quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
"The grey"
Liam Neeson tem construido uma carreira recente praticamente ao contrário de todos os outros actores da sua geração. Ao invés de aceitar papéis secundários de luxo em produções de estúdio ou protagoninstas melancólicos em filmes independentes desenhados para o prestígio, o irlandês que nunca consegue disfarçar a origem do seu sotaque tem forjado a carreira num nicho muito restrito: o de herói de acção cinquentenário. "Taken", de 2008, gravou na mente de uma geração mais nova e impressionável uma imagem de Neeson com que a maioria dos cinéfilos não se identifica. Por muito bacoco que seja, o discurso ao telefone desse filme de Pierre Morel tornou-se numa daquelas cenas que entram de imediato para a cultura popular. O actor aproveitou a boleia para fazer mais filmes do género, dando as boas vindas a uns milhões de dólares com que não contaria nesta altura da carreira. Liam Neeson, ao invés de Oskar Schindler, tornou-se sinónimo de um homem com um conjunto particular de habilidades, boa parte delas em forte conflito com os departamentos de ortopedia dos hospitais europeus.
Por isso, quando surgiu o rumor que de "The grey" envolveria uma luta de sobrevivência, entre homens e lobos, geeks e pessoas facilmente impressionáveis em todo mundo entraram em frenesim. A situação chegou a um ponto em que a alcunha do filme era "The wolf puncher". Pois bem, a boa notícia é que "The grey" é uma absoluta surpresa para quem está à espera de mais um esforço alimentício às costas de um herói de acção improvável. Um filme que cruza sobrevivência, depressão, a questão da ausência de Deus e um clima antecipação trágica que, esse sim, se pode esmurrar não são características que se podem antever do trailer, mas estão lá; e fazem dele um objecto complexo. O personagem principal, o John Ottway de Neeson, é um segurança num complexo de exploração petrolífera no Alasca. Desde o início do filme que está à beira da depressão suicida; e os seus desejos parecem ter sido atendidas, quando o avião em que se desloca com os colegas de trabalho, se despenhar no meio de nenhures. No meio de tudo isto, existem as temperaturas gélidas, a falta de comida, mortos e uma matilha de lobos que parece ter uma especial predilecção por carne humana.
O que resulta daqui é um filme de sobrevivência duro e inesperadamente emocional. Liam Neeson tem a sua melhor performance em largos anos. Um momento, em particular, pouco depois de o avião despenhar inverte tudo o que damos por certo na imagem durona que o irlandês tem criado nos últimos anos, sem no entanto nos pôr a duvidar de que ele é o macho alfa daquela grupo. É um momento quase inesperado de emoção que rapidamente desaparece na necessidade de sobrevivência nas circunstâncias mais adversas, mas fica na memória e estabelece, para lá da sua testosterona, o carácter de Ottway. A acompanhá-lo, um conjunto de personagens habituais neste género (o crente religioso, o homem de família, o cínico machão, o comic-relief), mas desenham apenas o suficiente para não desaparecerem no meio da neve. Curiosamente, para um filme onde os lobos são o antagonista mais óbvio, as mortes provocadas pelos animais são filmadas de forma rápida e eficaz. É no confronto entre os desesperados homens e a Natureza que está o principal interesse e conflito da obra. Expõe-se um conflito entre o Homem e o Caos, e a arbitrariedade de tudo o que constitui a vida. Na verdade, toda a ausência de sentido aumenta com o facto de sabermos a tendência suicida de Ottway. É como se a imensa montanha gelada, com as suas florestas impenetráveis fosse o seu mundo mental e os lobos os demónios que o perseguem e acicatam. É um paralelismo interessante e que resulta através da interpretação intensa de Neeson. Talvez seja curioso o facto de o actor ter passado por uma crise semelhante durante a rodagem do filme, visto que a sua esposa, Natasha Richardson, morreu pouco antes do início.
Carnahan mantém a realização apertada e usa a agitação da imagem com eficácia, e alguns toques graciosos aqui e ali. A tensão é mantida durante todo o filme, com espaço para momentos de camaradagem e revelações pessoais que vão construindo a nossa própria relação com os personagens. Não são duros, nem heróis... São homem que tomaram decisões e vivem com elas, que vão da bravura exclamativa à percepção do seu verdadeiro lugar no mundo natural no tempo de um uivo mais forte. São falíveis, portanto, e estão entregues àquilo que não podem controlar. Carnahan reforça isto colocando sempre os corpos numa perspectiva anã em relação ao cenário, deixando-os desfocados como se fossem simples sombras que não fazem mossa. Utilizar estes estilo, agitado e tremente, não é para todas as mãos. Que o diga David Goyer, por exemplo, que arruina "The end of watch", que vi hoje, por uma péssima utilização dessa técnica. Aqui, o realizador não falha: o imediato da acção e a majestade da paisagem coexistem, aumentando o impacto da luta pela sobrevivência. Não é excepcional o tempo, mas quando o é, ressoa os temas do filme; e isso é uma
das coisas mais básicas sobre realização de cinema.
O filme tem um ou outro defeito com que se vive bem. É complexo, mas não fastidioso, e entretém esticando um pouco dos limites da credulidade. No entanto, o final do filme é absolutamente honesto e perfeito, e tendo o início o tom quase desesperado da tristeza humana, tudo o que está no meio são pormenores (mesmo que um desses pormenores seja um desastre de avião magnificamente filmado). Como no início, está tudo em Neeson. Na sua cara, na sua expressão nos seus olhos. A morte e a ressurreição. Mesmo que os olobos sejam o principal chamariz, é o irlandês que nos chama à luta. Uma e outra vez.
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