segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Much ado about nothing"


Há uns anos, no seu documentário "Looking for Richard" sobre a sua adaptação da peça "Richard III" em Nova Iorque, Al Pacino queixava-se de que os actores norte-americanos tinham um medo quase patológico de Shakespeare e das suas peças. Era como se este pertencesse aos britânicos exclusivamente, até mesmo na língua, pois o inglês isabelino é em muitos aspectos um idioma bem diferente do actual com os seus "thous" e "thees" e "dousts". É por isso que "Much ado about nothing", de Joss Whedon, deve ser saudado como uma quebra nesse ciclo de receio: não é raro Hollywood adaptar o bardo, mas as suas tentativas são entregues quase sempre nas mãos de ingleses, e as poucas que não o são ("Romeo + Juliet", de Baz Luhrmann, ou "O", de Tim Blake Nelson são dois exemplos) modernizam a intriga, colocando-a nos nossos dias. Há pouco tempo, em "Coriolanus", Ralph Fiennes seguiu pelo mesmo caminho. O sucesso não depende exclusivamente das modernizações, mas mesmo a justificação de que os temas tratados pelo eterno William são universais e intemporais soam quase sempre a algum medo de abordar Shakespeare em colisão frontal, ou pelo menos mantendo no cinema a mise-en-scene que Shakespeare empresta às suas peças no palco. "Romeo + Juliet" resulta muito bem no cinema (é barroco, pictórico, sempre em desequilíbrio emocional, o que, afinal, é uma das marcas das peças de Shakespeare), mas é mais Luhrmaniano do que Shakespereano e a certa altura, quase vemos o dramaturgo a fugir a tanta velocidade que nem o delirium tremens do australiano consegue acompanhá-lo!

A tentativa de Joss Whedon, se bem que enveredando por um cenário moderno (e emanar o doce odor das hipsterianas sebes), mantém o texto original na íntegra, e opta por um encenação quase sempre rigorosa e quase teatral, respeitando o fluir do texto. Nem sempre é bem conseguido, e se Whedon pudesse evitar a demasia de câmara ao ombro, o seu filme ficava a ganhar com isso. No entanto, o orçamento era apertado e havia apenas 12 dias para filmar tudo. Ajuda que o elenco seja composto quase na totalidade por habitués de Whedon, e se os actores mantêm um nível no geral bom, há destaques: Amy Acker e Alexis Denisoff, como Beatrice e Benedick, a dupla "Odeio-o/Amo-o" funcionam na perfeição, até porque já têm experiência de par romântico na série "Angel", e Reed Diamond e Nathan Fillion são um absoluto prazer de observar nos seus papéis de Guarda de Messina e Don Pedro, respectivamente, manobrando o texto de Shakespeare com um tamanho à vontade e naturalismo que por momentos esquecemos que aquele inglês não é aquele que estamos habituados a ouvir. "Much ado about nothing" é mãe da comédia romântica moderna de enganos, com temas como o amor, a honra e até o valor da família, tendo um segundo acto quase a cair na tragédia, e é agradável como Whedon consegue a parte trágica do filme não afunde a leveza do mesmo, fazendo com que tudo seja tão natural como a vida. É uma boa adaptação, de um homem experimentado (Whedon realizou, durante vários anos, dramatizações de Shakespeare entre amigos) e de quem não se quer deixar encurralar pelo esmagador sucesso de "The avengers". Assim como o filme traça o duelo de wittiness entre o Beatrice e Bennedick, dois grandes mestres do one-liner e da frase curta encontram-se em 2013, e o melhor é que nenhum perde e ambos saem a ganhar. Não é uma obra-prima, mas é uma adaptação que relê Shakespeare em termos que não perdem o amor do britânico pela palavra, nem a paixão que Whedon tem para desconstruir seres humanos e as suas paixões. Do século XVI ao século, XXI, afinal, é aquilo que deve ser o alvo maior de um argumentista.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Gravity"


O Espaço é a última fronteira na realidade e na ficção; no cinema então, isso é mais verdade do que pensamos. Por estranho que pareça, quanto mais os efeitos visuais avançaram, com a Idade do Digital a poder replicar quase tudo o que se queira (excepto, mais vezes do que poucas, a Realidade), a tela espacial vai-se tornando falsa e o espectador, naquela parte de trás da mente que "sabe tudo", tem a plena noção de que é tudo fabricado num computador, e não se impressiona. Se pensarmos nos filmes desenrolados fora do planeta Terra que nos impressionaram pela representação credível do abismo vazio da dança das estrelas e o vácuo que as envolve, temos de recuar algumas décadas. "2001" é incontornável, mas também "Alien" e toda a saga original "Star Wars" que, com efeitos práticos e quase prescindindo de computadores, deixaram como legado a imagem colectiva que possuímos daquilo que é a imensidão espacial. É estranho que a tecnologia digital não tenha conseguido criar verdade nessa zona, quando já ultrapassou barreiras aparentemente mais impossíveis (os recentes "The curious caso of Benjamin Button", "Avatar" e "Life of Pi" criaram vida humana e animal onde esta não existe, e com uma realidade tal que a definição de virtual se torna impossível de escrever). O problema acerca do Espaço é que quase ninguém lá esteve. O que sabemos é o que vemos daqui e o que vemos já não existe.



"Gravity", de Alfonso Cuáron, é assombroso em muitas coisas, mas aquela em que se torna pioneiro é na representação dessa área que não conhecemos por fora, mas cuja música escutamos dentro de nós quando observamos as estrelas. É uma obra de ficção, mas não do tipo científica: o tempo é o Presente; a realidade é a de um trio de astronautas que reparam a estação espacial Hubble, até que o erro de cálculo no lançamento de um míssil russo lança uma luta pela sobrevivência; e a ciência é quase sempre credível, na representação do Espaço, nas opções dadas aos personagens para o avanço da história e no respeito pelas leis da Física. É notório que Cuáron respeita, e muito, a exploração espacial, e este filme é a demonstração desse amor através daquilo que um cineasta pode fazer: levar aos espectadores uma experiência real e visceral de presença  fora da Terra. Demorou quatro anos a fazê-lo, e teve de desenvolver muitas das tecnologias aplicadas (numa entrevista, disse que esta devia ser a primeira obra de cinema onde a pós-produção ficou pronta antes da pré-produção), mas o esforço técnico compensou. O primeiro plano dá o mote: fixo num ponto algures entre as galáxias, mostra uma imagem da curvatura do planeta, com o familiar tom azul, onde se distinguem montanhas, formas de continentes (no caso, a América), nuvens, e até esporádicos olhos de luz chamados cidades. Ao longe, muito subtilmente e acompanhando a órbita do planeta, surge um space shuttle no nosso campo de visão ainda fixo, e está estampada na nossa mente a imensidão do Cosmos, o quão pequenos somos dentro dele e o nosso respeito pelo que é o principal antagonista do filme, de facto, estabelece-se. Começa aqui um "long shot" de 20 minutos que é tão espantoso quanto demiurgo no seu pormenor e execução (algures, num local acima deste, Kubrick aplaude), e balança a calma do espaço com o choque da tragédia iminente e que deixa dois astronautas à deriva no Espaço, quase sem apoios, reféns da gravidade que dá titulo ao filme; e incrivelmente, o filme só fica mais tenso a partir daqui.


George Clooney e principalmente Sandra Bullock são os protagonistas do drama que se segue, com dois personagens diferentes na atitude perante o espaço: Matt Kowalsky é um vivido astronauta que se sente à vontade no silêncio do Universo, como se estivesse na sala de estar, e parece estar preparado para a incerteza de qualquer imprevisto; Ryan Stone, na sua primeira viagem espacial, está nervosa e leva consigo uma mágoa que transforma o seu conflito com o Espaço numa luta com a sua própria vida. Ambos os actores estão excelentes, e o filme, longe de querer entrar em considerações sobre ciência espacial ou a mecânica do Espaço, é afinal intimista na maneira como coloca toda a acção de hora e meia de filme numa questão antiga na dramaturgia: a superação do ser humano perante as adversidades e o renascimento depois de estas estarem ultrapassadas. À deriva no Espaço, Ryan Stone vê-se obrigada a salvar as suas duas vidas: aquela que a situação de crise coloca em risco, e a que trazia já quando descolou da Terra, como se fosse uma fuga ao que a traumatiza. Essa salvação apenas pode ser conseguida querendo viver e voltar a Casa, aquela casa que está permanentemente à vista debaixo dela. Num filme em que a Tecnologia domina, esta atenção ao factor humano, afinal o que diminui tantas obras de grande espectáculo ou simplesmente passadas no Espaço, é o engrandece, e mostra a diferença entre um tarefeiro e um realizador. A cinematografia de Cuáron é dominada por histórias que raramente perdem essa ligação humana com o espectador, mesmo quando o pano de fundo sejam futuros distópicos ou escolas de feitiçaria. É por isso que a acção decorre fluida, sem pausas e sobressaltos, nunca forçada na desenrolar dos problemas. O maior triunfo é sempre o humano.


Alfonso Cuáron e Emanuel Lubezki triunfam não só na recriação visual do Espaço, mas acima de tudo trazendo o seu ritmo: as personagens movem-se numa câmara lenta permanente, como se a estadia no Espaço fosse uma vida suspensa e tudo tivesse o sue movimento próprio. Como se o Espaço fosse uma outra realidade, e é aqui que Cuáron reúne o seu virtuosismo técnico e a história emocional do filme num só ponto, cruzando com referências da nossa própria memória visual de espectadores, seja citando filmes, como criando imagens arquetípicas, como um plano que fica na memória onde Stone regride toda a sua vida em poucos segundos que talvez sejam óbvios, mas não deixam de ter impacto por isso. Cuáron construiu a sua fama de virtuoso com os seus planos longos e sem cortes aparentes. Neste filme, ele ri-se disso, e constrói uma série de planos que duram dezenas de minutos, e nunca parecem forçados. Stone e Kowalsky estão livres, e nunca se viu tanta liberdade em qualquer outro filme. Há uma graciosidade no movimento, uma naturalidade na acção, e um sentimento de estarmos a viver e não a ver. É a visão dos dois mexicanos que triunfa, um respeito pelo poder da imagem e das sensações que se vivem numa sala de cinema. Não há atropelos: há visceralidade que começa no ecrã e acaba em nós. É, afinal, o trabalho do realizador: fazer o coração bater e saltar batidas através dos nossos olhos.


A gravidade é o mote do filme, e no caso de Ryan Stone (Sandra Bullock atrai tão naturalmente o nosso interesse que é um casting quase óbvio) aquilo que a faz regressar à Terra. É o julgamento através do fogo, e a força humana como um prodígio tão grande como o assombro do Espaço. "Gravity" coloca o homem na sua devida dimensão perante o Cosmos, mas sem nunca reduzir a sua capacidade de superação e de ter em si a força e a fé que faz mover montanhas. Talvez não mova planetas, mas é aquilo que impele cada pequeno mundo individual a superar-se e a encontrar-se. Estar perdido no Espaço pode significar reencontrar-se onde o coração está. É essa a nossa casa, afinal.