Construir uma cena de verdadeiro terror é muito mais difícil do que parece. Nos tempos que correm, parece haver uma fórmula pronta para criar uma falsa tensão que apenas desperta em nós, no máximo, um sobressalto temporário que rapidamente esquecemos: um som em altos berros, movimentos súbitos na banda sonora, uma montagem rápida. Tudo isto, na cartilha do cinema que não se sente, parece ser o suficiente para criar o medo no espectador. No entanto, se percorrermos mentalmente os grandes filmes do género, facilmente percebemos que a tensão do susto não surge de momentos isolados. É sim uma construção cuidadosa desde a primeira cena, criando em nós um desconforto que amplificará os momentos de verdadeiro horror que nos esperam. Os grandes cineastas, e até mesmo aqueles que são simplesmente talentosos, sabem que, qualquer que seja o género, o ambiente é tudo.
"Lost highway", de David Lynch, não é um filme de terror. Aliás, é difícil inseri-lo num género, como a maior parte dos filmes do norte-americano. Um thriller mental talvez seja a melhor definição; e no entanto, marcou a minha adolescência como uma fonte de medo. O porquê é difícil de explicar cientificamente. Não há monstros literais (aparentemente...), não existem fantasmas (aparentemente..), nem criaturas das trevas (aparentemente...). O que existe é um crescendo de bizarria que perturbou o meu sentido de compreensão do mundo onde o filme se desenrola. Visto como um todo, "Lost highway" faz sentido até; mas as partes em que se divide são, cada uma delas à sua maneira, perturbações do quotidiano, elementos estranhos num tecido que tomamos por garantido em normalidade. Por outras palavras mais simples, são esquisitos como o caraças.
Há no filme dois momentos em particular que me fazem encolher, especialmente. Num deles, o personagem principal, um saxofonista interpretado por Bill Pullman, observa um corredor mergulhado em breu, com o mesmo tipo de reacção que esperaríamos de um burro a olhar para um palácio. A escuridão não se limita apenas a estar ali: trepa pelas paredes, come a luz, perturba o personagem de Pullman, confrontado entre o vazio do negrume e um outro mais voluptuoso, interpretado por Patricia Arquette, que se encontra no seu quarto.
Mas é no segundo que me reencontro sempre com o género de coisas que me causam medo: as subtilezas. Bill Pullman encontra-se numa festa algures em Hollywood. Até então, o filme revela que algo o vem perturbando, se calhar até ele mesmo. Mas tudo decorre normalmente. O personagem ali a contra-gosto, mas tenta suportar tudo através do álcool. É então que surge um estranho personagem (interpretado por um Robert Blake que anos mais tarde viria a ser condenado pelo homicídio da esposa). O que se segue é uma conversa onde as leis da Física são desafiadas, nomeadamente a que não permite a ubiquidade dos seres. A interpretação de Blake, juntamente com o seu visual, aumentam tudo aquilo que de errado a cena pode ter. Há também um telemóvel extremamente parolo envolvido, facto que pode ajudar ao terror. Em sentidos diferentes, ambos os indivíduos estão deslocados da festa. Nenhum deles conversa com mais ninguém, e no caso do estranho personagem de Blake, ninguém reconhece a sua presença, a não ser o seu interlocutor. Lynch consegue este efeito de redoma no espectador cortando a banda sonora e criando um subtil barulho ambiente que nos concentra no diálogo de pura non-sense, onde a certa altura, Bill Pullman está a falar com a mesma pessoa cara e a cara, e também ao telefone, e mesmo questionando inicialmente, aceita tudo como real. Psicose? Talvez; cria-se, no entanto, um estado de agouro permanente daí em diante. Se aquele momento for real, ou mesmo irreal, o tecido da narrativa fica inevitavelmente contaminado. Ou seja, eis como um instante construído com cuidado e labor pode condicionar o resto do filme para o espectador, e amplificar todos os ínfimos momentos.
Isto, caros leitores, é como se constrói uma cena de terror, e se traumatiza permanentemente um homem feito com 29 anos.
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