sábado, 27 de outubro de 2012

"Hard boiled"




Não há maneira de exagerar o impacto de John Woo na história do cinema de acção, e não só: Tarantino não teria uma carreira no cinema se não fosse Woo. O realizador de Hong Kong elevou um género conhecido por ser despachado e directo a uma arte, juntando a dureza e falta de elegância das armas de fogo com a graciosidade e sentido estético de pura dança tradicional do género de acção oriental. De facto, o ritmo e mise en scéne empregado nos seus filmes podiam facilmente caber no estilo wuxia (muito popular na China, que mistura artes marciais tradicionais e bailado, e que foi trazido para o Oriente, juntamente com outras técnicas e marcas estilísticas de Woo, pelo manos Wachowski em "Matrix"), com as suas cenas trepidantes coreografadas, cinéticas, prolongadas e em crescendo. Os gangsters e polícias dos seus filmes correspondem aos mestres e vilões de artes marciais que se degladiam com pistolas no lugar de espadas.



Boa parte do público ocidental conhecerá o seu trabalho através de "Face off", o brilhante jogo de máscaras com Nicholas Cage e John Travolta (dois reis do over-acting a trabalhar com um realizador over the top) e "Mission impossible 2", o panfleto que tentou entregar o Noble da Medicina por perfeição física a Tom Cruise. No entanto, o melhor do seu cinema explodiu em Hong Kong; e se "The killer" é a obra mais emblemática de Woo, o pináculo do seu poder transfiguira-se "Hard boiled", que por reunir os dois melhores actores chineses dos últimos 20 anos, será um pouco como o "Heat" oriental. Chow Yun-Fat  e Tony Leung (um espantoso actor que não fez o cross-over para o Ocidente, e merece-o tanto como nós o merecemos) interpretam um polícia e um criminoso, respectivamente, A intriga gira em torno de uma vingança, dois chefes criminosos com graus morais muito diferentes e uma operação da força policial de Hong Kong para desmantelar tráfico de armas através de um informador e de toneladas de rosas brancas. Tudo isto é, claro, um pretexto para acção furiosa e um estudo superficial sobre o male bonding engtre um polícia e um bandido, um ponto central na trama de vários filmes de Woo. Assim como os gangsters beneficiaram do estilo do realizador noutros filmes, aqui são os polícias, encimados por Tequila, o duro entre duros, que saem bem vistos. O realismo é um pormenor aqui. O primeiro tiroteio do filme, num casa de chã, deixa mais de 30 cadáveres pelo caminho, mas tudo é feito com um tal nível que o exagero parece fazer parte do programa. Se Woo usasse o realismo, haveria queixas. Acontece quase uma subversão das expectativas: de modo a ser genial, tudo tem de ser irreal. Compreendo, em certa medida, porque é que o sonho do chinês sempre foi realizar um musical: tal como nos seus filmes, é um género que se presta a desligar do real de quando em vez, tornado ordenado e planeado o movimento, de modo a traduzir para o espectador o efeito de um sopro. Mas enquanto que nos estilo musical surge uma brisa, o cinema de Woo é a época de furacões mais estrondosa do Extremo Oriente.



O estardalhaço atinge o seu cume numa das mais espantosas sequências da história do cinema: um tiroteio dentro de um hospital que dura uns cinquenta minutos, e simplesmente não abranda. Pelo meio há que evacuar bébés (ecoando os problemas em assentar de Tequila, mas apenas o suficiente para não nos sentirmos envergonhados pelo gozo que temos com a pura e simples acção) e gente graúda, e os capangas do vilão nunca mais acabam. No entanto, há tempo e espaço para questões sobre identidade, moral e, estamos afinal num filme chinês, honra. O personagem de Tony, o bandido que afinal não é, debate-se com o lado da lei ao qual pertence, e em certo momentos, há a noção de que não falta muito até que dê um tiro em si mesmo. Este estado de espírito é o que força Tequila, o polícia, a encarar uma outra forma de cumprir a lei que se afaste da sua, incorrigível e irreverente. É também por isso que os filmes de Woo se tornaram bem sucedidos na cativação do público masculino: porque falam de problemas que os homens sentem como seus, ainda que não arranhando muito a superície. Qualquer homem entende a linguagem da testsoterona, principalmente quando esta esconde um outro tipo de alfabeto que nenhuma mulher pode compreender.

Assistam, e deliciem-se com delírio a sério. Para começarem a enquadrar realizadores que acham
 "originais"; e já agora, para contemplar um dos long takes mais badalados de toda a história do cinema."Hard

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