sábado, 26 de janeiro de 2013

"Django unchained"


Já escrevi aqui sobre Quentin Tarantino. Na altura, chamaram-me nomes por afirmar que Tarantino não era um génio. Afirmei na altura que Tarantino "ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste." Estava mais perto da realidade do que pensei. Continua a ser verdade. Há realizadores de quem se gosta e não há mal algum. Mas querer fazer deles algo que definitivamente não são, é outra coisa. O próprio QT contribui para essa hipérbole, sendo que o último bloco nessa torre de marfim onde se coloca é a história de querer acabar de filmar aos 60 anos para só ter grandes filmes no currículo. É discutível que os tenha nessa proporção.. Na minha opinião, tem um grande, excelente filme ("Pulp fiction" é uma obra-prima, honra lhe seja feita) e outros com graus variados de qualidade ("Death proof", por exemplo, é um mau serviço ao cinema, cuja única desculpa é a grande sequência de acção que o encerra). Como escrevi na altura, há duas coisas muito boas que saem do seu cinema: o poder do diálogo na construção e estabelecimento de cenas, e o seu primado na definição de qualidade das interpretações e dos momentos memoráveis; e a fixação e divulgação de uma memória cinematográfica que já vai sendo rara em consumidores de cinema com menos de quarenta anos. De resto, a sua obra habita numa realidade paralela à restante, com uma mitologia contínua e assente em pequenos pormenores para fãs e cujos pretextos fílmicos são homenagens, ou melhor, pastiches de outros géneros. Como escrevi há uns meses, não há nada de errado com isso: são opções de carreira e artísticas, que se respeitam e que têm o seu público alvo. No entanto, o seu culto vai crescendo, aumentando e disfarçando as suas falhas, de filme para filme.


"Django unchained", a sua obra mais recente, é um novo exercício de "história alternativa" (usando um termo criado pelo escocês Niall Ferguson, que também se diverte com estas coisas de imaginar "e se...", mas em nome da ciência) depois de "Inglourious basterds", um divertido e a espaços genial filme de bom entretenimento e pretensa reflexão. Desta vez, depois de os nazis terem a sua conta, são os comerciantes de escravos que apanham por tabela, na história de um antigo escravo, Django (referência cinéfila número um: é homónimo do herói interpretado por Franco Nero num filme de Sergio Corbucci), que depois de libertado tenta recuperar a sua mulher Broomhilda von Shaft (referência cinéfila número dois, que tendo em conta que o personagem é negro, não penso precisar de explicar), com a ajuda de King Schultz, um caçador de recompensas que se torna no seu mentor. O vilão nesta história é um sulista abominável que dá pelo nome de Calvin Candie, que gere o seu rancho "Candieland" e lutas entre escravos com o apoio do seu capataz negro Stephen. O pretexto está lançado para uma história de vingança (um tema recorrente nos seus filmes), que se vem a descobrir ser mais espalhafato do que outra coisa. "Django unchained" navega por entre querer representar, emocionalmente, o sofrimento dos escravos durante este período horrível da história americana, mas ao mesmo tempo, quer manter as suas ironias, os piscares de olho, a sabedoria cinéfila. O resultado é um filme que sabe a falso. A meu ver, é quase impossível ter os dois mundos: ou bem que se decide a criar uma obra revisionista de entretenimento, como fez, e bem, com "Inglourious basterds"; ou envereda por um tom sério e de análise do problema da escravatura. Pode manter a história de vingança e a a intriga de acção, não tenho problema com isso. Mas tentar fazer um filme de substância sem substância é uma miragem. Tarantino tenta arranjar um paralelo com a história de Siegfried e Broomhilda das mitologias germânicas, mas facilmente é esquecido quando o verdadeiro divertimento do realizador está noutro lado.


É uma contradição natural querer misturar um tom de fábula com o desejo de mostrar algo real e doloroso. Percebe-se que "Django unchained" é mais wishful thinking do que outra coisa. Isso verifica-se, por exemplo, na representação da violência. É excessiva e cartoonesca. Nada tem a ver com ser necessária ou não: um filme comporta-se dentro dos seus próprios termos, e nalguns autores, como John Woo, a hipérbole da violência faz parte do estilo e da mensagem, em simultâneo. Aqui, no entanto, Tarantino opta por tornar a morte e o jorrar de sangue como uma espécie de divertimento para o ecrã. Novamente, se a obra alegasse ser apenas um exercício de divertimento, percebia-se. Mas é notório que há uma tentativa de dizer algo mais. esta contradição marca e divide todo o filme. A presença de Christoph Waltz destina-se precisamente a aliviar esta antinomia. O realizador invoca o seu mago que hipnotiza com palavras e a cadência do seu discurso . A personagem que interpreta não é diferente, em estilo, do Coronel Landa da anterior obra, embora se situe numa área mais simpática. Li por ai que este King Schultz é amoral, mas quem diz isso deve estar visto toda a acção com palas nos olhos, ou adormecido durante o último terço. É irónico que, num filme que se diz sobre escravatura e emancipação, seja um personagem europeu a libertar os escravos, e em certa medida, a tentar contrapor uma luz de civilização vinda do velho continente por entre o Sul onde a ignorância está presente a cada esquina. Não é um desempenho brilhante, mas anima o filme e dá-lhe uma âncora séria, que permite a Tarantino lançar outras figuras mais coloridas (os irmãos Brittle, o Big Daddy) numa catadupa que mal nos permite conhecê-los. O próprio personagem principal treme e nunca me inspirou empatia... O esquema é o habitual, novamente: em "Kil Bill", Beatrix Kiddo tem também um evento traumático que nos deve levar a preocuparmo-nos com a sua missão de vingança e despertar emoção em nós. É, no entanto, Uma Thurman que constrói e ganha isso, com paciência e talento. Jamie Fox não é mau actor, mas não tem o talento da anterior musa de Tarantino. O seu Django estica os dedinhos para se tornar no Homem sem Nome da raça negra, mas é uma colecção de olhares intensos e pouca coolness que não me impressionou. A longa duração do filme (cortava-se meia hora e o espectador não perdia grande coisa....) não o ajuda, pois tem de esticar um boneco, penosamente, durante quase três horas.


Quando quer, o filme é bom. Uma cena quase surreal envolvendo um grupo de antecessores do Ku Klux Klan e uma discussão em torno da utilidade de um capuz tem não só uma veia cómica digna de Monty Python, como termina de forma muito satisfatória e com um estilo que, aqui sim, é bem merecido. Numa outra sequência na sala de jantar da mansão de Candie, bradamos "finalmente" quando os bons diálogos se encadeiam com consistência e Leonardo di Caprio, numa composição excelente de um reizinho patulante e cheio de si, mas que tem pouco de inútil ou burro, varre todos os actores da cena, e o filme praticamente todo, numa defesa da sua crença no racismo, seguida por uma explosão de raiva tão intensa quase espelhou a minha falta de paciência para com os problemas todos que o filme venha a ter. É um momento alto onde se vislumbra o que poderia ser esta obra com um pouco mais de trabalho e intenção. Já que estamos nas coisas boas, a direcção de fotografia é uma maravilha, mas com Robert Richardson, esperar menos é engano. De destacar, também o untuoso personagem de Samuel L. Jackson, totalmente deslocado daquilo que vemos dele, e das únicas figuras do filme cujo funcionamento interno está construído e se entende: eis um negro que prefere a escravatura, que lhe dá poder, à liberdade, que o torna num entre muitos. É difícil defender alguém que apoia uma ideologia que nos é dita como horrível durante tantas cenas, mas Jackson fá-lo e se bem que o seu Stephen não seja um personagem assim tão cinzento, é uma lufada de ar fresco ver alguma complexidade no meio deste artificialismo todo.


"Django unchained" anuncia, de forma ainda mais óbvia, que a fórmula Tarantino precisa de mudanças. O próprio realizador não verá isso, convencido que está de que é um génio absoluto, mas usar a exploitation como credo e móbil de toda uma obra cinéfila é quase um insulto ao seu próprio talento. Mesmo na cenas de acção, onde Tarantino costuma ter as garras afiadas, vacilam, e isto não pode ser um bom sinal. Eu percebo que para cinéfilos não honestos, que só conhecem a história do cinema através da filmografia do norte-americano, este possa parecer um mestre incontestado, capaz de ideias brilhantes. No entanto, para que sabe que Sérgio Leone só há um. Este não é um filme completamente maus, tem momentos de bom entretenimento; mas enquanto se entretém a si mesmo com ideias de grandeza, perde o espectador que anseia por vê-lo a libertar-se das correntes que o prendem à morrinha da repetição.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"Les miserables"


Em 1862, foi posto à estampa "Les miserables", hoje um clássico da literatura, da autoria de Victor Hugo. Embora celebrado actualmente, o livro, em cinco volumes, foi criticado na altura e retirando alguns comentários que se devem à atmosfera política contemporânea, uma das suas características mais evidentes é o excessivo sentimentalismo. Não é que o livro não coloque questões interessantes, relativas à moral, à redenção, ao primado da lei e à noção de Justiça (com maiúscula mesmo); mas seguindo os gostos de Victor Hugo, é de facto melodramática e exagerada, em situações e mesmo na escrita. Ninguém vai ao engano, pois estamos a falar do mesmo homem que escreveu "Notre Dame de Paris" (que alguns menos letrados conhecerão por "O corcunda de Notre-Dame") e se tornou num dos máximos expoentes do Romantismo na Europa. Não é à toa que no romance "Os Maias", João da Ega, sempre sóbrio, invectiva "Morte ao Romantismo e a todos os ídolos românticos, especialmente Victor Hugo". As suas obras são umas mistura de activismo social e emoção barroca, levada a extremos piedosos. No livro, Jean Valjean é basicamente um homem embrutecido pelo desprezo da sociedade e que apenas é salvo por um único bom acto de um bispo da província; e este género de eventos pequenos de significado grande vai-se repetindo durante o livro, amplificando o valor que a bondade inata do Homem tem mesmo numa sociedade desumanizante. Não surpreende que a Broadway, onde sentimentos exacerbados são apenas o quotidiano artístico, adoptasse o álbum-conceptual de um trio de franceses, seguindo "grosso modo" o enredo da obra do século XIX para um musical de sucesso estrondoso. Após a brincadeirinha de Susan Boyle ter reavivado  o interesse no espectáculo, demorou apenas três anos para que o filme chegasse aos cinemas.


A história simples mantém-se: Jean Valjean, um antigo condenado aos galés que esteve 19 anos presos por roubar uma pedaço de pão, é redimido pela acção de um pequeno bispo da província, mas continua a ser perseguido por um implacável oficial da lei chamado Javert. Durante anos, Valjean vai-se redimindo dos seus crimes, chegando a ser um homem de negócios bem sucedido, voltando a reencontrar Javert sem que este o reconheça. No entanto, quando despede injustamente uma das suas trabalhadoras, Fantine, e esta, por ser mãe solteira, se vira para a prostituição, morrendo no processo, Valjean adopta a sua filha, Cosette, como sua e foge para Paris, evitando Javert. Lá, tendo como pano de fundo eventos muito semelhantes à Comuna de Paris, o resto da história desenrola-se, entre os amores de Cosette por um revolucionário e a constante perseguição de Javert a Valjean. Logo para começar, isto é enredo a mais para um musical: "Les miserables" é um livro enorme e pensar que se pode adaptar o espírito do livro a um musical, com as complexidades que lhe dão valor, é um logro.O tipo de história que Victor Hugo escreveu presta-se aos excessos do género, mas o escritor francês tinha outro género de ideias em mente quando escreveu a obra, e praticamente nenhuma delas está transposta para o ecrã. Admito que muitos temas são orelhudos, e no fundo é isso que gera admiração entre os seus fãs, este é um filme compridíssimo, aborrecido e que morre depois da meia hora. Coincidência ou não, é que Anne Hathaway desaparece da história. Pela superior qualidade da sua performance, não é coincidência: o seu "I dreamed a dream" é uma vitória de verdade e honestidade no meio de uma emoção forçada de duas horas e quarenta e cinco minutos. Todo este tempo torna-se também penoso pela constante repetição de temas e cenas, onde apenas mudam os personagens e os seus lugares nelas.


O realizador Tom Hooper tem uma intenção clara, que é a de tornar "real" o teatro. A sua câmara mergulha na sujidade das ruas francesas e oferece grandes planos lindíssimos de cidades e locais naturais. É deliberado, até por colocar os actores a cantar "em directo" nos cenários. No entanto, Hooper quer também oferecer ao filme diferentes momentos emocionais que não passam só pela tristeza, e no entanto, quando o tenta, usa o mesmo estilo para todos os momentos. É uma repetição que torna a sua realização do filme banal, embora não seja má. Há ideias e intenções, mas Hooper não tem classe para mais. Este mesmo problema estava presente, por exemplo, em "The king's speech", mas num filme mais comedido, as falhas não se notam tanto. Aqui, falamos de um épico de grande escala cruzado com musical. O seu filme vai sendo salvo aqui e ali por actores  A história dos amantes jovens, interpretados por Amanda Seyfried e Eddie Redmayne, leva lágrimas ao tédio, mas Hugh Jackman, com o mesmo carisma animal que o tornou num Wolverine perfeito, tenta carregar toda a obra às costa, com a mesma força que fez de Valjean uma lenda. Jackman é perfeito por dar precisamente emoção e intenção às palavras e tons. Não é um cantor excepcional  mas nenhum grande cantor conseguiria atingir as emoções que faz ressoar. Os seus choques com Russel Crowe (cuja voz é discutível, mas a presença imponente como Javert é um contraponto bem conseguido com Jackman) são o único verdadeiro interesse do filme, precisamente por ser a relação que melhor desenha, no musical, um dos valores principais do livro: o confronto entre a possibilidade de redenção de um Deus maior e a irredutibilidade e preconceito que constrói as leis dos homens.


Em suma, um filme para quem já é fã deste musical. Quem não é fã sequer de musicais, também não será este a convencer-vos (quase três horas de filme cantado pede resistência extrema). Leitores de Victor Hugo, agarrem no livro: certamente que ver esta obra não será o vosso último desejo de condenados à morte.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Zero dark thirty"



O cinema norte-americano passou uma década a penar a herança do 11/9 e das guerras subsequentes no Iraque e no Afeganistão com resultados variados do ponto de vista artístico. O cinema documental foi talvez o que melhor lidou com a temática, tendo "Fahrenheit 9/11", divertido mas ingénuo e até leviano, feito um estardalhaço inesperado para o género (ganhou a Palma de Ouro em Cannes,polémica, e continua a ser o documentário com melhor performance nas bilheteiras em toda a história). No entanto, não podemos esquecer outras obras, como o excelente "Taxi to the dark side",de Alex Gibney, ou "Standard operating procedure", de Errol Morris, que, com estilos diferentes, fizeram o favor de mostrar o outro lado da guerra contra o terrorismo. Se nestes dois últimos casos temos um par de realizadores que estruturam filmes razoavelmente factuais, a obra de Michael Moore marca o tom geral do cinema desta temática: lamentos liberais a plenos pulmões. "Rendition", "Syriana" e "A mighty heart", por exemplo, marcam um tom claro: há republicanos e capitalistas maus que causaram esta guerra e se estão a aproveitar dela. A guerra é muito má e a tortura horrível. Não é que a mensagem esteja errada; mas é pronunciada sem a mínima complexidade. Difere, por exemplo, de "Lions for lambs", uma obra de Robert Redford que, não sendo brilhante, é um estudo mais equilibrado da questão. Fora das abordagens ideológicas, dois filmes destacam-se por terem optado por uma abordagem factual: "World Trade Center", de Oliver Stone e "United 93". Diferem em qualidade (o primeiro, com um tom sério e pesado que por vezes aborrece, embora em dois ou três personagens consiga colocar perguntas que realmente interessam; o segundo um visceral e espantoso exercício de cinema-verité que atinge como nenhum outro filme o lado de tragédia humana primária que aconteceu naquele dia), mas optam por apresentar a frieza da realidade, deixando a parte emocional connosco.


"Zero dark thirty", o excelente novo filme de Kathryn Bigelow, opta por este registo quase desligado da emoção e a meio caminho entre o jornalismo e o cinema. Em linhas gerais, segue todo o processo que levou à operação que localizou e eliminou Bin Laden em 2011, e como se não bastasse a polémica do tema, o filme tem sido mais falado pela sua posição moral relativamente à tortura do que propriamente pelos seus méritos e deméritos como objecto cinematográfico. É uma prova, acho, da sua mais-valia enquanto filme, pois adopta um tom de deixar os factos falarem por si. Cada um interpreta como quiser e decide o valor moral do que está a ver. No meu caso, saí com uma ideia oposta à que surge na imprensa: o filme não faz, por exemplo, o elogio da tortura. Na verdade, a personagem principal do filme, simplesmente Maya, vem-se a revelar a principal responsável pela captura de Bin Laden, precisamente por usar uma abordagem contrária à da lógica de tortura. Optando pelo jogo psicológico e pela inteligência, ela contorna precisamente a falta de resultado que os interrogatórios coercivos vinham ter até então. A primeira meia hora do filme é a desumanização de um prisioneiro do exército, até um ponto onde até o próprio interrogador se sente afectado, e a conclusão de que apenas uma abordagem diferente pode resultar. Como se comprovará. Entre os avanços e recuos do filme, a inteligência e raciocínio presentes no trabalho detectivesco de Maya e a sua equipa são, ao mesmo tempo, uma crítica à tortura e à maneira como o bravado do americanismo levou à demora de dez anos para a captura do terrorista mais mediático do século XXI; e também a diferença entre o que é civil e o que é bárbaro, e como aquilo que é bárbaro não é necessariamente certo. A presença de cenas de tortura numa história como esta é apenas natural pelas informações que dispomos (depois de Guantanamo e Abu Grahib) e não um acenar de cabeça positivo à sua utilização. Outra conclusão parece-me ser desonesta. "Zero dark thirty" destaca-se, precisamente, por não ser político.


É irónico que seja uma mulher a causar a queda de um homem cuja ideologia contemplava um regime teocrático que cortaria muitos direitos ao sexo feminino. Mas mais importante do que isso, Maya é uma criação assombrosa de Jessica Chastain, numa interpretação feroz, ao mesmo cerebral e primária, na maneira como não esconde os seus intentos e desejos. Segue um pouco a tradição do génio inadaptado, com muito poucas capacidades sociais e diplomáticas. Numa cena, a maneira como quase chama idiotas a todos os elementos da alta cúpula da CIA é um prazer de ver apenas porque estamos convencidos, até ao momento, de que ela é a pessoa (não mulher... feministas, parai) mais capaz para aquela missão. Maya navega por entre fuinhas políticos que querem usar a luta contra o terrorismo em seu próprio proveito (quando um superior a tenta forçar a abandonar a caça a Bin Laden para se dedicar a alvos menores, mas que aparecerão nos noticiários, Maya redu-lo a um farrapo político através de um tipo de chantagem que convence o espectador de que não está presença de uma santa) e evita durante quase todo o filme mostrar as suas emoções. Nem mesmo quando a oportunidade surge: num encontro particular com o director da CIA, este pergunta-lhe que mais fez ela na CIA para além de caçar Bin Laden. Num outro filme menor, este seria um momento de grandiloquência emotiva, onde a personagem principal explicaria, num discurso emotivo, o que lhe ia na alma, histórias de anos de luta a necessidade de capturar o terrorista como símbolo de algo. Mantendo as suas emoções encerradas, Maya responde simplesmente que não fez mais nada. É este distanciamento que mantém em relação ao espectador que permite que os momentos raros em que se permite a quebrar nos atinjam com uma força inesperada.


Kathryn Bigelow é a principal responsável do filme. Mark Boal escreveu um fastidioso e completo argumento factual que lhe serve de planta, mas Bigelow torna a aridez do real num espaço de tensão e imediatez constantes, uma imagem de marca que vem de toda a sua carreira e que a maior parte dos cinéfilos pôde conhecer em "The hurt locker". Aqui, ela mantém esse talento para estabelecer de imediato as set-pieces, a sua geografia e participantes, de maneira a envolver-nos de imediato na acção. Nalguns momentos, Bigelow transforma essas cenas de acção quase em obras de arte geométrica. Uma cena, em particular, num mercado do Paquistão, em Abotabbad, enerva a tal ponto que cansa só de ver. No entanto, e porque esse seria o momento esperado para marcar o filme, é no raid final que temos direito a uma seqência de acção excepcional não pelo espectáculo, mas sim pela precisão fria e pelos pequenos pormenores que a tornam real. Não há grandes heroísmos, explosões ruidosas e tirando um momento mais épico (e que não devia estar nos planos dos soldados) é discreta, quase silenciosa e muito directa. O momento em que culmina é não grandiloquente, mas sim regular. Mais uma dia no trabalho. É surreal, e os próprios marines demoram a digeri-lo. Não é um soco no estômago: é um suspiro. Toda a ansiedade dessa sequência de quase meia hora passa para nós e reside não no seu desfecho, mas na execução. Eu estava tão alterado que tal como os marines, inicialmente, até duvidei que aquele corpo no chão fosse de Bin Laden.


No final, Maya finalmente quebra. Chegou o fim da caçada; e agora? Ela não sabe. Aliás, tal como os EUA, que fecharam este capítulo de maneira criticada por todos, a morte de Bin Laden marca um final, mas também um início da vida depois da sombra do onze de Setembro. A bela e discreta banda sonora de Alexandre Desplat ergue num pálio a emoção, mas Bigelow recusa-se, ainda assim, a retirar-nos o peso de termos uma opinião pessoal. Bin Laden morreu. Métodos questionáveis foram usados. Puro intelecto esteve envolvido. Todos perderam, de uma maneira ou de outra. Agora, cada um sabe o que sente em relação a isso

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

"Silver linings playbook"



A apologia do loucura é um cliché eterno do cinema. Ser louco não é necessariamente ser mau, e no cinema, os loucos seduzem-nos e atraem-nos, ao contrário da vida real, onde nos repelem para 70 metros de distância. Esta mania tem entrado nos últimos anos num território insuspeito: a comédia romântica. Quem devemos culpar? Não sei bem. Talvez a estranha popularidade entre o público joveme  amante de ironias que elevou a "manic pixic girl" a ícone dos amores deste século XXI. A MPG nada mais é do que alguém com quem o protagonista masculino cria uma ténue ligação, normalmente a partir de um gosto musical comum, possuindo em si um conjunto de características que, tal como os loucos, adoramos no cinema, mas que nos chocariam e afastariam no mundo real. De certa maneira, tem lógica, porque muitas das vezes, a maneira mais segura de experimentarmos a loucura é no cinema.


"Silver linings playbook", uma simpática, sorridente e um pouco pateta "dramédia" romântica é apanhada nesta corrente, mas com um twist que torna o filme ao mesmo tempo irritante e sedutor: ambos os protagonistas têm um problema mental. No caso de Pat Solitano, é a bipolaridade, que explode em todo o seu esplendor quando apanha a esposa em casa com outro homem, que apanha literalmente a explosão na cara. Depois de cumprir seis meses num hospital psiquiátrico, cumprindo a pena estipulada pelo tribunal, Pat diz-se preparado para a vida real e está especialmente obcecado em recuperar a mulher. Encontra em casa uma mãe que o ama e que também tem de cuidar de um pai desempregado, fanático por futebol americano e que tem traços de obsessão-compulsão. Numa tentativa de fazê-lo sentir integrado, o seu melhor amigo combina um jantar de boas vindas, e é aí que conhece Tiffany, a segunda louca desta equação, embora com um problema mais apelativo: está a ultrapassar uma crise de ninfomania despoletada pela morte do marido. Há uma atracção estranha entre ambos e até ao final, o conflito entre essa atracção, a obsessão de Pat e o gosto por futebol americano do pai de Pat cruza-se com um concurso de dança, criando uma história que cativa na mesma quantidade que confunde.



O filme tem diversas qualidades que não se podem negar. Não é a primeira vez que David O. Russel dirige comédias românticas estranhas. "I heart Huckabees" é até o exemplo mais comercial, mas este é o homem que dirigiu "Spanking the monkey", uma comédia que gira em torno do incesto. Por isso, sabe tornar uma premissa de razoável  bizarria num filme coerente e digerível; e é um facto que "Silver linings playbook" tem imenso charme. Um dos motivos é, no entanto, uma fraqueza: a escolha de actores principais. Não é que estejam mal, pelo contrário: Bradley Cooper é uma revelação, pelo menos para mim, no papel de Pat, um indivíduo que não consegue largar o passado, a um ponto que se torna idiota na história do filme. Encarna convincentemente um indivíduo bipolar e sem filtro, equilibrando a rudeza e o apelo ao espectador. Jennifer Lawrence tem um desempenho que nem sei bem se lhe chame desempenho... Já vi entrevistas dela e Lawrence é assim: cativante, emocionalmente desbocada, intensa, entusiasmante. Há uma dor latente que a actriz traz à personagem de Tiffanny e que, em última instância, vira a história e a própria vida de Pat. Se um espectador heterossexual não sair apaixonado por Tiffany deste filme, terá um problema. No entanto, quando este dois actores (de invejável pool genética) encarnam estes personagens, não nos parece que tenham assim tantos problemas quanto isso... Não é que não sejam credíveis nos seus papéis; mas são Bradley Cooper e Jennifer Lawrence. Bradley Cooper, apesar de tudo, disfarça como pode este factor, porque há pontos na história em que Pat chega a pontos patéticos mais trágicos do que cómicos. Ainda assim, a sensação passou-me. Há também um elogio à loucura que é falso: se todos são, de alguma maneira, loucos, a loucura não é especial. Na verdade, a normalidade é que é especial, e por isso é celebrada no filme como sendo louca. Mas se as pessoas, de facto, funcionam, não pode ser, por definição, loucura, certo?


O argumento possui problema também, na minha opinião. O primeiro acto, e o começo do segundo, arrastam-se demasiado. O filme repete temas e esquemas em cenas diferentes, o que atrasa o arranque dauilo que queremos realmente ver: Tiffany e Pat a interagir um com o outro. Há também um personagem quase decorativo de um polícia que deve controlar Pat na comunidade e cuja única função parece ser atrair o nosso ódio. A relação entre Pat e o pai, de suposta crispação, nunca fica estabelecida como deve ser, e isso nem seria problema de não houvesse um momento específico no filme onde a dor dá lugar à confissão e é o ressoar desse momento que faz Pat acordar um pouco para a vida. Esta cena só é salva por um actor inteligente como é Robert de Niro, que do nada cria tudo o que precisamos saber para nos ligarmos à relação entre estes dois personagens. De Niro tem, aliás, uma performance muito interessante, que faz sorrir aqueles que, como eu, sentem sempre alguma tristeza ao vê-lo arrastar-se por filmes que não merecem o seu talento. Este papel, que marcou o seu regresso aos Óscares, é esse regresso de alguma qualidade à sua carreira. A célula familiar, que envolve também a mãe (uma Jacki Weaver que não percebo muito bem porque foi nomeada para os Óscares), é também o cliché da família disfuncional que vai-se a ver, e afinal é boa, característica de um certo cinema indie norte-americano. Não é que os clichés sejam algo de inerentemente mau. A maneira como são apresentados e desenvolvidos é importante, e neste filme, não achei que fosse a melhor.


No entanto, "Silver linings Playbook" está programado para ser um feel good movie perfeito. Consegue-o: quando saí da sala de cinema, vinha de sorriso de orelha a orelha, pensando ter visto algo de realmente excelente. Só no dia seguinte, quando comecei a pensar realmente no filme, é que os problemas aparentes surgiram. O mérito é de David O. Russell, que do caos, arranca uma obra positiva e de história de vida temperada com um pouco de bizarro. Um plano, perto do final do filme, sela o acordo: é um long shot acelerado, que se afasta dos dois personagens e é exactamente aquilo que passa na minha cabeça quando beijo uma rapariga de quem gosto pela primeira vez. É um pouco como o amor: mexendo no nosso coração, atrapalha tudo o resto que devia ser ocupação da cabeça; e conseguir isto num filme já é uma proeza.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Oscars 2012: as nomeações



Amanhã, chega o segundo dia mais esperado na indústria do cinema norte-americano: o anúncio das nomeações para os Óscares. Este ano é particularmente animado e memorável, pois chegados a um mês da cerimónia, não existe um favorito claro. Há três ou quatro filmes que  se destacam, mas nesta altura, ao contrário do que tem acontecido nos últimos anos, a emoção existe e as possibilidades estão ainda em aberto. Isso torna prever os nomeados um exercício mais complicado, visto que não se sabe quantos serão os lugares para Melhor Filme. São cinco, de certeza, mas podem ir até dez. A bem da clareza, colocarei as minhas previsões para essa categoria específica por ordem de probabilidade: os cinco primeiros seriam a minha aposta para um ano normal de quinteto. O resto são acrescentos. Saltarei as categorias de curtas, porque honestamente, nem sei quem são os finalistas. Também a de canção: digo-vos j+a que ganha a "Skyfall", de Adele. Pronto, podem apostar; e passemos ao que interessa.


Melhor filme

"Lincoln"
"Zero dark thirty"
"Les miserables"
"Life of Pi"
"Argo"
"The silver linings playbook"
"Beats of the souther wild"
"Django unchained"
"Moonrise kingdom"
"Skyfall"

Alt. - "Flight"

Melhor realizador

Steven Spileberg - "Lincoln"
Kathryn Bigelow" - "Zero Dark Thirty"
Ben Affleck - "Argo"
Ang Lee - "Life of Pi"
Tom Hooper - "Les miserables"

Alt. - Quentin Tarantino, "Django unchained"

Melhor actor

Daniel Day-Lewis - "Lincoln"
Hugh Jackman - "Les miserables"
John Hawkes" - The sessions"
Denzel Washington - "Flight"
Joaquin Phoenix - "The master"

Alt.  Bradley Cooper - "The silver linings playbook"

Melhor actriz

Jennifer Lawrence - "The silver linings playbook"
Jessica Chastain - "Zero dark thirty"
Marion Cotillard - "Rust and bone"
Naomi Watts - "The impossible"
Emmanuelle Riva" - "Amour"

Alt. - Quvenzhané Wallis - "Beasts of the southern wild"

Melhor actriz secundária

Sally Field - "Lincoln"
Anne Hathaway - "Les miserables"
Helen Hunt - "The sessions"
Amy Adams - "The master"
Maggie Smith - "The best exotic marigold hotel"

Alt. - Ann Dowd, "Compliance"

Melhor actor secundário

Tommy Lee Jones - "Lincoln"
Alan Arkin" - "Argo"
Robert de Niro - "The silver linings playbook"
Philip Seymour Hoffman - "The master"
Javier Bardem - "Skyfall"

Alt. Leonardo di Caprio - "Django unchaine"



Melhor argumento original

"Zero dark thirty" - Mark Boal
"The master" - Paul Thomas Anderson
"Moonrise kingdom" - Roman Coppola e Wes Anderson
"Flight" - John Gatins
"Looper" - Rian Johnson

Melhor argumento adaptado

"Lincoln" - Tony Kushner
"Argo" - Chris Terrio
"Life of Pi" - David Mgee
"The perks of being a wallflower" - Stephen Chbosky
"Beats of the southern wild" - Behn Zeitlin, Lucy Alibar


Melhor montagem

"Lincoln" - Michael Kahn
"Argo" - William Goldenberg
"Zero dark thirty" - Dylan Tichenor, William Goldenberg
"Life of Pi" - Tim Squyers
"Les miserables" - Melanie Oliver, Chris Dickens

Melhor fotografia

"Lincoln" - Janusz Kamisnky
"Life of Pi" - Claudio Miranda
"Skyfall" - Roger Deakins
"Django unchained" - Robert Richardson
"The master" - Mihai Malamaire Jr. 

Melhor documentário

"The imposter"
"Searching for sugar man"
"The gatekeepers"
"Never sorry"
"The invisible war"

Melhor filme de animação

"Wreck-it Ralph"
"Brave"
"Frankenweenie"
"Paranorman"
"Rise of the guardians"

Melhor filme estrangeiro

"Amour" - Áustria
"Intouchables" - França
"No" - Chile
"War witch" - Canadá
"A royal affair" - Dinamarca


Melhor caracterização

"Lincoln"
"Les miserables"
"The hobbit"

Melhores efeitos visuais

"The avengers"
"The hobbit"
"Life of Pi"
"Prometheus"
"The dark knight rises"

Melhor montagem sonora

"Skyfall"
"Lincoln"
"Les miserables"
"Zero dark thirty"
"The avengers"

Melhor som

"Skyfall"
"Argo"
"Lincoln"
"The avengers"
"The hobbit"

Melhor cenografia

"Lincoln"
"Les miserables"
"Anna Karenina"
"Django unchained"
"The hobbit"

Melhor guarda-roupa

"Lincoln"
"Anna Karenina"
"Les miserables"
"Cloud atlas"
"The hobbit"

Melhor banda sonora

"Lincoln"
"Life of pi"
"Brave"
"Cloud atlas"
"Skyfall"

"Flight"


"Flight", qualquer que fosse a sua qualidade, seria sempre um dos filmes mais importantes dos últimos anos. O motivo? O regresso de Robert Zemeckis à imagem real. Depois de anos refugiado nos seus estúdios a expandir os limites da tecnologia de motion-capture, roubando-o assim de outros filmes onde a terceira dimensão está muito mais presente, "Flight" marca a primeira vez desde o excelente "Castaway"que Zemeckis se aventura no cinema de imagem real. O resultado é frustrante apenas por um motivo: por que raio andou o norte-americano enfiado tanto tempos no mundo dos bonecos?


A história começa com num quarto de hotel, onde álcool, droga e uma mulher nua servem de cartão de visita para Whip Whittaker (Denzel Washington), um piloto de aviões extremamente talentoso, mas com uma queda para o lado selvagem da vida. Depois de conseguir fazer descolar o avião em circunstâncias complicadas, enfrenta pouco depois problemas mecânicos e sobe ao estatuto de herói quando controla o avião para uma aterragem forçada num campo ao lado de uma igreja. Milagrosamente, morrem apenas seis pessoas, duas delas da tripulação. No entanto, o piloto rapidamente desce do pedestal quando os resultados dessa noite no quarto de hotel aparece nos testes sanguíneos. De herói, Whittaker passa a suspeito de homicídio e responsável pela queda do aparelho


A investigação e julgamento interessam pouco no filme em si, servindo apenas de catalisador do verdadeiro motivo de interesse da história: os demónios que atormentam o piloto de aviões e que o levam a procurar refúgio em substâncias de escape. WhipWittaker (um dos melhores nomes de personagem dos últimos tempos) é o clássico génio perturbado. A sua proeza incute em nós a ideia de que este pode ser um alcoólico funcional. Mas o seu comportamento contraditório leva-nos a encontrar um indivíduo extremamente confuso, cujo talento não ultrapassa a sua inabilidade em lidar consigo mesmo. Denzel Washington tem um dos melhores desempenhos da sua carreira (naquele que é também um regresso, mas aos papéis complexos), vestindo a carcaça de um indivíduo que não se consegue aterrar a si própria sem segurança, numa queda livre em que participa com uma arrogância majestosa de quem sabe o que vale nos ares, mas incapaz de pôr os pés na terra relativamente aos seus verdadeiros problemas. Há momentos na sua performance que me deixaram desconfortável, pela frontalidade a que Denzel nunca foge. Sem nunca tentar desculpar o personagem, há dois momentos onde Whip exerce uma chantagem emocional desonesta sobre dois personagens, com esquemas e manipulações que apenas o tornam mais assustado e imperfeito; e no entanto, nunca conseguimos desejar realmente que seja condenado. 



O excelente argumento de John Gatins explora também a temática religiosa. Alguns dos sobreviventes atribuem o milagre não ao piloto, mas a Deus; o avião despenha-se junto a uma igreja, enquanto a congregação rezava no exterior, e derrubando uma das torres do edifício; uma mulher toxicodependente, que Whitttaker ajuda a sair do vício (num raro espaço de claridade onde pensa conseguir também sair do seu sem a ajuda de ninguém) tenta convencê-lo a entrar nos Alcoólicos Anónimos (onde a religião é uma base importante); e num pormenor que não é acaso, os passageiros do avião são amiúde referidos como "souls" (almas) nas várias descrições do acidente. Quererá o filme apontar este desastre como um acto divino? Se sim, quem é o alvo? Whittaker, que tendo a vida destruída, deve acordar do seu torpor de dependência? Nesse caso, porque tiveram de morrer seis pessoas para que uma alcançasse a claridade?  Toda a experiência posterior ao desastre é um confronto entre a arrogância inerente de um homem que se julga todo poderoso contra um Deus; a certa altura, o seu co-piloto, deixado paraplégico pelo desastre, exorta Whittaker a converter-se a Jesus, pois só ele é o Salvador e último juiz dos nossos actos. Admira-se o filme por ser sincero e não tornar a situação cómica, como outros fariam. Mas este pedido para que Whittaker mergulhe na sua consciência, e em si mesmo, apenas o leva a nova ronda com o álcool, numa fuga aos seus erros e responsabilidade.



O filme tem alguns desempenhos secundários interessantes (de cada vez que John Goodman aparece, este drama de adultos vira uma comédia de adultos), mas o centro é a personagem de Denzel Washington, como acontece nos filmes de Zemeckis pós- "Forrest Gump", que se ancoram num actor ou actriz principais carismáticos (Tom Hanks, Jodie Foster, Michelle Pfeiffer) e deixam que o resto gire à sua volta e assente. Zemeckis afia as suas garras e monta um filme soberbamente realizado, tanto nos momentos grandiosos como nos pormenores. O desastre de avião, por exemplo, é uma monstruosa cena que consegue superar a sua anterior desventura neste género de cenas ) em "Castaway": raramente saindo do cockpit do avião, é tensão a subir numa queda, estando tudo nos gestos e face dos actores, e raramente se dando ao exibicionismo de money-shots; mas quando se dá, um avião invertido é uma daquelas imagens que nos deixa momentaneamente sem fôlego. Num momento mais calmo, o confronto entre a decência de Whittaker e um frigorífico que bem se podia chamar El Dorado é de uma tensão portentosa e que supera catadupas de explosões e tiros em qualquer filme. Depende da nossa empatia com o personagem, e resulta, porque Zemeckis não se limita apenas a ser um excelente realizador de grandes momentos: constrói histórias, a pouco e pouco, que explodem no final com um gosto que sabemos ser inevitável. 



O filme tem defeitos também (há uma historiazinha paralela envolvendo toxicodependência que arranca cedo de mais e retira alguma força ao poderoso arranque inicial do filme), mas que não haja enganos: é uma daquelas obras de que se diz habitualmente que ninguém quer ver mais; e no entanto, já rendeu para cima de 100 milhões de dólares. Por muito que tentem adormecer o cérebro das pessoas, elas querem complexidade, quando lha damos. Aqui, embora sendo apenas uma palavra, a complexidade vem logo no título. O "Flight" do filme não se refere ao avião: refere-se ao voo da alma quando esta se encontra leve e livre das mentiras. Apenas quando Whip Whittaker se decidir a confrontar com os demónios poderá, de facto, entrar numa graça mais importante que a de Deus: a sua.