terça-feira, 27 de novembro de 2012
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Rapidinho: "Apocalypto"
Sou daqueles mete nojo que chega, com confiança, a uma discussão acerca do filme "Braveheart" e diz que o achou mediano. Bem sei que é pecado. Aparentemente, a obra épica de Mel Gibson é vista por quase todas como um filme imaculado, inspirador, que conta uma história que urge ser espalhada. Não partilho nada dessa opinião: Gibson é um bom realizador de grandes cenas, trepidantes, que prendem à cadeira. Adora uma boa história de vingança e sangue e exprime-o no ecrã com grande vontade e competência; no entanto, não tem grande capacidade de conduzir uma intriga emocional, e estampa-se quando tenta defender factos históricos inventados. Exagera a mão em cenas que, embora na altura nos pareçam transcendentes, são apenas cheesy. O referido filme sofre bastante disto quando sai das batalhas e entra na história entre William Wallace e a rainha de Inglaterra; e para além disso, o final é... bem, dependendo das pessoas a quem perguntarem, transcendente ou lamechas.
Já "The passion of the Christ" é um filme mais interessante. Polémico pela sua dose de gore (e esse é um dos seus grandes defeito) é, no entanto, uma obra bem mais pujante e bem conseguida. Gibson tem um objectivo, e é inegável que mesmo discordando, percebemo-lo: Jesus Cristo é alguém que devemos admirar, pois era nobre e sofreu agruras por nós. Olhem bem o que lhe fizemos e como ele enfrenta isso com sacrifício e compostura. É o filho de Deus, e no entanto, na sua relação com Maria, mostra-se um mortal, humano, com os nossos sentimentos. O filme, embora mais extenso do que devia, é realizado com um sentido estético que estranha ver em Gibson (excelente, a fotografia de Caleb Deschanel), mas cumpre o seu propósito, e mistura um tom rude de filme histórico e uma transcendência de mensagem religiosa que harmonizam estranhamente bem.
Não estranha, então, que "Apocalypto", o último (até ver) filme de Gibson seja de facto excelente. O motivo é a mistura das duas coisas em que Mel Gibson já mostrou ser, de facto, muito bom: uma intriga de vingança, envolvendo um homem que se ultrapassa pela sua família, e cenas de boa acção e pancada, com um realismo ao nível gráfico que arrepia ocasionalmente. O filme conta a história de Jaguar Paw, um índio maia cuja tribo é devastada e capturada por outra bem maior e supostamente mais civilizada. O objectivo é levar os sobreviventes para servirem de sacrifícios humanos na grande cidade. Jaguar Paw tenta desesperadamente fugir dos seus captores e voltar para a sua família. Tudo podia ser dado de forma simplista e directa, mas Gibson serve-se desta história para transmitir duas ou três coisas sobre os males da civilização e corrupção do Homem que envergonham muito bom documentarista e cineasta panfletário. O contraste entre a vida em tribo, em comunhão com a Natureza e num espírito de comunidade, com o degredo da grande cidade, espelhada nos actos bárbaros de uma civilização tecnologicamente avançada não é difícil de constatar. Gibson tem até o cuidado de não fazer disto um cântico inocente e ingénuo como outros cineastas superiores (como Malick) o fazem. Há sujidade e dureza no modo de vida simples de quem vive na selva; mas o encanto, espírito comunal e entretenimentos simples estão lá e seduzem em comparação com o que encontramos na cidade maia: superficialidade um desprezo geral pela vida animal e humana, manipulações políticas, a perda de qualquer tipo de valor. Tudo isto falado em Maia e sem grandes discursos.
Aliás, "Apocalypto" prova que Mel Gibson é um cineasta de imagética e muito pouco de palavras. Uma sequência em que descobrimos através de frescos murais aquilo que desconhecemos no futuro da cena é um portento de simplicidade e poupança narrativa. As sequências de acção não servem só para causar tensão, mas acima de tudo para estabelecer personagens e suas relações. Tecnicamente, o filme é excelente e embora em partes a história se disperse demais para o destino da família de Jaguar Paw, isso não atrapalha o ritmo do filme, pois este acelera sempre que volta ao seu personagem principal, com desafios e obstáculos ainda mais difíceis do que o anterior, aumentando o sentido épico e fazendo crescer a mística do nosso herói. O tom inicial do filme, no entanto, é o de aproximar estes Maias cuja existência está afastada da nossa 500 anos da normalidade, contando um quotidiano que pouco difere do nosso, com relações de amizade e camaradagem, piadas de "gajos", partidas e relações familiares/emocionais onde nos podemos rever. Num ou noutro ponto, Gibson força uma piada de estereótipo que irrita, mas no geral, é louvável a tentativa que faz de aproximar noções de vida tão diferentes e forçar-nos a ver que, no fundo, somos todos humanos. Para alguém que é visto de momento como um xenófobo, é estranho, até, e deixa-nos a pensar sobre a maneira como Mel Gibson, a pessoa, é distorcida pelo circo mediático que o rodeia. Este filme tem tudo o que Mel Gibson adora: sangue, execuções, violência bem gráfica, e tudo isto banhado pela luz de tochas.
O filme tem alguns defeitos, ainda assim: a banda sonora é banal, e se bem que o ritmo do filme seja trepidante, há poucos clichés de filme de acção que Mel Gibson não atinja. Um particularmente infame é a maneira quase sobre-humana como Jaguar Paw ultrapassa os seus ferimentos como se não existissem, exibindo uma pujança física impossível. A certa altura, o exagero é tal que uma mulher grávida luta contra um macaco usando uma estalactite. Felizmente, a história tem comida mental suficiente para que estes sejam pormenores que não estragam a experiência. No final do filme, a mensagem de fuga da civilização é reforçada com a chegada da mudança ao continente americano. Jaguar Paw vira costas à mudança e retrocede para o interior da selva com a família. Ele sabe que o apetite voraz do Homem é o seu derradeiro inimigo e a causa da sua queda. Sabiamente, escolhe retroceder e viver com aquilo que o satisfaz e lhe traga felicidade. É, numa última instância, um pouco infantil, mas uma lição importante para o mundo de hoje. Afinal, uma grande civilização só se consegue destruir a partir do interior.
sábado, 17 de novembro de 2012
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Crónicas americanas
O declínio de Oliver Stone é um dos grandes mistérios do século XXI cinematográfico. Não é o objectivo deste artigo tentar explicar as razões desse fenómeno, mas seria omisso se ignorasse esta evidência, tão mais evidente pelo percurso formidável que o realizador traçou desde meados da década de 80 até ao final dos dez últimos anos do século XX. Embora tenha começado a carreira como argumentista (ganhando um Oscar por "Midnight Express" e arrepiado sensibilidades com a verdadeira ópera de serrabulho barroca que é "Scarface"), Oliver Stone adquiriu fama de imbatível com três clássicos feitos praticamente de rajada: "Plattoon", "Born in the 4th of July" e "Wall Street". Os dois primeiros, que começam e seguem a sua trilogia do Vietname (completada, em 1993, por "Heaven and Earth") remetem para a experiência mais marcante da vida de Oliver Stone, o artista: o período em que combate no Sudeste Asiático.
"Platoon" bebe directamente nessa vivência. O personagem de Charlie Sheen emula, por admissão do realizador, o próprio Stone, e no meio do caos da guerra, "Platoon" é no seu centro uma batalha moral, onde a humanidade e a bestialidade que se debatem dentro de cada soldado são representadas, respectivamente, pelos sargentos Elias e Barnes. "Platton" é reconhecido por captar a vertigem da guerra, mas é interessante como se centra não tanto na tensão, mas mais na desorientação e de como as regras da moral, no conflito, são viradas ao contrário. "Born in the 4th of July" continua este abandono das regras, no caso as da decência. O relato de Ron Kovic, um paraplégico que caminha do patriotismo convicto para o patriotismo enraivecido, zangado por ter sido abandonado e usado pelo país em nome do qual lutou no Vietname, é apenas a continuação lógica das próprias reflexões de Stone sobre o conflito, não deixando que a América esquecesse uma ferida que estaria aberta enquanto não a quisessem fechar convenientemente. "Wall street" é uma variação deste tema, de uma América que se ataca a si mesma, e aos próprios cidadãos. Através da figura de Gordon Gekko, um amoral e no entanto moralista profeta do capitalismo, convencido de que esta ideologia é a panaceia geral do mundo, o cataclismo financeiro que nos adoece hoje é entrevisto de forma quase sobrenatural. Oliver Stone é o cronista, por excelência, da moderna história americana, e do espírito nacional dos EUA. Um patriota inquisitivo, como o próprio se gosta de intitular.
Há, no entanto, outras três títulos maiores no colossal período da sua carreira (entre 1986 e 1995) onde fez um punhado de obras-primas que passam ao lado dos três clássicos acima referidos.Duas excepções surgem: "The doors" é um biopic razoável com uma excelente interpretação lá dentro; e "Natural born killers" é uma obra bruta, experimental e desafiante do ponto de vista das ideias, mas com uma desorientação visual nada comum no realizador, e que acaba por afectar um produto final com tanta coisa boa (os actores deste filme, usando o over-acting como instrumento natural e óbvio, são uma coisinha tão boa que vale a pena, apesar de tudo). Tudo o resto é maravilha; e com naturalidade sobressaem três obras que espelham não só o clássico traço de denúncia presente no cinema de Oliver Stone, como também um avassalador poder técnico para condensar informação que reduziria muitos argumentistas a destroços criativos.
"Salvador", de 1986, esteve durante muito tempo no armazém de um estúdio, mas com o sucesso de "Platoon", a sua estreia tornou-se lógica; e é um excelente filme, acompanhando o trajecto de dois homens, um jornalista e um seu amigo, no conturbado ano de 1980, em El Salvador. Num país dominado por uma ditadura militar protegida pelos EUA, e à beira de uma guerra civil graças à acção de guerrilhas esquerdistas, é uma denúnica exposé através do olhar do jornalista, Richard Boyle, que procura no meio do conflito uma história para vender, e acaba por atravessar a linha que o separa da ditadura e dos revolucionários com um equilibrismo perigoso, pronto a cair. James Woods é intenso como Boyle, mas fica na memória um fotógrafo de guerra interpretado por John Savage, cuja vida e os conflitos bélicos se misturam. Um verdadeiro drogado, mais viciado no pó dos campos de batalha do que noutros mais característicos da América Latina. Embora desenvolva também uma história mais pessoal de Boyle, que inclui uma mulher por quem se apaixona e o seu filho, o ponto central no filme é a denúncia das atrocidades, a exposição do lado secreto da política externa norte-americana e uma certa ideia ingénua dos salvadorenhos, e por arrasto todos os povos a viver as dores de parto do pós-colonialismo, como tendo uma vida perfeita se ao menos não houvesse ingerências.
"Nixon", realizado 11 anos depois, continua essa reflexão sobre a alma política norte-americana, não só na sua relação com o mundo, mas acima de tudo na relação que mantém com ela mesmo, e com a memória e esperanças dos norte-americanos. Tenta ser, ao mesmo tempo, uma biografia ponderada e equilibrada (em certos pontos, talvez demasiado) de Richard Nixon, umas das mais vilanizadas, e controversas figuras da histórias dos EUA. Um homem cujo ódio por si mesmo conseguia ser maior do que aqueles que os outros lhe tinham. Anthony Hopkins é portentoso ao subverter todas as expectativas de imitação que existem nos biopics: apesar de não se parecer fisicamente com Nixon, ele é-o, soa a ele, desempenha-o e mergulha-nos na complexidade que só os grandes vilões possuem. O facto de a figura do presidente ser, em simultâneo, uma das mais bem sucedidas na sua política e uma das mais desgraçadas no seu legado confunde-o com a própria América, o país onde o desequilíbrio entre a sua promessa fundacional e a sua existência prática serão das mais assimétricas no planeta. O filme não funciona totalmente como o esperado (conhecendo a tendência de Stone para perseguir teorias da conspiração e a história escondida da América, fica-se com a sensação de que se passou ao lado de uma enorme oportunidade de festa, mesmo que Watergate, a Baía dos Porcos, oligarcas texanos e o assassinato de Kennedy sejam mencionados ao longo do filme), mas Stone está mais à procura de Shakespeare do que de si mesmo; e isso acaba por dar os seus frutos. Ond "JFK", por exemplo, será um filme para chocar e enraivecer, "Nixon" é mais fascinante e uma obra que pretende ser lida de diversas maneiras, nas leituras várias que faz da História.
No entanto, na minha opinião, nenhum filme de Stone mostra o seu poder quanto "JFK", uma obra prodigiosa em todos os aspectos possíveis. A começar pela subversão. Uma regra não escrita do guionismo diz-nos que um bom filme deve ter 90% de acção e 10% de exposição. "JFK" não só subverte esta regra, como é bem sucedido gloriosamente, ainda por cima como thriller. Não escondo que é dos meus filmes preferidos, e considero-o, tecnicamente, o filme mais perfeito que já vi, mesmo sendo de 1991: usa mais de vinte tipos de filmes diferentes, 15 câmaras a filmar diferentes velocidades, e consegue enfiar várias vezes o Rossio na rua da Betesga, ao sobrepor 3 espaços temporais numa mesma cena. Usando a subjectividade do nosso pensamento, com o cruzamento de imagens de eventos referidos em diálogos no exacto momento que são trazidos à acção, aumenta o impacto imagético, e sobre põe palavra, imagem, som e, o que é raro, memória de uma forma única. Assisto a "JFK" duas vezes por ano, no mínimo, e nunca deixo de me surpreender com cada pormenor que descubro e com a imponência de uma obra de três horas e meia, em que passadas duas estamos no início de um julgamento e mesmo assim, o espectador não se cansa e quer mais. E as interpretações,mesmo que fugazes, todas perfeitas? A banda sonora de John Williams, uma das suas mais subvalorizadas? O crescendo de gritos em Dealey Plaza, que culmina num coro que clama pela alma perdida dos EUA? Um parágrafo não chega para pôr em palavras o puro poderio brutal de JFK, e a ausência de palavras obriga a que as imagens falem por si.
Não sei o que se passou com Oliver Stone desde o seu último verdadeiro grande filme, "Nixon". "Any given sunday" tem momentos de grande impacto, daqueles que se esperam do que foi, numa certa altura, um dos mais fascinantes cineastas norte-americanos. Continuou a experimentar géneros, a cumprir projectos longamente acalentados e a ceder ocasionalmente a oportunidades fáceis de ganhar dinheiro, permitindo a a estúdios explorar os seus sucessos e a sua própria fama de provocador político. No entanto, embora adormecido, não creio que Stone esteja morto artisticamente. A estreia, na próxima semana, de uma série documental que produz e realiza, "The untold story of the United States of America" pode ser a prova disso. Este é, afinal, o mais romântico cronista político dos Estados Unidos da América. truculento, polemista e gritando contra o seu próprio país as vezes suficientes para nos provar que o ama verdadeiramente.
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