tão primárias quanto inegáveis. Mas no caso do filme, o que se discute não é tanto uma religião específica, mas sim a necessidade de acreditar, acima de tudo. Seja em deuses, seja na ciência, mas acreditar em algo. Sem isso, não se encontra qualquer motivação para avançar. Estar preso num barco com um tigre chamado Richard Parker é uma prova exagerada que força Pi a descobrir o que seja a motivá-lo a continuar, mas resulta: se um grande desafio, nunca nos podemos confrontar seriamente com aquilo que desejamos ou acreditamos. Fica também marcada a ideia de que a demanda espiritual é, no fundo, uma escolha narrativa. As mitologias e as religiões são a maneira como escolhemos explicar as nossas vidas de uma forma mais elegante. Existem histórias mitológicas que são, na verdade, poemas explicativos e descrevem as aventuras humanas da forma como gostamos de ver a nossa vida: algo transcendente. Um das diferenças entre a Ciência e a Religião reside neste preciso ponto: ou escolhemos contar uma histórias ou escolhemos os factos. O etéreo ou a secura da realidade. Ambas são mágicas, mas numa há revelação, e noutra o prazer de um mistério pendente.


Ang Lee faz parecer fácil um filme onde a quantidade de efeitos visuais utilizada empalideceria indivíduos menos zen. "Life of Pi" é um espantoso exercício visual, com pequenos momentos memoráveis (a sequência do naufrágio culmina com uma imagem, ao mesmo tempo trágica e bela, que deve ter feito James Cameron dar cabeçadas numa parede, de inveja), que assenta na soberba direcção de fotografia de Claudio Miranda. Tal como no seu trabalho anterior com David Fincher em "The curious case of Benjamin Button", Miranda executa o seu trabalho totalmente no mundo digital, ajustando e criando na pós-produção e o resultado é, tal como no filme mencionado, precisão de cor e sombra, e também um conjunto de imagens que não são nada fáceis de esquecer. Seria fácil, se o filme não tivesse um centro humano tão forte em Pi (uma prestação difícil, mas conseguida, do estreante Suraj Sharma, na fase de náufrago da história), deixarmo-nos absorver pelo espectáculo visual que Claudio Miranda e Ang Lee apresentam. A realização de Lee parece tão relaxada e segura de si que nem notamos na dificuldade de adaptação desta história. O realizador de Taiwan percebe que não adianta ter os pés na realidade: esta história presta-se ao voo da imaginação e ao tom de fábula, e é assim que constrói e apresenta a história. Pi é um homem contra os elementos, mas que não foge a maravilhar-se deles e com eles.Ao contrário da restrição emocional que povoa a obra de Lee, este filme é uma explosão constante de emoção, que serve bem a história. No fundo, o que Lee está a filmar é uma narrativa sobre as narrativas que contamos a nós mesmos. A delicada banda sonora de Mychael Danna serve esse propósito.


Embora inicialmente "Life of Pi" apresente a perspectiva de se transformar num exercício de ecumenismo religioso chato, é com facilidade que o espectador se apercebe que o tema principal do filme não está aí. O filme é sobre as narrativas que contamos a nós mesmos para continuarmos a boiar no oceano da vida. Da maneira como queremos interpretar a banalidade do quotidiano, transformando-a em sinais ou motivações. É sobre imaginação, não só a nossa, mas também a de Ang Lee, que constrói um belíssimo e permanente quadro em movimento. Um pouco como a vida que vamos desfiando todos os dias, portanto.


domingo, 3 de fevereiro de 2013

"Lincoln"



É muito difícil abordar um símbolo no cinema sem que o filme não se transforme numa hagiografia. Por serem símbolos, ultrapassam, na imaginação, o estatuto de homens e quase se tornam intocáveis. Um livro que estou a ler de momento, chamado "Irmãos", fala num capítulo na maneira como o senador Robert Kennedy se passeou pela frustrada campanha em busca da nomeação do Partido Democrata para a corrida presidencial em 1968: Kennedy encontrava multidões de pessoas que tinham viajado só para vê-lo e tocar-lhe. Uma jovem, a certa altura, consegue raspar-lhe com a mão e grita "Não vou lavar as mãos durante uma semana". Não estamos a falar de deuses ou estrelas: estamos a falar de um homem, um político ainda por cima. Mas pela força das suas ideias, alcança um lugar a que não se pode chegar sem um endeusamento popular. Abraham Lincoln ocupa um lugar quase divino no panteão da religião civil norte-americana. Com uma história curta como nação e sem o impulso inicial da religião como elemento aglutinador do patriotismo nacional (basta lembrar que a maioria daqueles que assinaram a Declaração da Independência era ateu, agnóstico ou pensador-livre), os norte-americanos foram-se apoiando em mitos civis que ainda hoje são constantemente referidos: os "Founding Fathers" ou a "Camelot", de Kennedy são dois exemplos recorrentes (doutor Fernando Catroga e leitores, peço imensa desculpa por este passeio escusado...). O cinema, como arte mais representativa do país, fixou esses símbolos, até um ponto onde se tornam documentos históricos mesmo quando falham em estabelecer a História real. Alguém disse que da mesma maneira que os antigos tinham os livros de História para aprender o passado, os norte-americanos têm os seus filmes; e Steven Spielberg tem sido uma parte importante da forma como a América se recorda do seu próprio percurso histórico. Desde "A cor púrpura" que o cineasta tem passeado pela história norte-americana questionado a sua identidade e aquilo que torna a experiência norte-americana como algo fascinante e frustrante em doses iguais. Poucas figuras representam bem essa dicotomia como Abraham Lincoln, um dos santos maiores no altar dos EUA, um homem constantemente representado pelo cinema como puro e perfeito, como uma bússola moral que deve guiar os cidadãos do país e alguém cuja moralidade intocável devemos apenas aspirar.


O refrescante de "Lincoln", o fabuloso novo filme de Steven Spielberg, é que o bom velho Abe não é representado como alguém acima de todos nós. No início do filme Abraham Lincoln é um homem admirado pelas suas tropas, que até decoram passagens dos seus discursos, mas que entretém dois soldados com uma anedota sobre barbeiros e é ensinado por um negro acerca das injustiças raciais presentes mesmo em palco de guerra. As palavras desse soldado, que recorre ao famoso discurso de Gettysburg, lançam o restante filme, na batalha que o presidente teve, contra muitos factores, em fazer passar a 13ª emenda que bania a escravatura da lei norte-americana. Apertado por uma mulher à beira de um ataque de nervos, pelo seu governo que o força a escolher entre a paz no país e esta emenda, e também pelo seus adversários no Senado, Lincoln atravessa tudo isto não como santo, mas como um homem de grande inteligência, conhecedor da maneira como as pessoas funcionam e que não hesita em recorrer às tácticas sujas da política para fazer passar uma ideia que ele considera não só moralmente aceitável, mas que, de facto, é uma jogada política para acabar com a economia sulista no futuro, deixando os seus adversários de Guerra Civil à mercê nos acordos de paz. O filme nem sequer pode ser considerado uma biografia, pois concentra-se, numa opção sábia, apenas neste período final da vida do antigo presidente norte-americano. Lincoln debate-se com o problema da escravatura ao longo do filme, descobrindo a sua própria moral durante o tempo em que tenta fazer passar esta emenda constitucional. De facto, o texto a ser passado não diz directamente que a diferença racial não existe: apenas que todos os homens são iguais perante a lei e que a escravatura é ilegal. Contrariamente a forçar uma  verdade universal de beatitude, Lincoln procura o compromisso para conseguir os seus objectivos. Debatendo-se com a quantidade de sangue que foi derramada em nome da igualdade, Lincoln recusa que esse sacrifício seja em vão, mas sabe equilibrar a sua abordagem, sem nunca descurar os seus objectivos. Ele não sabe isto desde que nasceu: descobre-o; e é maravilhoso como o filme celebra a inteligência dos homens na procura e concretização de ideias maiores do que eles mesmo. O filme é sobre valores, mas acima de tudo, sobre como apenas o entendimento entre os homens e a compreensão de que a História e o bem comum são maiores do que todos nós. Mesmo que para utilizar os poderes que lhe concedem o direito a passar esta emenda, Abraham Lincoln use subterfúgios jurídicos que roçam a ilegalidade.



As pressões para passar emenda vêm também da sua própria família: Mary Todd (interpretada como um pitbull bipolar por Sally Field, não se importando de ser odiada quando tal é necessário e verdadeiro) e os dois filhos, a criança Tad e o jovem Robert. A esposa de Lincoln, registada nos livros de História como uma constante fonte de loucura e conflito, chegando a ser internada num manicómio pelo filho mais velho no final dos seus dias, é capaz de acessos de apoio incondicional ao marido, mas também de crises de depressão profunda onde esquece tudo o resto e arrasta Lincoln à boleia para uma dor e uma culpa que vão para lá do que ele próprio pode mostrar publicamente. Há referências à morte, anterior aos eventos do filme, do filho Willie, de doença. Numa cena em particular, de uma intensidade que faz tremer o ecrã, Lincoln explode no seu estoicismo (acontecerá novamente no filme num momento decisivo) e mostra que não é aquela figura intocável e imune a tudo dos livros de História: é comido pela dor profunda da morte de um filho, mas não tem outro remédio senão engolir em seco e seguir em frente, porque os vivos interessam mais do que os mortos. Não é que não pese sobre si a culpa: apenas sabe, e é uma atitude sábia, de que não adianta grande coisa. É o reflexo da sua própria atitude em relação à Guerra Civil americana. É uma relação complexa entre Lincoln e Mary Todd, um casal que nutria um enorme amor um pelo outro, mas com confrontos igualmente intensos. 
Mas é através da forma como lida com os seus filhos que se vê o lado de Lincoln que tenta expiar aquilo que vê como os seus pecados (derivados da culpa de carregar quatro anos de Guerra Civil e os seus mortos ao colo). Robert, o mais velho, deseja ir para a guerra, que está a acabar, mas o seu pai está obviamente renitente, mesmo sabendo que outros pais enfrentaram a angústia de ver os seus filhos partir para os lamacentos campos de batalha sem saber se voltariam a ver os filhos. Lincoln como presidente, é provavelmente o único pai em toda a América que pode evitar que os seus filhos enfrentem directamente no conflito. Numa confrontação que tem tanto de humano e real que nos esquecemos quem está, de facto, a discutir, o pai é obrigado a entender o filho, e a fazer, também ele, um sacrifício. Refugia-se portanto no mais novo, Tad, em momentos onde Lincoln deixa de ser presidente e é verdadeiramente pai, em todo o seu amor, preocupação e até disciplina. Um momento em particular, onde o presidente leva o Tad às cavalitas, com este a dormir, é tão inesperado quanto tocante, quando deixa ver para lá da cortina da lenda um homem com as mesmas preocupações que todos os pais possuem. São pequenos instantes, pormenores, mas que desconstroem a maneira como se filmam "lendas".

   
O que realmente faz e eleva este filme para lá de uma peça de teatro bem filmada (uma acusação que tem sido feita por críticos e pessoas que tiveram um gosto pelo filme e por aquilo que o constrói bem diferente do meu) é a tríade que para mim é sagrada em qualquer filme: argumento, actores e realização. O guião de Tony Kushner é um portento em termos de linguagem e pesquisa de época: desde o diálogo fiel ao século XIX (já não se insulta como naquele tempo: ninckampooh é uma palavra de absoluta delícia), passando pelas citações várias que saem da boca de Lincoln naturalmente, que vão de Shakespeare à Bíblia, até à forma como torna excitante o processo político de passar uma emenda. O filme abre e fecha com excertos do discurso de Gettysburg, e está estruturado para que se perceba como se pode ir das palavras aos actos. Não é um texto nada fácil para os actores, principalmente porque assenta tanto em emoções, como em jargão e maquinação política; e no entanto, Kushner nunca é obscuro ou difícil de entender. Achei especialmente admirável a maneira como desmonta o raciocínio interno de Lincoln, decompondo-o, colocando-nos no interior da sua travessia moral. Claro que a estupenda interpretação de Daniel Day Lewis é um auxiliar poderoso. É repetitivo dizer que o actor irlandês habita os personagens, mas neste filme, esse dom adquire proporções fantasmagóricas. Como ele bem disse numa cerimónia de prémios, visto que foi um actor a matar Lincoln, nada mais justo que, de vez em quando, outros o tragam de volta à vida. Day-Lewis faz isso e mais além: reinterpreta a maneira como a história cravou a figura na nossa memória e dá-lhe uma dimensão humana em compaixão, esperteza e até maquiavelismo intencionado que não são comuns. Um pouco à maneira de Miguel Ângelo, dá vida a uma estátua de mármore, no caso uma gigante que se senta em Washington, no Capitólio. 
O que raramente se vê referido é a grande qualidade do elenco secundário. O principal segredo da naturalidade do filme vem precisamente dos actores que o compõem, relevando o que parece plano: se isto é uma aula de História, como alguns críticos acusam, então é a melhor aula de História que eu nunca poderei dar. Tommy Lee Jones usa as rugas rezingonas com que nasceu para o melhor dos efeitos como o intransigente Thaddeus Stevens; David Strathairn é pragmático, mas expirando uma moralidade quase incómoda e ingénua no papel de William Seward, o secretário de Estado de Lincoln; James Spader, John Hawkes e Tim Blake Nelson compõem um trio de lobbistas que se passeiam a corromper... perdão, convencer senadores para que votem positivamente na 13ª Emenda, actuando quase num filme de comédia à parte. Spader, em particular, parece Alan Shore de "Boston legal" transplantado no século XIX; Bruce McGill, breve, mas de memorável irascibilidade como Edwin Stanton; Elizabeth Reuben, como a criada da família Lincoln, a lembrança real do que representa a escravatura para aqueles que foram libertados... Não há uma única nota falta neste cast, e só Joseph Gordon-Levitt, que não vai mal, vacila de vez em quando. Quando se tem actores desta categoria, tem-se um filme.
Spielberg desaparece: não há sequências de grande virtuosismo, mas sim enquadramentos cuidados e planos delineados a servir quem realmente interessa. O aspecto cuidado e fixo dos enquadramentos, e quantidade de tons que Janusz Kaminski consegue encontrar no chiaro-scuro dos edifícios novecentinos dos EUA evocam não só a época, mas também um sentimento de peso e de ambiente. A direcção de fotografia é magnífica como de costume, John Williams continua a sua suite de presidentes norte-americanos (Nixon, JFK, John Quincy Adams) com temas discretos, mas evocativos. A sua composição para a peça que acompanha a personagem de Lincoln tem uma fulminante onda de tragédia que suscita oportunidades perdidas.Apoiado na sua equipa técnica de sempre, Spielberg aplica o seu dom maior de traduzir complexidade para entretenimento como poucos o conseguiriam: dando um ar de thriller político e moral a todo o processo de aprovação da 13ª Emenda, Spielberg faz pensar, sentir e divertir numa inpossibilidade aparente; e no entanto, resulta.


Do que tenho lido por aí, "Lincoln" tem sido equiparado a uma simples peça de teatro filmado. Apelidam-nos de aborrecido, porque se fala muito; desinteressante, porque é sobre os "pretinhos"; que só vale pela interpretação de Daniel Day-Lewis. No mesmo ano em que sai um outro filme bem mais cínico sobre a escravatura, e que é louvado ad nauseam e, a meu ver, injustamente, esta recepção a "Lincoln" mostra algumas coisas. Em primeiro, que o público espectador de hoje já não suporta facilmente a sinceridade emocional directa no cinema. Em segundo, que, como tenho dito várias vezes, o gosto e o respeito pela palavra dita estão em vias de extinção. Em terceiro, que Spielberg, como sempre, é olhado de lado por um público que raras vezes se apercebe do que aprendeu com ele enquanto crescia; semelhante fenómeno está a dar-se com Scorsese, o que me preocupa bastante. Por último, que já não reconhecemos uma obra-prima quando ela aparece porque estamos distraídos demais com outro fogo de artifício que vai surgindo. Não tenho medo de dizê-lo: esta é uma obra-prima, e juntamente com "Munich", o melhor filme de Spielberg desde 2000. É sobre política, sobre ética, sobre moral e rebate nos sinos das igrejas uma obrigação de rever a maneira como pensamos os valores mais importantes, e de como o mundo não é um preto e branco. Ao contrário das reacções que tem suscitado, evoca compromisso; e felizmente, também tem despertado a importância do diálogo, de falarmos e chegarmos a entendimento. Tudo isto num filme de duas horas e meia onde se fala muito, e que me deixa, ainda assim,com um défice de palavras e ideias. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

"Django unchained"


Já escrevi aqui sobre Quentin Tarantino. Na altura, chamaram-me nomes por afirmar que Tarantino não era um génio. Afirmei na altura que Tarantino "ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste." Estava mais perto da realidade do que pensei. Continua a ser verdade. Há realizadores de quem se gosta e não há mal algum. Mas querer fazer deles algo que definitivamente não são, é outra coisa. O próprio QT contribui para essa hipérbole, sendo que o último bloco nessa torre de marfim onde se coloca é a história de querer acabar de filmar aos 60 anos para só ter grandes filmes no currículo. É discutível que os tenha nessa proporção.. Na minha opinião, tem um grande, excelente filme ("Pulp fiction" é uma obra-prima, honra lhe seja feita) e outros com graus variados de qualidade ("Death proof", por exemplo, é um mau serviço ao cinema, cuja única desculpa é a grande sequência de acção que o encerra). Como escrevi na altura, há duas coisas muito boas que saem do seu cinema: o poder do diálogo na construção e estabelecimento de cenas, e o seu primado na definição de qualidade das interpretações e dos momentos memoráveis; e a fixação e divulgação de uma memória cinematográfica que já vai sendo rara em consumidores de cinema com menos de quarenta anos. De resto, a sua obra habita numa realidade paralela à restante, com uma mitologia contínua e assente em pequenos pormenores para fãs e cujos pretextos fílmicos são homenagens, ou melhor, pastiches de outros géneros. Como escrevi há uns meses, não há nada de errado com isso: são opções de carreira e artísticas, que se respeitam e que têm o seu público alvo. No entanto, o seu culto vai crescendo, aumentando e disfarçando as suas falhas, de filme para filme.


"Django unchained", a sua obra mais recente, é um novo exercício de "história alternativa" (usando um termo criado pelo escocês Niall Ferguson, que também se diverte com estas coisas de imaginar "e se...", mas em nome da ciência) depois de "Inglourious basterds", um divertido e a espaços genial filme de bom entretenimento e pretensa reflexão. Desta vez, depois de os nazis terem a sua conta, são os comerciantes de escravos que apanham por tabela, na história de um antigo escravo, Django (referência cinéfila número um: é homónimo do herói interpretado por Franco Nero num filme de Sergio Corbucci), que depois de libertado tenta recuperar a sua mulher Broomhilda von Shaft (referência cinéfila número dois, que tendo em conta que o personagem é negro, não penso precisar de explicar), com a ajuda de King Schultz, um caçador de recompensas que se torna no seu mentor. O vilão nesta história é um sulista abominável que dá pelo nome de Calvin Candie, que gere o seu rancho "Candieland" e lutas entre escravos com o apoio do seu capataz negro Stephen. O pretexto está lançado para uma história de vingança (um tema recorrente nos seus filmes), que se vem a descobrir ser mais espalhafato do que outra coisa. "Django unchained" navega por entre querer representar, emocionalmente, o sofrimento dos escravos durante este período horrível da história americana, mas ao mesmo tempo, quer manter as suas ironias, os piscares de olho, a sabedoria cinéfila. O resultado é um filme que sabe a falso. A meu ver, é quase impossível ter os dois mundos: ou bem que se decide a criar uma obra revisionista de entretenimento, como fez, e bem, com "Inglourious basterds"; ou envereda por um tom sério e de análise do problema da escravatura. Pode manter a história de vingança e a a intriga de acção, não tenho problema com isso. Mas tentar fazer um filme de substância sem substância é uma miragem. Tarantino tenta arranjar um paralelo com a história de Siegfried e Broomhilda das mitologias germânicas, mas facilmente é esquecido quando o verdadeiro divertimento do realizador está noutro lado.


É uma contradição natural querer misturar um tom de fábula com o desejo de mostrar algo real e doloroso. Percebe-se que "Django unchained" é mais wishful thinking do que outra coisa. Isso verifica-se, por exemplo, na representação da violência. É excessiva e cartoonesca. Nada tem a ver com ser necessária ou não: um filme comporta-se dentro dos seus próprios termos, e nalguns autores, como John Woo, a hipérbole da violência faz parte do estilo e da mensagem, em simultâneo. Aqui, no entanto, Tarantino opta por tornar a morte e o jorrar de sangue como uma espécie de divertimento para o ecrã. Novamente, se a obra alegasse ser apenas um exercício de divertimento, percebia-se. Mas é notório que há uma tentativa de dizer algo mais. esta contradição marca e divide todo o filme. A presença de Christoph Waltz destina-se precisamente a aliviar esta antinomia. O realizador invoca o seu mago que hipnotiza com palavras e a cadência do seu discurso . A personagem que interpreta não é diferente, em estilo, do Coronel Landa da anterior obra, embora se situe numa área mais simpática. Li por ai que este King Schultz é amoral, mas quem diz isso deve estar visto toda a acção com palas nos olhos, ou adormecido durante o último terço. É irónico que, num filme que se diz sobre escravatura e emancipação, seja um personagem europeu a libertar os escravos, e em certa medida, a tentar contrapor uma luz de civilização vinda do velho continente por entre o Sul onde a ignorância está presente a cada esquina. Não é um desempenho brilhante, mas anima o filme e dá-lhe uma âncora séria, que permite a Tarantino lançar outras figuras mais coloridas (os irmãos Brittle, o Big Daddy) numa catadupa que mal nos permite conhecê-los. O próprio personagem principal treme e nunca me inspirou empatia... O esquema é o habitual, novamente: em "Kil Bill", Beatrix Kiddo tem também um evento traumático que nos deve levar a preocuparmo-nos com a sua missão de vingança e despertar emoção em nós. É, no entanto, Uma Thurman que constrói e ganha isso, com paciência e talento. Jamie Fox não é mau actor, mas não tem o talento da anterior musa de Tarantino. O seu Django estica os dedinhos para se tornar no Homem sem Nome da raça negra, mas é uma colecção de olhares intensos e pouca coolness que não me impressionou. A longa duração do filme (cortava-se meia hora e o espectador não perdia grande coisa....) não o ajuda, pois tem de esticar um boneco, penosamente, durante quase três horas.


Quando quer, o filme é bom. Uma cena quase surreal envolvendo um grupo de antecessores do Ku Klux Klan e uma discussão em torno da utilidade de um capuz tem não só uma veia cómica digna de Monty Python, como termina de forma muito satisfatória e com um estilo que, aqui sim, é bem merecido. Numa outra sequência na sala de jantar da mansão de Candie, bradamos "finalmente" quando os bons diálogos se encadeiam com consistência e Leonardo di Caprio, numa composição excelente de um reizinho patulante e cheio de si, mas que tem pouco de inútil ou burro, varre todos os actores da cena, e o filme praticamente todo, numa defesa da sua crença no racismo, seguida por uma explosão de raiva tão intensa quase espelhou a minha falta de paciência para com os problemas todos que o filme venha a ter. É um momento alto onde se vislumbra o que poderia ser esta obra com um pouco mais de trabalho e intenção. Já que estamos nas coisas boas, a direcção de fotografia é uma maravilha, mas com Robert Richardson, esperar menos é engano. De destacar, também o untuoso personagem de Samuel L. Jackson, totalmente deslocado daquilo que vemos dele, e das únicas figuras do filme cujo funcionamento interno está construído e se entende: eis um negro que prefere a escravatura, que lhe dá poder, à liberdade, que o torna num entre muitos. É difícil defender alguém que apoia uma ideologia que nos é dita como horrível durante tantas cenas, mas Jackson fá-lo e se bem que o seu Stephen não seja um personagem assim tão cinzento, é uma lufada de ar fresco ver alguma complexidade no meio deste artificialismo todo.


"Django unchained" anuncia, de forma ainda mais óbvia, que a fórmula Tarantino precisa de mudanças. O próprio realizador não verá isso, convencido que está de que é um génio absoluto, mas usar a exploitation como credo e móbil de toda uma obra cinéfila é quase um insulto ao seu próprio talento. Mesmo na cenas de acção, onde Tarantino costuma ter as garras afiadas, vacilam, e isto não pode ser um bom sinal. Eu percebo que para cinéfilos não honestos, que só conhecem a história do cinema através da filmografia do norte-americano, este possa parecer um mestre incontestado, capaz de ideias brilhantes. No entanto, para que sabe que Sérgio Leone só há um. Este não é um filme completamente maus, tem momentos de bom entretenimento; mas enquanto se entretém a si mesmo com ideias de grandeza, perde o espectador que anseia por vê-lo a libertar-se das correntes que o prendem à morrinha da repetição.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"Les miserables"


Em 1862, foi posto à estampa "Les miserables", hoje um clássico da literatura, da autoria de Victor Hugo. Embora celebrado actualmente, o livro, em cinco volumes, foi criticado na altura e retirando alguns comentários que se devem à atmosfera política contemporânea, uma das suas características mais evidentes é o excessivo sentimentalismo. Não é que o livro não coloque questões interessantes, relativas à moral, à redenção, ao primado da lei e à noção de Justiça (com maiúscula mesmo); mas seguindo os gostos de Victor Hugo, é de facto melodramática e exagerada, em situações e mesmo na escrita. Ninguém vai ao engano, pois estamos a falar do mesmo homem que escreveu "Notre Dame de Paris" (que alguns menos letrados conhecerão por "O corcunda de Notre-Dame") e se tornou num dos máximos expoentes do Romantismo na Europa. Não é à toa que no romance "Os Maias", João da Ega, sempre sóbrio, invectiva "Morte ao Romantismo e a todos os ídolos românticos, especialmente Victor Hugo". As suas obras são umas mistura de activismo social e emoção barroca, levada a extremos piedosos. No livro, Jean Valjean é basicamente um homem embrutecido pelo desprezo da sociedade e que apenas é salvo por um único bom acto de um bispo da província; e este género de eventos pequenos de significado grande vai-se repetindo durante o livro, amplificando o valor que a bondade inata do Homem tem mesmo numa sociedade desumanizante. Não surpreende que a Broadway, onde sentimentos exacerbados são apenas o quotidiano artístico, adoptasse o álbum-conceptual de um trio de franceses, seguindo "grosso modo" o enredo da obra do século XIX para um musical de sucesso estrondoso. Após a brincadeirinha de Susan Boyle ter reavivado  o interesse no espectáculo, demorou apenas três anos para que o filme chegasse aos cinemas.


A história simples mantém-se: Jean Valjean, um antigo condenado aos galés que esteve 19 anos presos por roubar uma pedaço de pão, é redimido pela acção de um pequeno bispo da província, mas continua a ser perseguido por um implacável oficial da lei chamado Javert. Durante anos, Valjean vai-se redimindo dos seus crimes, chegando a ser um homem de negócios bem sucedido, voltando a reencontrar Javert sem que este o reconheça. No entanto, quando despede injustamente uma das suas trabalhadoras, Fantine, e esta, por ser mãe solteira, se vira para a prostituição, morrendo no processo, Valjean adopta a sua filha, Cosette, como sua e foge para Paris, evitando Javert. Lá, tendo como pano de fundo eventos muito semelhantes à Comuna de Paris, o resto da história desenrola-se, entre os amores de Cosette por um revolucionário e a constante perseguição de Javert a Valjean. Logo para começar, isto é enredo a mais para um musical: "Les miserables" é um livro enorme e pensar que se pode adaptar o espírito do livro a um musical, com as complexidades que lhe dão valor, é um logro.O tipo de história que Victor Hugo escreveu presta-se aos excessos do género, mas o escritor francês tinha outro género de ideias em mente quando escreveu a obra, e praticamente nenhuma delas está transposta para o ecrã. Admito que muitos temas são orelhudos, e no fundo é isso que gera admiração entre os seus fãs, este é um filme compridíssimo, aborrecido e que morre depois da meia hora. Coincidência ou não, é que Anne Hathaway desaparece da história. Pela superior qualidade da sua performance, não é coincidência: o seu "I dreamed a dream" é uma vitória de verdade e honestidade no meio de uma emoção forçada de duas horas e quarenta e cinco minutos. Todo este tempo torna-se também penoso pela constante repetição de temas e cenas, onde apenas mudam os personagens e os seus lugares nelas.


O realizador Tom Hooper tem uma intenção clara, que é a de tornar "real" o teatro. A sua câmara mergulha na sujidade das ruas francesas e oferece grandes planos lindíssimos de cidades e locais naturais. É deliberado, até por colocar os actores a cantar "em directo" nos cenários. No entanto, Hooper quer também oferecer ao filme diferentes momentos emocionais que não passam só pela tristeza, e no entanto, quando o tenta, usa o mesmo estilo para todos os momentos. É uma repetição que torna a sua realização do filme banal, embora não seja má. Há ideias e intenções, mas Hooper não tem classe para mais. Este mesmo problema estava presente, por exemplo, em "The king's speech", mas num filme mais comedido, as falhas não se notam tanto. Aqui, falamos de um épico de grande escala cruzado com musical. O seu filme vai sendo salvo aqui e ali por actores  A história dos amantes jovens, interpretados por Amanda Seyfried e Eddie Redmayne, leva lágrimas ao tédio, mas Hugh Jackman, com o mesmo carisma animal que o tornou num Wolverine perfeito, tenta carregar toda a obra às costa, com a mesma força que fez de Valjean uma lenda. Jackman é perfeito por dar precisamente emoção e intenção às palavras e tons. Não é um cantor excepcional  mas nenhum grande cantor conseguiria atingir as emoções que faz ressoar. Os seus choques com Russel Crowe (cuja voz é discutível, mas a presença imponente como Javert é um contraponto bem conseguido com Jackman) são o único verdadeiro interesse do filme, precisamente por ser a relação que melhor desenha, no musical, um dos valores principais do livro: o confronto entre a possibilidade de redenção de um Deus maior e a irredutibilidade e preconceito que constrói as leis dos homens.


Em suma, um filme para quem já é fã deste musical. Quem não é fã sequer de musicais, também não será este a convencer-vos (quase três horas de filme cantado pede resistência extrema). Leitores de Victor Hugo, agarrem no livro: certamente que ver esta obra não será o vosso último desejo de condenados à morte.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Zero dark thirty"



O cinema norte-americano passou uma década a penar a herança do 11/9 e das guerras subsequentes no Iraque e no Afeganistão com resultados variados do ponto de vista artístico. O cinema documental foi talvez o que melhor lidou com a temática, tendo "Fahrenheit 9/11", divertido mas ingénuo e até leviano, feito um estardalhaço inesperado para o género (ganhou a Palma de Ouro em Cannes,polémica, e continua a ser o documentário com melhor performance nas bilheteiras em toda a história). No entanto, não podemos esquecer outras obras, como o excelente "Taxi to the dark side",de Alex Gibney, ou "Standard operating procedure", de Errol Morris, que, com estilos diferentes, fizeram o favor de mostrar o outro lado da guerra contra o terrorismo. Se nestes dois últimos casos temos um par de realizadores que estruturam filmes razoavelmente factuais, a obra de Michael Moore marca o tom geral do cinema desta temática: lamentos liberais a plenos pulmões. "Rendition", "Syriana" e "A mighty heart", por exemplo, marcam um tom claro: há republicanos e capitalistas maus que causaram esta guerra e se estão a aproveitar dela. A guerra é muito má e a tortura horrível. Não é que a mensagem esteja errada; mas é pronunciada sem a mínima complexidade. Difere, por exemplo, de "Lions for lambs", uma obra de Robert Redford que, não sendo brilhante, é um estudo mais equilibrado da questão. Fora das abordagens ideológicas, dois filmes destacam-se por terem optado por uma abordagem factual: "World Trade Center", de Oliver Stone e "United 93". Diferem em qualidade (o primeiro, com um tom sério e pesado que por vezes aborrece, embora em dois ou três personagens consiga colocar perguntas que realmente interessam; o segundo um visceral e espantoso exercício de cinema-verité que atinge como nenhum outro filme o lado de tragédia humana primária que aconteceu naquele dia), mas optam por apresentar a frieza da realidade, deixando a parte emocional connosco.


"Zero dark thirty", o excelente novo filme de Kathryn Bigelow, opta por este registo quase desligado da emoção e a meio caminho entre o jornalismo e o cinema. Em linhas gerais, segue todo o processo que levou à operação que localizou e eliminou Bin Laden em 2011, e como se não bastasse a polémica do tema, o filme tem sido mais falado pela sua posição moral relativamente à tortura do que propriamente pelos seus méritos e deméritos como objecto cinematográfico. É uma prova, acho, da sua mais-valia enquanto filme, pois adopta um tom de deixar os factos falarem por si. Cada um interpreta como quiser e decide o valor moral do que está a ver. No meu caso, saí com uma ideia oposta à que surge na imprensa: o filme não faz, por exemplo, o elogio da tortura. Na verdade, a personagem principal do filme, simplesmente Maya, vem-se a revelar a principal responsável pela captura de Bin Laden, precisamente por usar uma abordagem contrária à da lógica de tortura. Optando pelo jogo psicológico e pela inteligência, ela contorna precisamente a falta de resultado que os interrogatórios coercivos vinham ter até então. A primeira meia hora do filme é a desumanização de um prisioneiro do exército, até um ponto onde até o próprio interrogador se sente afectado, e a conclusão de que apenas uma abordagem diferente pode resultar. Como se comprovará. Entre os avanços e recuos do filme, a inteligência e raciocínio presentes no trabalho detectivesco de Maya e a sua equipa são, ao mesmo tempo, uma crítica à tortura e à maneira como o bravado do americanismo levou à demora de dez anos para a captura do terrorista mais mediático do século XXI; e também a diferença entre o que é civil e o que é bárbaro, e como aquilo que é bárbaro não é necessariamente certo. A presença de cenas de tortura numa história como esta é apenas natural pelas informações que dispomos (depois de Guantanamo e Abu Grahib) e não um acenar de cabeça positivo à sua utilização. Outra conclusão parece-me ser desonesta. "Zero dark thirty" destaca-se, precisamente, por não ser político.


É irónico que seja uma mulher a causar a queda de um homem cuja ideologia contemplava um regime teocrático que cortaria muitos direitos ao sexo feminino. Mas mais importante do que isso, Maya é uma criação assombrosa de Jessica Chastain, numa interpretação feroz, ao mesmo cerebral e primária, na maneira como não esconde os seus intentos e desejos. Segue um pouco a tradição do génio inadaptado, com muito poucas capacidades sociais e diplomáticas. Numa cena, a maneira como quase chama idiotas a todos os elementos da alta cúpula da CIA é um prazer de ver apenas porque estamos convencidos, até ao momento, de que ela é a pessoa (não mulher... feministas, parai) mais capaz para aquela missão. Maya navega por entre fuinhas políticos que querem usar a luta contra o terrorismo em seu próprio proveito (quando um superior a tenta forçar a abandonar a caça a Bin Laden para se dedicar a alvos menores, mas que aparecerão nos noticiários, Maya redu-lo a um farrapo político através de um tipo de chantagem que convence o espectador de que não está presença de uma santa) e evita durante quase todo o filme mostrar as suas emoções. Nem mesmo quando a oportunidade surge: num encontro particular com o director da CIA, este pergunta-lhe que mais fez ela na CIA para além de caçar Bin Laden. Num outro filme menor, este seria um momento de grandiloquência emotiva, onde a personagem principal explicaria, num discurso emotivo, o que lhe ia na alma, histórias de anos de luta a necessidade de capturar o terrorista como símbolo de algo. Mantendo as suas emoções encerradas, Maya responde simplesmente que não fez mais nada. É este distanciamento que mantém em relação ao espectador que permite que os momentos raros em que se permite a quebrar nos atinjam com uma força inesperada.


Kathryn Bigelow é a principal responsável do filme. Mark Boal escreveu um fastidioso e completo argumento factual que lhe serve de planta, mas Bigelow torna a aridez do real num espaço de tensão e imediatez constantes, uma imagem de marca que vem de toda a sua carreira e que a maior parte dos cinéfilos pôde conhecer em "The hurt locker". Aqui, ela mantém esse talento para estabelecer de imediato as set-pieces, a sua geografia e participantes, de maneira a envolver-nos de imediato na acção. Nalguns momentos, Bigelow transforma essas cenas de acção quase em obras de arte geométrica. Uma cena, em particular, num mercado do Paquistão, em Abotabbad, enerva a tal ponto que cansa só de ver. No entanto, e porque esse seria o momento esperado para marcar o filme, é no raid final que temos direito a uma seqência de acção excepcional não pelo espectáculo, mas sim pela precisão fria e pelos pequenos pormenores que a tornam real. Não há grandes heroísmos, explosões ruidosas e tirando um momento mais épico (e que não devia estar nos planos dos soldados) é discreta, quase silenciosa e muito directa. O momento em que culmina é não grandiloquente, mas sim regular. Mais uma dia no trabalho. É surreal, e os próprios marines demoram a digeri-lo. Não é um soco no estômago: é um suspiro. Toda a ansiedade dessa sequência de quase meia hora passa para nós e reside não no seu desfecho, mas na execução. Eu estava tão alterado que tal como os marines, inicialmente, até duvidei que aquele corpo no chão fosse de Bin Laden.


No final, Maya finalmente quebra. Chegou o fim da caçada; e agora? Ela não sabe. Aliás, tal como os EUA, que fecharam este capítulo de maneira criticada por todos, a morte de Bin Laden marca um final, mas também um início da vida depois da sombra do onze de Setembro. A bela e discreta banda sonora de Alexandre Desplat ergue num pálio a emoção, mas Bigelow recusa-se, ainda assim, a retirar-nos o peso de termos uma opinião pessoal. Bin Laden morreu. Métodos questionáveis foram usados. Puro intelecto esteve envolvido. Todos perderam, de uma maneira ou de outra. Agora, cada um sabe o que sente em relação a isso

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

"Silver linings playbook"



A apologia do loucura é um cliché eterno do cinema. Ser louco não é necessariamente ser mau, e no cinema, os loucos seduzem-nos e atraem-nos, ao contrário da vida real, onde nos repelem para 70 metros de distância. Esta mania tem entrado nos últimos anos num território insuspeito: a comédia romântica. Quem devemos culpar? Não sei bem. Talvez a estranha popularidade entre o público joveme  amante de ironias que elevou a "manic pixic girl" a ícone dos amores deste século XXI. A MPG nada mais é do que alguém com quem o protagonista masculino cria uma ténue ligação, normalmente a partir de um gosto musical comum, possuindo em si um conjunto de características que, tal como os loucos, adoramos no cinema, mas que nos chocariam e afastariam no mundo real. De certa maneira, tem lógica, porque muitas das vezes, a maneira mais segura de experimentarmos a loucura é no cinema.


"Silver linings playbook", uma simpática, sorridente e um pouco pateta "dramédia" romântica é apanhada nesta corrente, mas com um twist que torna o filme ao mesmo tempo irritante e sedutor: ambos os protagonistas têm um problema mental. No caso de Pat Solitano, é a bipolaridade, que explode em todo o seu esplendor quando apanha a esposa em casa com outro homem, que apanha literalmente a explosão na cara. Depois de cumprir seis meses num hospital psiquiátrico, cumprindo a pena estipulada pelo tribunal, Pat diz-se preparado para a vida real e está especialmente obcecado em recuperar a mulher. Encontra em casa uma mãe que o ama e que também tem de cuidar de um pai desempregado, fanático por futebol americano e que tem traços de obsessão-compulsão. Numa tentativa de fazê-lo sentir integrado, o seu melhor amigo combina um jantar de boas vindas, e é aí que conhece Tiffany, a segunda louca desta equação, embora com um problema mais apelativo: está a ultrapassar uma crise de ninfomania despoletada pela morte do marido. Há uma atracção estranha entre ambos e até ao final, o conflito entre essa atracção, a obsessão de Pat e o gosto por futebol americano do pai de Pat cruza-se com um concurso de dança, criando uma história que cativa na mesma quantidade que confunde.



O filme tem diversas qualidades que não se podem negar. Não é a primeira vez que David O. Russel dirige comédias românticas estranhas. "I heart Huckabees" é até o exemplo mais comercial, mas este é o homem que dirigiu "Spanking the monkey", uma comédia que gira em torno do incesto. Por isso, sabe tornar uma premissa de razoável  bizarria num filme coerente e digerível; e é um facto que "Silver linings playbook" tem imenso charme. Um dos motivos é, no entanto, uma fraqueza: a escolha de actores principais. Não é que estejam mal, pelo contrário: Bradley Cooper é uma revelação, pelo menos para mim, no papel de Pat, um indivíduo que não consegue largar o passado, a um ponto que se torna idiota na história do filme. Encarna convincentemente um indivíduo bipolar e sem filtro, equilibrando a rudeza e o apelo ao espectador. Jennifer Lawrence tem um desempenho que nem sei bem se lhe chame desempenho... Já vi entrevistas dela e Lawrence é assim: cativante, emocionalmente desbocada, intensa, entusiasmante. Há uma dor latente que a actriz traz à personagem de Tiffanny e que, em última instância, vira a história e a própria vida de Pat. Se um espectador heterossexual não sair apaixonado por Tiffany deste filme, terá um problema. No entanto, quando este dois actores (de invejável pool genética) encarnam estes personagens, não nos parece que tenham assim tantos problemas quanto isso... Não é que não sejam credíveis nos seus papéis; mas são Bradley Cooper e Jennifer Lawrence. Bradley Cooper, apesar de tudo, disfarça como pode este factor, porque há pontos na história em que Pat chega a pontos patéticos mais trágicos do que cómicos. Ainda assim, a sensação passou-me. Há também um elogio à loucura que é falso: se todos são, de alguma maneira, loucos, a loucura não é especial. Na verdade, a normalidade é que é especial, e por isso é celebrada no filme como sendo louca. Mas se as pessoas, de facto, funcionam, não pode ser, por definição, loucura, certo?


O argumento possui problema também, na minha opinião. O primeiro acto, e o começo do segundo, arrastam-se demasiado. O filme repete temas e esquemas em cenas diferentes, o que atrasa o arranque dauilo que queremos realmente ver: Tiffany e Pat a interagir um com o outro. Há também um personagem quase decorativo de um polícia que deve controlar Pat na comunidade e cuja única função parece ser atrair o nosso ódio. A relação entre Pat e o pai, de suposta crispação, nunca fica estabelecida como deve ser, e isso nem seria problema de não houvesse um momento específico no filme onde a dor dá lugar à confissão e é o ressoar desse momento que faz Pat acordar um pouco para a vida. Esta cena só é salva por um actor inteligente como é Robert de Niro, que do nada cria tudo o que precisamos saber para nos ligarmos à relação entre estes dois personagens. De Niro tem, aliás, uma performance muito interessante, que faz sorrir aqueles que, como eu, sentem sempre alguma tristeza ao vê-lo arrastar-se por filmes que não merecem o seu talento. Este papel, que marcou o seu regresso aos Óscares, é esse regresso de alguma qualidade à sua carreira. A célula familiar, que envolve também a mãe (uma Jacki Weaver que não percebo muito bem porque foi nomeada para os Óscares), é também o cliché da família disfuncional que vai-se a ver, e afinal é boa, característica de um certo cinema indie norte-americano. Não é que os clichés sejam algo de inerentemente mau. A maneira como são apresentados e desenvolvidos é importante, e neste filme, não achei que fosse a melhor.


No entanto, "Silver linings Playbook" está programado para ser um feel good movie perfeito. Consegue-o: quando saí da sala de cinema, vinha de sorriso de orelha a orelha, pensando ter visto algo de realmente excelente. Só no dia seguinte, quando comecei a pensar realmente no filme, é que os problemas aparentes surgiram. O mérito é de David O. Russell, que do caos, arranca uma obra positiva e de história de vida temperada com um pouco de bizarro. Um plano, perto do final do filme, sela o acordo: é um long shot acelerado, que se afasta dos dois personagens e é exactamente aquilo que passa na minha cabeça quando beijo uma rapariga de quem gosto pela primeira vez. É um pouco como o amor: mexendo no nosso coração, atrapalha tudo o resto que devia ser ocupação da cabeça; e conseguir isto num filme já é uma proeza.