segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Zero dark thirty"



O cinema norte-americano passou uma década a penar a herança do 11/9 e das guerras subsequentes no Iraque e no Afeganistão com resultados variados do ponto de vista artístico. O cinema documental foi talvez o que melhor lidou com a temática, tendo "Fahrenheit 9/11", divertido mas ingénuo e até leviano, feito um estardalhaço inesperado para o género (ganhou a Palma de Ouro em Cannes,polémica, e continua a ser o documentário com melhor performance nas bilheteiras em toda a história). No entanto, não podemos esquecer outras obras, como o excelente "Taxi to the dark side",de Alex Gibney, ou "Standard operating procedure", de Errol Morris, que, com estilos diferentes, fizeram o favor de mostrar o outro lado da guerra contra o terrorismo. Se nestes dois últimos casos temos um par de realizadores que estruturam filmes razoavelmente factuais, a obra de Michael Moore marca o tom geral do cinema desta temática: lamentos liberais a plenos pulmões. "Rendition", "Syriana" e "A mighty heart", por exemplo, marcam um tom claro: há republicanos e capitalistas maus que causaram esta guerra e se estão a aproveitar dela. A guerra é muito má e a tortura horrível. Não é que a mensagem esteja errada; mas é pronunciada sem a mínima complexidade. Difere, por exemplo, de "Lions for lambs", uma obra de Robert Redford que, não sendo brilhante, é um estudo mais equilibrado da questão. Fora das abordagens ideológicas, dois filmes destacam-se por terem optado por uma abordagem factual: "World Trade Center", de Oliver Stone e "United 93". Diferem em qualidade (o primeiro, com um tom sério e pesado que por vezes aborrece, embora em dois ou três personagens consiga colocar perguntas que realmente interessam; o segundo um visceral e espantoso exercício de cinema-verité que atinge como nenhum outro filme o lado de tragédia humana primária que aconteceu naquele dia), mas optam por apresentar a frieza da realidade, deixando a parte emocional connosco.


"Zero dark thirty", o excelente novo filme de Kathryn Bigelow, opta por este registo quase desligado da emoção e a meio caminho entre o jornalismo e o cinema. Em linhas gerais, segue todo o processo que levou à operação que localizou e eliminou Bin Laden em 2011, e como se não bastasse a polémica do tema, o filme tem sido mais falado pela sua posição moral relativamente à tortura do que propriamente pelos seus méritos e deméritos como objecto cinematográfico. É uma prova, acho, da sua mais-valia enquanto filme, pois adopta um tom de deixar os factos falarem por si. Cada um interpreta como quiser e decide o valor moral do que está a ver. No meu caso, saí com uma ideia oposta à que surge na imprensa: o filme não faz, por exemplo, o elogio da tortura. Na verdade, a personagem principal do filme, simplesmente Maya, vem-se a revelar a principal responsável pela captura de Bin Laden, precisamente por usar uma abordagem contrária à da lógica de tortura. Optando pelo jogo psicológico e pela inteligência, ela contorna precisamente a falta de resultado que os interrogatórios coercivos vinham ter até então. A primeira meia hora do filme é a desumanização de um prisioneiro do exército, até um ponto onde até o próprio interrogador se sente afectado, e a conclusão de que apenas uma abordagem diferente pode resultar. Como se comprovará. Entre os avanços e recuos do filme, a inteligência e raciocínio presentes no trabalho detectivesco de Maya e a sua equipa são, ao mesmo tempo, uma crítica à tortura e à maneira como o bravado do americanismo levou à demora de dez anos para a captura do terrorista mais mediático do século XXI; e também a diferença entre o que é civil e o que é bárbaro, e como aquilo que é bárbaro não é necessariamente certo. A presença de cenas de tortura numa história como esta é apenas natural pelas informações que dispomos (depois de Guantanamo e Abu Grahib) e não um acenar de cabeça positivo à sua utilização. Outra conclusão parece-me ser desonesta. "Zero dark thirty" destaca-se, precisamente, por não ser político.


É irónico que seja uma mulher a causar a queda de um homem cuja ideologia contemplava um regime teocrático que cortaria muitos direitos ao sexo feminino. Mas mais importante do que isso, Maya é uma criação assombrosa de Jessica Chastain, numa interpretação feroz, ao mesmo cerebral e primária, na maneira como não esconde os seus intentos e desejos. Segue um pouco a tradição do génio inadaptado, com muito poucas capacidades sociais e diplomáticas. Numa cena, a maneira como quase chama idiotas a todos os elementos da alta cúpula da CIA é um prazer de ver apenas porque estamos convencidos, até ao momento, de que ela é a pessoa (não mulher... feministas, parai) mais capaz para aquela missão. Maya navega por entre fuinhas políticos que querem usar a luta contra o terrorismo em seu próprio proveito (quando um superior a tenta forçar a abandonar a caça a Bin Laden para se dedicar a alvos menores, mas que aparecerão nos noticiários, Maya redu-lo a um farrapo político através de um tipo de chantagem que convence o espectador de que não está presença de uma santa) e evita durante quase todo o filme mostrar as suas emoções. Nem mesmo quando a oportunidade surge: num encontro particular com o director da CIA, este pergunta-lhe que mais fez ela na CIA para além de caçar Bin Laden. Num outro filme menor, este seria um momento de grandiloquência emotiva, onde a personagem principal explicaria, num discurso emotivo, o que lhe ia na alma, histórias de anos de luta a necessidade de capturar o terrorista como símbolo de algo. Mantendo as suas emoções encerradas, Maya responde simplesmente que não fez mais nada. É este distanciamento que mantém em relação ao espectador que permite que os momentos raros em que se permite a quebrar nos atinjam com uma força inesperada.


Kathryn Bigelow é a principal responsável do filme. Mark Boal escreveu um fastidioso e completo argumento factual que lhe serve de planta, mas Bigelow torna a aridez do real num espaço de tensão e imediatez constantes, uma imagem de marca que vem de toda a sua carreira e que a maior parte dos cinéfilos pôde conhecer em "The hurt locker". Aqui, ela mantém esse talento para estabelecer de imediato as set-pieces, a sua geografia e participantes, de maneira a envolver-nos de imediato na acção. Nalguns momentos, Bigelow transforma essas cenas de acção quase em obras de arte geométrica. Uma cena, em particular, num mercado do Paquistão, em Abotabbad, enerva a tal ponto que cansa só de ver. No entanto, e porque esse seria o momento esperado para marcar o filme, é no raid final que temos direito a uma seqência de acção excepcional não pelo espectáculo, mas sim pela precisão fria e pelos pequenos pormenores que a tornam real. Não há grandes heroísmos, explosões ruidosas e tirando um momento mais épico (e que não devia estar nos planos dos soldados) é discreta, quase silenciosa e muito directa. O momento em que culmina é não grandiloquente, mas sim regular. Mais uma dia no trabalho. É surreal, e os próprios marines demoram a digeri-lo. Não é um soco no estômago: é um suspiro. Toda a ansiedade dessa sequência de quase meia hora passa para nós e reside não no seu desfecho, mas na execução. Eu estava tão alterado que tal como os marines, inicialmente, até duvidei que aquele corpo no chão fosse de Bin Laden.


No final, Maya finalmente quebra. Chegou o fim da caçada; e agora? Ela não sabe. Aliás, tal como os EUA, que fecharam este capítulo de maneira criticada por todos, a morte de Bin Laden marca um final, mas também um início da vida depois da sombra do onze de Setembro. A bela e discreta banda sonora de Alexandre Desplat ergue num pálio a emoção, mas Bigelow recusa-se, ainda assim, a retirar-nos o peso de termos uma opinião pessoal. Bin Laden morreu. Métodos questionáveis foram usados. Puro intelecto esteve envolvido. Todos perderam, de uma maneira ou de outra. Agora, cada um sabe o que sente em relação a isso

2 comentários:

  1. Concordo com quase tudo e acho que o texto está muitíssimo bem escrito. Acho que tens razão na interpretação da tortura no filme. Há personagens que em determinados demonstram angústia sobre os "meios" da missão (a tortura) e este filme, como muitos bons que andam por aí, não te diz o que pensar, não te dá um tom, e é ambíguo o suficiente para deixar ao espectador margem para interpretar e ter uma opinião sobre a narrativa da estória. Ainda assim - e para mim que sou das Relações Internacionais e dos Estudos para a Paz - faz-me confusão que as questões, angústias do filme se cinjam aos "meios" e nunca ao "fim" da missão (a morte do Bin Laden). Na verdade, a questão da simples prisão e julgamento nunca está em cima da mesa. E, por isso, não sei bem porquê, houve partes do filme que ao pensar nisto dei por mim a lembrar-me de um episódio da série Newsroom, onde se noticia, de forma triunfal, a morte do Bin Laden, e perante o qual pensei: mas não era suposto isto ser uma série de questionamento do jornalismo?
    beijos,
    rita

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  2. Obrigado pelos elogios, Rita, antes de mais. Concordo que, de facto, as questões morais acerca da morte de Bin Laden não aparecem no filme, embora eu lhe chame uma vez de "execução" no texto. Ainda não vi a série "Newsroom", mas não me surpreender que tal tenha acontecido. Aaron Sorkin, o criador da série, é o mesmo homem que escreveu a maior parte dos episódios de "The west wing" e esse género de ponderações e decisões faziam parte do arsenal do presidente Bartlett quando lidava com terroristas estrangeiros (estranhamente, ou não, "Homeland" emula e aborda melhor a questão através da (SPOILER, PORRA) morte do Abu Nazir e de como se tratou esse morte. Penso que é possível questionar a validade, ou não, da maneira como foi conduzido todo o processo de morte de Bin Laden e que "Zero Dark Thirty" está marginalmente preocupado com isso, pelo menos em nos dar directamente essa noção. Mas como em tudo no filme, "The devil is in details": penso que a reacção dos soldados quando matam Bin Laden já é eloquente quanto a essa questão.

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