quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Rapidinho: "Apocalypto"



Sou daqueles mete nojo que chega, com confiança, a uma discussão acerca do filme "Braveheart" e diz que o achou mediano. Bem sei que é pecado. Aparentemente, a obra épica de Mel Gibson é vista por quase todas como um filme imaculado, inspirador, que conta uma história que urge ser espalhada. Não partilho nada dessa opinião: Gibson é um bom realizador de grandes cenas, trepidantes, que prendem à cadeira. Adora uma boa história de vingança e sangue e exprime-o no ecrã com grande vontade e competência; no entanto, não tem grande capacidade de conduzir uma intriga emocional, e estampa-se quando tenta defender factos históricos inventados. Exagera a mão em cenas que, embora na altura nos pareçam transcendentes, são apenas cheesy. O referido filme sofre bastante disto quando sai das batalhas e entra na história entre William Wallace e a rainha de Inglaterra; e para além disso, o final é... bem, dependendo das pessoas a quem perguntarem, transcendente ou lamechas.



Já "The passion of the Christ" é um filme mais interessante. Polémico pela sua dose de gore (e esse é um dos seus grandes defeito) é, no entanto, uma obra bem mais pujante e bem conseguida. Gibson tem um objectivo, e é inegável que mesmo discordando, percebemo-lo: Jesus Cristo é alguém que devemos admirar, pois era nobre e sofreu agruras por nós. Olhem bem o que lhe fizemos e como ele enfrenta isso com sacrifício e compostura. É o filho de Deus, e no entanto, na sua relação com Maria, mostra-se um mortal, humano, com os nossos sentimentos. O filme, embora mais extenso do que devia, é realizado com um sentido estético que estranha ver em Gibson (excelente, a fotografia de Caleb Deschanel), mas cumpre o seu propósito, e mistura um tom rude de filme histórico e uma transcendência de mensagem religiosa que harmonizam estranhamente bem.



Não estranha, então, que "Apocalypto", o último (até ver) filme de Gibson seja de facto excelente. O motivo é a mistura das duas coisas em que Mel Gibson já mostrou ser, de facto, muito bom: uma intriga de vingança, envolvendo um homem que se ultrapassa pela sua família, e cenas de boa acção e pancada, com um realismo ao nível gráfico que arrepia ocasionalmente. O filme conta a história de Jaguar Paw, um índio maia cuja tribo é devastada e capturada por outra bem maior e supostamente mais civilizada. O objectivo é levar os sobreviventes para servirem de sacrifícios humanos na grande cidade. Jaguar Paw tenta desesperadamente fugir dos seus captores e voltar para a sua família. Tudo podia ser dado de forma simplista e directa, mas Gibson serve-se desta história para transmitir duas ou três coisas sobre os males da civilização e corrupção do Homem que envergonham muito bom documentarista e cineasta panfletário. O contraste entre a vida em tribo, em comunhão com a Natureza e num espírito de comunidade, com o degredo da grande cidade, espelhada nos actos bárbaros de uma civilização tecnologicamente avançada não é difícil de constatar. Gibson tem até o cuidado de não fazer disto um cântico inocente e ingénuo como outros cineastas superiores (como Malick) o fazem. Há sujidade e dureza no modo de vida simples de quem vive na selva; mas o encanto, espírito comunal e entretenimentos simples estão lá e seduzem em comparação com o que encontramos na cidade maia: superficialidade  um desprezo geral pela vida animal e humana, manipulações políticas, a perda de qualquer tipo de valor. Tudo isto falado em Maia e sem grandes discursos.



Aliás, "Apocalypto" prova que Mel Gibson é um cineasta de imagética e muito pouco de palavras. Uma sequência em que descobrimos através de frescos murais aquilo que desconhecemos no futuro da cena é um portento de simplicidade e poupança narrativa. As sequências de acção não servem só para causar tensão, mas acima de tudo para estabelecer personagens e suas relações. Tecnicamente, o filme é excelente e embora em partes a história se disperse demais para o destino da família de Jaguar Paw, isso não atrapalha o ritmo do filme, pois este acelera sempre que volta ao seu personagem principal, com desafios e obstáculos ainda mais difíceis do que o anterior, aumentando o sentido épico e fazendo crescer a mística do nosso herói. O tom inicial do filme, no entanto, é o de aproximar estes Maias cuja existência está afastada da nossa 500 anos da normalidade, contando um quotidiano que pouco difere do nosso, com relações de amizade e camaradagem, piadas de "gajos", partidas e relações familiares/emocionais onde nos podemos rever. Num ou noutro ponto, Gibson força uma piada de estereótipo que irrita, mas no geral, é louvável a tentativa que faz de aproximar noções de vida tão diferentes e forçar-nos a ver que, no fundo, somos todos humanos. Para alguém que é visto de momento como um xenófobo, é estranho, até, e deixa-nos a pensar sobre a maneira como Mel Gibson, a pessoa, é distorcida pelo circo mediático que o rodeia. Este filme tem tudo o que Mel Gibson adora: sangue, execuções, violência bem gráfica, e tudo isto banhado pela luz de tochas.



O filme tem alguns defeitos, ainda assim: a banda sonora é banal, e se bem que o ritmo do filme seja trepidante, há poucos clichés de filme de acção que Mel Gibson não atinja. Um particularmente infame é a maneira quase sobre-humana como Jaguar Paw ultrapassa os seus ferimentos como se não existissem, exibindo uma pujança física impossível. A certa altura, o exagero é tal que uma mulher grávida luta contra um macaco usando uma estalactite. Felizmente, a história tem comida mental suficiente para que estes sejam pormenores que não estragam a experiência. No final do filme, a mensagem de fuga da civilização é reforçada com a chegada da mudança ao continente americano. Jaguar Paw vira costas à mudança e retrocede para o interior da selva com a família. Ele sabe que o apetite voraz do Homem é o seu derradeiro inimigo e a causa da sua queda. Sabiamente, escolhe retroceder e viver com aquilo que o satisfaz e lhe traga felicidade. É, numa última instância, um pouco infantil, mas uma lição importante para o mundo de hoje. Afinal, uma grande civilização só se consegue destruir a partir do interior.

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