quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

"Flight"


"Flight", qualquer que fosse a sua qualidade, seria sempre um dos filmes mais importantes dos últimos anos. O motivo? O regresso de Robert Zemeckis à imagem real. Depois de anos refugiado nos seus estúdios a expandir os limites da tecnologia de motion-capture, roubando-o assim de outros filmes onde a terceira dimensão está muito mais presente, "Flight" marca a primeira vez desde o excelente "Castaway"que Zemeckis se aventura no cinema de imagem real. O resultado é frustrante apenas por um motivo: por que raio andou o norte-americano enfiado tanto tempos no mundo dos bonecos?


A história começa com num quarto de hotel, onde álcool, droga e uma mulher nua servem de cartão de visita para Whip Whittaker (Denzel Washington), um piloto de aviões extremamente talentoso, mas com uma queda para o lado selvagem da vida. Depois de conseguir fazer descolar o avião em circunstâncias complicadas, enfrenta pouco depois problemas mecânicos e sobe ao estatuto de herói quando controla o avião para uma aterragem forçada num campo ao lado de uma igreja. Milagrosamente, morrem apenas seis pessoas, duas delas da tripulação. No entanto, o piloto rapidamente desce do pedestal quando os resultados dessa noite no quarto de hotel aparece nos testes sanguíneos. De herói, Whittaker passa a suspeito de homicídio e responsável pela queda do aparelho


A investigação e julgamento interessam pouco no filme em si, servindo apenas de catalisador do verdadeiro motivo de interesse da história: os demónios que atormentam o piloto de aviões e que o levam a procurar refúgio em substâncias de escape. WhipWittaker (um dos melhores nomes de personagem dos últimos tempos) é o clássico génio perturbado. A sua proeza incute em nós a ideia de que este pode ser um alcoólico funcional. Mas o seu comportamento contraditório leva-nos a encontrar um indivíduo extremamente confuso, cujo talento não ultrapassa a sua inabilidade em lidar consigo mesmo. Denzel Washington tem um dos melhores desempenhos da sua carreira (naquele que é também um regresso, mas aos papéis complexos), vestindo a carcaça de um indivíduo que não se consegue aterrar a si própria sem segurança, numa queda livre em que participa com uma arrogância majestosa de quem sabe o que vale nos ares, mas incapaz de pôr os pés na terra relativamente aos seus verdadeiros problemas. Há momentos na sua performance que me deixaram desconfortável, pela frontalidade a que Denzel nunca foge. Sem nunca tentar desculpar o personagem, há dois momentos onde Whip exerce uma chantagem emocional desonesta sobre dois personagens, com esquemas e manipulações que apenas o tornam mais assustado e imperfeito; e no entanto, nunca conseguimos desejar realmente que seja condenado. 



O excelente argumento de John Gatins explora também a temática religiosa. Alguns dos sobreviventes atribuem o milagre não ao piloto, mas a Deus; o avião despenha-se junto a uma igreja, enquanto a congregação rezava no exterior, e derrubando uma das torres do edifício; uma mulher toxicodependente, que Whitttaker ajuda a sair do vício (num raro espaço de claridade onde pensa conseguir também sair do seu sem a ajuda de ninguém) tenta convencê-lo a entrar nos Alcoólicos Anónimos (onde a religião é uma base importante); e num pormenor que não é acaso, os passageiros do avião são amiúde referidos como "souls" (almas) nas várias descrições do acidente. Quererá o filme apontar este desastre como um acto divino? Se sim, quem é o alvo? Whittaker, que tendo a vida destruída, deve acordar do seu torpor de dependência? Nesse caso, porque tiveram de morrer seis pessoas para que uma alcançasse a claridade?  Toda a experiência posterior ao desastre é um confronto entre a arrogância inerente de um homem que se julga todo poderoso contra um Deus; a certa altura, o seu co-piloto, deixado paraplégico pelo desastre, exorta Whittaker a converter-se a Jesus, pois só ele é o Salvador e último juiz dos nossos actos. Admira-se o filme por ser sincero e não tornar a situação cómica, como outros fariam. Mas este pedido para que Whittaker mergulhe na sua consciência, e em si mesmo, apenas o leva a nova ronda com o álcool, numa fuga aos seus erros e responsabilidade.



O filme tem alguns desempenhos secundários interessantes (de cada vez que John Goodman aparece, este drama de adultos vira uma comédia de adultos), mas o centro é a personagem de Denzel Washington, como acontece nos filmes de Zemeckis pós- "Forrest Gump", que se ancoram num actor ou actriz principais carismáticos (Tom Hanks, Jodie Foster, Michelle Pfeiffer) e deixam que o resto gire à sua volta e assente. Zemeckis afia as suas garras e monta um filme soberbamente realizado, tanto nos momentos grandiosos como nos pormenores. O desastre de avião, por exemplo, é uma monstruosa cena que consegue superar a sua anterior desventura neste género de cenas ) em "Castaway": raramente saindo do cockpit do avião, é tensão a subir numa queda, estando tudo nos gestos e face dos actores, e raramente se dando ao exibicionismo de money-shots; mas quando se dá, um avião invertido é uma daquelas imagens que nos deixa momentaneamente sem fôlego. Num momento mais calmo, o confronto entre a decência de Whittaker e um frigorífico que bem se podia chamar El Dorado é de uma tensão portentosa e que supera catadupas de explosões e tiros em qualquer filme. Depende da nossa empatia com o personagem, e resulta, porque Zemeckis não se limita apenas a ser um excelente realizador de grandes momentos: constrói histórias, a pouco e pouco, que explodem no final com um gosto que sabemos ser inevitável. 



O filme tem defeitos também (há uma historiazinha paralela envolvendo toxicodependência que arranca cedo de mais e retira alguma força ao poderoso arranque inicial do filme), mas que não haja enganos: é uma daquelas obras de que se diz habitualmente que ninguém quer ver mais; e no entanto, já rendeu para cima de 100 milhões de dólares. Por muito que tentem adormecer o cérebro das pessoas, elas querem complexidade, quando lha damos. Aqui, embora sendo apenas uma palavra, a complexidade vem logo no título. O "Flight" do filme não se refere ao avião: refere-se ao voo da alma quando esta se encontra leve e livre das mentiras. Apenas quando Whip Whittaker se decidir a confrontar com os demónios poderá, de facto, entrar numa graça mais importante que a de Deus: a sua.

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