sábado, 26 de janeiro de 2013
"Django unchained"
Já escrevi aqui sobre Quentin Tarantino. Na altura, chamaram-me nomes por afirmar que Tarantino não era um génio. Afirmei na altura que Tarantino "ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste." Estava mais perto da realidade do que pensei. Continua a ser verdade. Há realizadores de quem se gosta e não há mal algum. Mas querer fazer deles algo que definitivamente não são, é outra coisa. O próprio QT contribui para essa hipérbole, sendo que o último bloco nessa torre de marfim onde se coloca é a história de querer acabar de filmar aos 60 anos para só ter grandes filmes no currículo. É discutível que os tenha nessa proporção.. Na minha opinião, tem um grande, excelente filme ("Pulp fiction" é uma obra-prima, honra lhe seja feita) e outros com graus variados de qualidade ("Death proof", por exemplo, é um mau serviço ao cinema, cuja única desculpa é a grande sequência de acção que o encerra). Como escrevi na altura, há duas coisas muito boas que saem do seu cinema: o poder do diálogo na construção e estabelecimento de cenas, e o seu primado na definição de qualidade das interpretações e dos momentos memoráveis; e a fixação e divulgação de uma memória cinematográfica que já vai sendo rara em consumidores de cinema com menos de quarenta anos. De resto, a sua obra habita numa realidade paralela à restante, com uma mitologia contínua e assente em pequenos pormenores para fãs e cujos pretextos fílmicos são homenagens, ou melhor, pastiches de outros géneros. Como escrevi há uns meses, não há nada de errado com isso: são opções de carreira e artísticas, que se respeitam e que têm o seu público alvo. No entanto, o seu culto vai crescendo, aumentando e disfarçando as suas falhas, de filme para filme.
"Django unchained", a sua obra mais recente, é um novo exercício de "história alternativa" (usando um termo criado pelo escocês Niall Ferguson, que também se diverte com estas coisas de imaginar "e se...", mas em nome da ciência) depois de "Inglourious basterds", um divertido e a espaços genial filme de bom entretenimento e pretensa reflexão. Desta vez, depois de os nazis terem a sua conta, são os comerciantes de escravos que apanham por tabela, na história de um antigo escravo, Django (referência cinéfila número um: é homónimo do herói interpretado por Franco Nero num filme de Sergio Corbucci), que depois de libertado tenta recuperar a sua mulher Broomhilda von Shaft (referência cinéfila número dois, que tendo em conta que o personagem é negro, não penso precisar de explicar), com a ajuda de King Schultz, um caçador de recompensas que se torna no seu mentor. O vilão nesta história é um sulista abominável que dá pelo nome de Calvin Candie, que gere o seu rancho "Candieland" e lutas entre escravos com o apoio do seu capataz negro Stephen. O pretexto está lançado para uma história de vingança (um tema recorrente nos seus filmes), que se vem a descobrir ser mais espalhafato do que outra coisa. "Django unchained" navega por entre querer representar, emocionalmente, o sofrimento dos escravos durante este período horrível da história americana, mas ao mesmo tempo, quer manter as suas ironias, os piscares de olho, a sabedoria cinéfila. O resultado é um filme que sabe a falso. A meu ver, é quase impossível ter os dois mundos: ou bem que se decide a criar uma obra revisionista de entretenimento, como fez, e bem, com "Inglourious basterds"; ou envereda por um tom sério e de análise do problema da escravatura. Pode manter a história de vingança e a a intriga de acção, não tenho problema com isso. Mas tentar fazer um filme de substância sem substância é uma miragem. Tarantino tenta arranjar um paralelo com a história de Siegfried e Broomhilda das mitologias germânicas, mas facilmente é esquecido quando o verdadeiro divertimento do realizador está noutro lado.
É uma contradição natural querer misturar um tom de fábula com o desejo de mostrar algo real e doloroso. Percebe-se que "Django unchained" é mais wishful thinking do que outra coisa. Isso verifica-se, por exemplo, na representação da violência. É excessiva e cartoonesca. Nada tem a ver com ser necessária ou não: um filme comporta-se dentro dos seus próprios termos, e nalguns autores, como John Woo, a hipérbole da violência faz parte do estilo e da mensagem, em simultâneo. Aqui, no entanto, Tarantino opta por tornar a morte e o jorrar de sangue como uma espécie de divertimento para o ecrã. Novamente, se a obra alegasse ser apenas um exercício de divertimento, percebia-se. Mas é notório que há uma tentativa de dizer algo mais. esta contradição marca e divide todo o filme. A presença de Christoph Waltz destina-se precisamente a aliviar esta antinomia. O realizador invoca o seu mago que hipnotiza com palavras e a cadência do seu discurso . A personagem que interpreta não é diferente, em estilo, do Coronel Landa da anterior obra, embora se situe numa área mais simpática. Li por ai que este King Schultz é amoral, mas quem diz isso deve estar visto toda a acção com palas nos olhos, ou adormecido durante o último terço. É irónico que, num filme que se diz sobre escravatura e emancipação, seja um personagem europeu a libertar os escravos, e em certa medida, a tentar contrapor uma luz de civilização vinda do velho continente por entre o Sul onde a ignorância está presente a cada esquina. Não é um desempenho brilhante, mas anima o filme e dá-lhe uma âncora séria, que permite a Tarantino lançar outras figuras mais coloridas (os irmãos Brittle, o Big Daddy) numa catadupa que mal nos permite conhecê-los. O próprio personagem principal treme e nunca me inspirou empatia... O esquema é o habitual, novamente: em "Kil Bill", Beatrix Kiddo tem também um evento traumático que nos deve levar a preocuparmo-nos com a sua missão de vingança e despertar emoção em nós. É, no entanto, Uma Thurman que constrói e ganha isso, com paciência e talento. Jamie Fox não é mau actor, mas não tem o talento da anterior musa de Tarantino. O seu Django estica os dedinhos para se tornar no Homem sem Nome da raça negra, mas é uma colecção de olhares intensos e pouca coolness que não me impressionou. A longa duração do filme (cortava-se meia hora e o espectador não perdia grande coisa....) não o ajuda, pois tem de esticar um boneco, penosamente, durante quase três horas.
Quando quer, o filme é bom. Uma cena quase surreal envolvendo um grupo de antecessores do Ku Klux Klan e uma discussão em torno da utilidade de um capuz tem não só uma veia cómica digna de Monty Python, como termina de forma muito satisfatória e com um estilo que, aqui sim, é bem merecido. Numa outra sequência na sala de jantar da mansão de Candie, bradamos "finalmente" quando os bons diálogos se encadeiam com consistência e Leonardo di Caprio, numa composição excelente de um reizinho patulante e cheio de si, mas que tem pouco de inútil ou burro, varre todos os actores da cena, e o filme praticamente todo, numa defesa da sua crença no racismo, seguida por uma explosão de raiva tão intensa quase espelhou a minha falta de paciência para com os problemas todos que o filme venha a ter. É um momento alto onde se vislumbra o que poderia ser esta obra com um pouco mais de trabalho e intenção. Já que estamos nas coisas boas, a direcção de fotografia é uma maravilha, mas com Robert Richardson, esperar menos é engano. De destacar, também o untuoso personagem de Samuel L. Jackson, totalmente deslocado daquilo que vemos dele, e das únicas figuras do filme cujo funcionamento interno está construído e se entende: eis um negro que prefere a escravatura, que lhe dá poder, à liberdade, que o torna num entre muitos. É difícil defender alguém que apoia uma ideologia que nos é dita como horrível durante tantas cenas, mas Jackson fá-lo e se bem que o seu Stephen não seja um personagem assim tão cinzento, é uma lufada de ar fresco ver alguma complexidade no meio deste artificialismo todo.
"Django unchained" anuncia, de forma ainda mais óbvia, que a fórmula Tarantino precisa de mudanças. O próprio realizador não verá isso, convencido que está de que é um génio absoluto, mas usar a exploitation como credo e móbil de toda uma obra cinéfila é quase um insulto ao seu próprio talento. Mesmo na cenas de acção, onde Tarantino costuma ter as garras afiadas, vacilam, e isto não pode ser um bom sinal. Eu percebo que para cinéfilos não honestos, que só conhecem a história do cinema através da filmografia do norte-americano, este possa parecer um mestre incontestado, capaz de ideias brilhantes. No entanto, para que sabe que Sérgio Leone só há um. Este não é um filme completamente maus, tem momentos de bom entretenimento; mas enquanto se entretém a si mesmo com ideias de grandeza, perde o espectador que anseia por vê-lo a libertar-se das correntes que o prendem à morrinha da repetição.
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