O actual cinema de guerra ficou definido por duas obras que, curiosamente, estrearam no mesmo ano e são completamente diferentes uma da outra. Em 1998, "Saving private Ryan", de Steven Spielberg e "The thin red line", de Terrence Malick atingiram o auge daquilo que se podia alcançar no género. Estlisticamente, todo o cinema bélico desde esse ano deve algo, se não tudo, à magnífica obra de Spielberg; e aqueles que se atreveram a ser mais reflexivos sobre os efeitos do conflito no pensamento e almas humanas nunca fugiram muito à maneira como Malick os define no seu esplendoroso filme. Embora o primeiro seja um filme de guerra e o segundo seja um filme sobre guerra, ambos se complementa, e uma sessão dupla nunca será um mau programa nocturno, principalmente por quem se interessa pelo assunto no geral, e a 2ª Guerra Mundial em particular.
No entanto, a guerra entendida pela América, por muito que falemos de dois realizadores com sensibilidades distintas, é muito diferente da que vê de uma perspectiva europeia. Ainda mais se esta for russa. O cinema russo, aliás, sempre viveu um pouco à parte de todo o restante europeu, apesar nos ter dado mestres como Tarkovski ou Einsenstein que, à sua maneira, foram decisivos para a história do cinema. Tarkovski, em particular, tratando o celulóide como quem constrói castelos de biasma em espaços diferentes, montou a iconografia de um certo cinema russo do pós 2ª Guerra Mundial onde a realidade se questiona, e o lento desmoronar de qualquer coisa (desde os indivíduos até às construções sociais e morais) é uma constante. Para os russos, a depressão é o seu feel good, por paradoxal que isto pareça.
"Idi e smotri" é a continuação dessa lógica, e uma combinação dos estilos dos dois filmes acima referidos. É, por um lado, uma intensa reflexão sobre o efeito desorientador e desumanizante que a guerra tem no indivíduo; e por outro, possui cenas de uma intensidade feroz. O pano de fundo é a invasão nazi da Bielorrússia, e o nosso guia por todo o inferno que daí advém dá pelo nome de Florya, um rapazinho que desde o início do filme ignora os mais velhos e procura activamente juntar-se a um conflito, dando o motivo de que todos os seus amigos estão a combater. Porque não ele? A sua necessidade de, em fase pré-adolescente, se querer afirmar logo como homem impele-o para um conflito que nem compreende e encara como um jogo. Está na cara que a coisa vai acabar mal.
O que se segue é um passeio ao outro lado do Inferno. O batalhão de Florya envolve-se numa batalha e é dispersado. O jovem acaba com uma rapariga da sua idade e depois de um breve delírio panegírico, ambos são devolvidos a uma realidade de massacres e cadáveres. Entre pessoas e gestos, os russos mostram uma atitude fatalista perante toda a situação, espelhada num sentido de humor que a palavra "mórbido" mal consegue traduzir. Depois de andar em bolandas buscando uma vaca, Florya é capturado pelos nazis e entra-se na sequência mais perturbante do filme, e das coisas mais desconcertantes que já vi no cinema, onde o exército nazi decide brincar ao extermínio com os habitantes de uma aldeia bielorrussa. A intensidade desta cena não está naquilo que se mostra: está exactamente em termos chegado àquele ponto com a exacta noção daquilo que é a guerra. Ver toda uma população a ser queimada num celeiro por pura diversão não deixa o espectador indiferente, acreditem, e algo que ficará convosco bem para lá do visionamento de "Idi i smotri". Essa é a grande força do filme: ser uma experiência visceral daquilo que é a guerra, diferente da que, por exemplo, "Saving private Ryan oferece. Se nesse filme somos colocados dentro da guerra, em "Idi e Smotri" a guerra é colocada dentro de nós. A arrasadora cena final, embora longa demais, é a chave para se perceber porque é que o título original do filme era "Kill Hitler" e um revisionismo histórico do nazismo bem mais poderoso do que "Inglourious basterds" alguma vez sonharia.
O filme tem as suas limitações, principalmente técnicas. A montagem parece pedestre, em certos momentos, e a captação de som deficiente e incompleta nalguns casos. Mas a realização de Elem Klimov, no seu último filme, é certeira, poderosa e na sua simplicidade técnica, um primor. Klimov usa quase sempre steadycam, numa certa sensação de urgência imediata, mas consegue, ainda assim, planos de uma grande beleza e na citada sequência na aldeia bielorrussa, 40 minutos profundamente desagradáveis no melhor sentido.
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