domingo, 30 de dezembro de 2012

"Argo"



A ideia de Ben Affleck, o realizador, tem ganho permanência nas nossas mentes desde o seu início em "Gone baby gone". Num começo prometedor, guiando um thriller de maneira segura e com excleentes performances, Affleck permaneceu na sua Boston natal para transformar "The town" num daqueles filmes de que era impossível não se gostar no ano de 2009. Neste ano, o realizador/actor tomou a decisão de mudar de ares, como que para provar de que a sua musa da Costa Leste não era o que definia e marcava a qualidade do seu cinema. Desta vez, mantendo no género do thriller, viajou para o Médio Oriente, e o resultado é um filme que embora não deslumbre pela perfeição das imagens, é muitíssimo competente e mostra Ben Affleck como um dos realizadores que melhor sabe contar uma história escorreita e eficaz.



A história do filme parece inventada, mas é baseada em factos verídicos: no meio da revolução iraniana em 1979, a embaixada norte-americana é ocupada por cidadãos do país, e no meio da confusão, seis funcionários escapam-se para a casa do embaixador canadiano, permanecendo em segredo no país. Para evitar um embaraçoso incidente internacional, o governo norte-americano arrisca um plano ousado (leia-se absolutamente desequilibrado) que propõe a simulação das gravações de um filme de ficção científica em território iraniano para infiltrar um agente que retire os seis cidadãos americanos do país. Alguém ponderar este plano de forma séria já é risível; saber que resultou, supera isso. No entanto, é a história perfeita para um filme de Hollywood: é high-concept o suficiente para poder ser definido num par de linhas, e transmite a mensagem tão querida no meio artístico que a arte, no caso o cinema, pode de facto mudar a História e ter uma intervenção importante na vida das pessoas. Ben Affleck não nos atira com isso constantemente à cara, e aí, pontos para ele. Mas essa ideia está subjacente e não pode se retirada.



O filme divide-se em dois palcos de acção distintos: uma viagem de Tony Mendez, o agente que idealiza todo o plano (e é interpretado por Affleck com calma, soturnidade e barba de três semanas, o que para uma cara bonita significa "estou a fazer um papel sério"), a Hollywood para criar, de facto, um filme a sério e do qual os iranianos não possam desconfiar; e uma Teerão feita ratoeira, onde a qualquer momento os guardas revolucionários podem descobrir que faltam seis reféns na embaixada, e a situação vira para o torto (fantástico o instrumento com que este suspense é mantido e que não revelarei). Na primeira, desenrola-se uma comédia de bom ritmo, onde Alan Arkin e John Goodman mostram como fazer rir sem transformar um filme sério em ridículo, com boas tiradas ("If I'm going to produce a fake movie, it's going to be a fake hit"). Desconstrói-se um pouco de Hollywood e mostra-se como o cinema, no fundo, é a arte de fazer parecer sem que se faça muita coisa realmente. Desviar a atenção daquil que existe para uma criação ficcional daquilo que se quer fazer acreditar que exista. Ou seja, criar um filme não é muito diferente de fazer espionagem. Goodman, bonacheirão e bem disposto, contra-balança a impaciência e língua afiada de Arfkin, como um produtor famoso, mas ultrapassado, que vê neste "projecto" a oportunidade de fazer algo de diferente com a carreira.



É em Teerão, no entanto, que se centra a real angústia que permeia o filme. Mesmo para quem conhece o caso real e seu desfecho (como era o meu caso), a narrativa do filme avança fluida e transporta-nos para um estado de incerteza onde tudo parece tremido até ao final. É certo que os clichés não são poupados, mas Affleck atira-os com galhardia, no momento certo e sabe criar condições para que, inconscientemente, quase peçamos que esses clichés aconteçam. Tudo porque não queremos que a história acabe mal. Por estranho que pareça, a mistura entre os dois elementos (comédia e thriller) e muito bem utilizado pelo realizador. A prova está no facto de ambos se complementarem e serem reflexos um do outros em vez de se anularem e atrapalharem. Uma sequência prova este simples facto, e é virutosa e inesperada: entrecortando a leitura pública do guião do seu filme falso (uma ficção científica série B altamente manhosa), com direito aos típicos taradinhos e figuras da Hollywood superficial e decadente, com a leitura pública de um comunicado político por parte de alguns revolucionários, focando também o drama daqueles que estão reféns na embaixada, Affleck mostra como, seja política ou cinema, é tudo um espectáculo; e por isso, a ideia de usar um filme falso para resolver um imbróglio diplomático não será assim tão descabida.



Destaca-se ainda Bryan Cranston (como sempre, excelente) no papel do superior de Ben Affleck., que reforça uma das ironias no filme: para um plano que depende tanto do espectáculo, é estranho como o seu sucesso passará despercebido durante vários anos, sem nunca se saber o que realmente aconteeu. Affleck chama a si também um papel ingrato na posição de actor, assumindo a personagem mais apagada, eno entanto central à história. Tudo porque ele sabe que é assim que deve ser para que o filme resulte e cative. Sacrificar-se em prol da sua obra? Marca de um realizador muito bom. A continuar assim, teremos de usar a palavra "excelente" a seguir ao seu nome; e não parecerá nada estranho.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"EVERYONE!!!!!!!!!!!!!!!"


"Léon"; de Luc Besson

"Brave"



"Brave" tem um enorme problema que vai gerindo durante a hora e meia de duração: traz a marca "Pixar", mas em simultâneo, é um filme Disney. Parecendo que não, ser filho de ambos os ventres não é exactamente fácil. O modelo Disney, por muitas transmutações que lhe dêem, vem formatado e reflecte-se, por exemplo, no modelo da história, onde uma princesa tem de decidir o seu destino, tendo como pano de fundo conflitos entre clãs escoceses (e a belíssima paisagem do país). A irreverência da Pixar, neste ponto, é retirar da equação um dos pontos principais de qualquer história de princesas: o príncipe. De facto, e surpreendentemente, não há qualquer tipo de intriga amorosa, e o objectivo de Merida, a ruiva de cabeleira indomável que protagoniza a película, nunca passa por ou depende de um homem. Ela procura o seu próprio caminho, porque quer ser feliz. Por seus próprios meios. Há aqui uma deliciosa subversão da marca maior da casa do ratito de orelhas grandes.



No entanto, o peso Pixar faz-se sentir na hora de avaliar. É impossível dizer que estamos na presença de um mau filme: há um sentido na história, alguns momentos bem filmados e divertimento (por vezes mais pueril, mas entende-se que a abdicação do princípio da princesa Disney tenha chegado com um preço) e prestações vocais excelentes (com destaque para Emma Thompson e Kelly McDonald, mãe e filha com trovão e fricção suficientes para ultrapassarem as linhas dos desenhos) e o primeiro acto é uma maravilha de estabelecimento de personagens, conflito, ambiente e uma cena badass protagonizada por uma mulher que atropela o orgulho de três herdeiros do respectivos clãs escoceses, que lutam pela sua mão numa prova de arco e flecha. Tudo isto entusiasma e dá a ideia da chegada de um excelente filme da Pixar, depois do desaire de "Cars 2". As mulheres, e neste caso a luta de vontades entre elas (a rainha Ellinor quer fazer cumprir uma tradição sobre a qual toda a estabilidade da Escócia se aguenta; a filha, Merida, pretende procurar a sua própria felicidade sem constrangimentos e com o seu direito a escolher), os homens são cartoons na definição mais simplória do termo, sem uma personalidade própria e representando a ideia estereotipada que temos dos escoceses: brigões, beberrões e usando o seu kilt de mil e uma maneiras marotas. É engraçado, mas espera-se sempre mais da Pixar.



Depois de um twist quase Myiazakiano (que não vou revelar), o filme entra na sua vertente mais próxima da Disney: um vilão mau, muito mau, uma bruxa, uma lição familiar e a moral de que por muito que se queira ser independente, se deve amar a família e escutar tudo o que eles no dizem, embrulhando toda a história (e o apressadíssimo terceiro acto) num lacinho brilhante e algo asséptico que não é habitual na Pixar. Para mim, os filmes desta casa são sinónimo de ficar em lágrimas quase, emocionado, arrebatado. "Brave" é divertido, muito bem desenhado (o pormenor das paisagens escocesas é de deixar uma pessoa a trocar as retinas) e tem algumas personagens cativantes, mas sem uma complexidade de leitura que ultrapasse o simples trabalho de animação. É um excelente desenho animado, mas um razoavelmente bom filme da Pixar. Eis o momento quando a excelência é a nossa principal inimiga.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"The grey"



Liam Neeson tem construido uma carreira recente praticamente ao contrário de todos os outros actores da sua geração. Ao invés de aceitar papéis secundários de luxo em produções de estúdio ou protagoninstas melancólicos em filmes independentes desenhados para o prestígio, o irlandês que nunca consegue disfarçar a origem do seu sotaque tem forjado a carreira num nicho muito restrito: o de herói de acção cinquentenário. "Taken", de 2008, gravou na mente de uma geração mais nova e impressionável uma imagem de Neeson com que a maioria dos cinéfilos não se identifica. Por muito bacoco que seja, o discurso ao telefone desse filme de Pierre Morel tornou-se numa daquelas cenas que entram de imediato para a cultura popular. O actor aproveitou a boleia para fazer mais filmes do género, dando as boas vindas a uns milhões de dólares com que não contaria nesta altura da carreira. Liam Neeson, ao invés de Oskar Schindler, tornou-se sinónimo de um homem com um conjunto particular de habilidades, boa parte delas em forte conflito com os departamentos de ortopedia dos hospitais europeus.



Por isso, quando surgiu o rumor que de "The grey" envolveria uma luta de sobrevivência, entre homens e lobos, geeks e pessoas facilmente impressionáveis em todo mundo entraram em frenesim. A situação chegou a um ponto em que a alcunha do filme era "The wolf puncher". Pois bem, a boa notícia é que "The grey" é uma absoluta surpresa para quem está à espera de mais um esforço alimentício às costas de um herói de acção improvável. Um filme que cruza sobrevivência, depressão, a questão da ausência de Deus e um clima antecipação trágica que, esse sim, se pode esmurrar não são características que se podem antever do trailer, mas estão lá; e fazem dele um objecto complexo. O personagem principal, o John Ottway de Neeson, é um segurança num complexo de exploração petrolífera no Alasca. Desde o início do filme que está à beira da depressão suicida; e os seus desejos parecem ter sido atendidas, quando o avião em que se desloca com os colegas de trabalho, se despenhar no meio de nenhures. No meio de tudo isto, existem as temperaturas gélidas, a falta de comida, mortos e uma matilha de lobos que parece ter uma especial predilecção por carne humana.



O que resulta daqui é um filme de sobrevivência duro e inesperadamente emocional. Liam Neeson tem a sua melhor performance em largos anos. Um momento, em particular, pouco depois de o avião despenhar inverte tudo o que damos por certo na imagem durona que o irlandês tem criado nos últimos anos, sem no entanto nos pôr a duvidar de que ele é o macho alfa daquela grupo. É um momento quase inesperado de emoção que rapidamente desaparece na necessidade de sobrevivência nas circunstâncias mais adversas, mas fica na memória e estabelece, para lá da sua testosterona, o carácter de Ottway. A acompanhá-lo, um conjunto de personagens habituais neste género (o crente religioso, o homem de família, o cínico machão, o comic-relief), mas desenham apenas o suficiente para não desaparecerem no meio da neve. Curiosamente, para um filme onde os lobos são o antagonista mais óbvio, as mortes provocadas pelos animais são filmadas de forma rápida e eficaz. É no confronto entre os desesperados homens e a Natureza que está o principal interesse e conflito da obra. Expõe-se um conflito entre o Homem e o Caos, e a arbitrariedade de tudo o que constitui a vida. Na verdade, toda a ausência de sentido aumenta com o facto de sabermos a tendência suicida de Ottway. É como se a imensa montanha gelada, com as suas florestas impenetráveis fosse o seu mundo mental e os lobos os demónios que o perseguem e acicatam. É um paralelismo interessante e que resulta através da interpretação intensa de Neeson. Talvez seja curioso o facto de o actor ter passado por uma crise semelhante durante a rodagem do filme, visto que a sua esposa, Natasha Richardson, morreu pouco antes do início.


Carnahan mantém a realização apertada e usa a agitação da imagem com eficácia, e alguns toques graciosos aqui e ali. A tensão é mantida durante todo o filme, com espaço para momentos de camaradagem e revelações pessoais que vão construindo a nossa própria relação com os personagens. Não são duros, nem heróis... São homem que tomaram decisões e vivem com elas, que vão da bravura exclamativa à percepção do seu verdadeiro lugar no mundo natural no tempo de um uivo mais forte. São falíveis, portanto, e estão entregues àquilo que não podem controlar. Carnahan reforça isto colocando sempre os corpos numa perspectiva anã em relação ao cenário, deixando-os desfocados como se fossem simples sombras que não fazem mossa. Utilizar estes estilo, agitado e tremente, não é para todas as mãos. Que o diga David Goyer, por exemplo, que arruina "The end of watch", que vi hoje, por uma péssima utilização dessa técnica. Aqui, o realizador não falha: o imediato da acção e a majestade da paisagem coexistem, aumentando o impacto da luta pela sobrevivência. Não é excepcional o tempo, mas quando o é, ressoa os temas do filme; e isso é uma
das coisas mais básicas sobre realização de cinema.



O filme tem um ou outro defeito com que se vive bem. É complexo, mas não fastidioso, e entretém esticando um pouco dos limites da credulidade. No entanto, o final do filme é absolutamente honesto e perfeito, e tendo o início o tom quase desesperado da tristeza humana, tudo o que está no meio são pormenores (mesmo que um desses pormenores seja um desastre de avião magnificamente filmado). Como no início, está tudo em Neeson. Na sua cara, na sua expressão nos seus olhos. A morte e a ressurreição. Mesmo que os olobos sejam o principal chamariz, é o irlandês que nos chama à luta. Uma e outra vez.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Não se pode comer só gourmet



"Pirates of the Caribbean", filme de 2004, não devia ter funcionado. No entanto, uma mistura de acidentes felizes  fabricou o início de uma das sagas de maior sucesso da última década. A base era um entretenimento de parque temático Disney, mas não interessava: a ponta de irreverência que por acidente entrou no filme deu-lhe um tom de frescura que o distingue de outras blockbusters de aventura, inclusive das suas próprias sequelas. É um estranho híbrido entre um filme de aventuras a sério e o seu gémeo gozão. O filme funciona porque finalmente se deu rédea solta a Johnny Depp num filme mainstream (e num papel que, se atentarmos, não é exactamente aquilo que esperamos numa actuação comercial); porque o ar cabotino de Orlando Bloom, essencial para compreendermos a sua carreira, é posto no melhor dos usos; porque Keira Knightley não é uma donzela tradicional e tem talento para perceber que o que se lhe pede é, precisamente, que não o seja; e Geoffrey Rush não precisa de adjectivos. As partes 2 e 3 eliminaram um enfoque nas dinâmicas entre estes personagens e adoptaram a máxima de "quanto maior, melhor". Resultado? São chatos que dói.
O quarto filme da saga muda de condutor, e Gore Verbinsky dá o lugar a Rob Marshall. O resultado é uma fita com uma clara divisão: os momentos em que Johnny Depp aparece, ora com Rush, ora com a neófita Penelope Cruz (que está do caraças), e os outros onde se introduzem personagens que fazem da narcolepsia um instrumento de profissão. O mobil da fonte da juventude está bem esgalhado, e verifica-se uam corrida a três pela sua posse entre piratas, ingleses e, no subtexto mais interessante do filme, os espanhóis. Há um ou duas set-pieces bem encenadas, mas nada de extremamente memorável. Gore Verbinsky não é um realizador de encher o olho, mas sabe que a loucura é matriz principal desta saga. Rob Marshall traz diversão, mas sem açúcar; e se bem que Jack Sparrow é demasiado doce para sofrer de dieta, o resto do filme acaba por se arrastar um pouco mais do que devia, entre a diversão ocasional.



"Real steel" é um daqueles filmes com coração onde parece picuinhas falar mal. Mas eu não sou propriamente conhecido pelas minhas boas maneiras. No entanto, há que ser honesto: Hugh Jackman é um actor que merece tudo o que de bom lhe acontece, pois é um duro carismático, que equilibra bem o sentimentalismo e a agressividade da rudeza australiana que lhe encaminhou o papel de Wolverine. Tendo o desafio de interpretar um homem que ignorou, até ao início do filme, o seu filho (e se vê obrigado a ter de passar com ele um Verão no meio dos robôs pugilistas que compõem a sua profissão), ele cativa e atrai o espectador, ajudado pelo ar reguila de Dakota Goyo, que interpreta o petiz. Evagenline Lilly aparece, e só se pode aplaudir isso. No entanto, a partir do primeiro quarto, o filme imita (para não dizer "rouba) a intriga de "Rocky". Não é homenagem, é roubo. Ponto por ponto: a história de um robô que todos julgam ultrapassado e volta para desafiar o campeão do mundo não surpreende e só ressoa pelos dois actores em questão Há bons efeitos especiais, mas de resto, dispensa-se.



"Die hard 4" devia ser pior do que é; mas entretém e é divertido dentro da sua irrealidade (Mclane contra um helicóptero; Mclane contra um avião a jacto; Mclane passa um dias com um nerd e não lhe dá três galhetas). Numa intriga que o coloca contra piratas informáticos que se aliam a atletas de parkour, Bruce Willis passeia um ar enfadado, mas sem comprometer. Mantém-se a tradição de haver vilões fracos quando não se entrega o papel a britânicos )Timothy Olyphant é bom actor, mas consegue ser das piores coisas do filme) e Len Wiseman, não sendo John McTiernan (não há, actualmente, mitos bons realizadores de acção com menos de 60 anos. Porquê? Não sei mesmo, mas parece estranho, não é?) carrega as coisas em modo cruzeiro, sem dar tempo para pensar nos imensos buracos narrativos e em toda a estranheza de vermos um "Die Hard" que tem muito pouco de hard e onde a acção e linguagem acabam por ser bastantes soft em aparato.