domingo, 27 de abril de 2014

"The unknown known"



Em 2003, Errol Morris fez "The fog of war", um belíssimo documentário onde entregou a cadeira do confessionário "inter-rotrónico" a Robert McNamara, que durante anos foi secretário de estado da Defesa em duas presidências norte-americanas. Do confronto entre factos da sua carreira e as resposta às perguntas do realizador, resultava um retrato contraditório, humano e em última instância, daquela lucidez que atinge alguns homens no final da sua vida, quando olham para trás e começam a pensar que as suas grandes vitórias talvez tenham sido erros no grande esquema da moral humana. Longe de ser uma denúncia política, era uma entrevista equilibrada, onde as entrelinhas são o fundamental para entender o que se está de facto a passar. 10 anos depois, Morris pareceu dedicar-se a uma sequela espiritual com "The unknown known, onde convidou o vilanesco Donald Rumsfeld a enfrentar igual desafio. O produto final, no entanto, está longe de ser tão produtivo e imediato quanto o referido documentário, pois fica a ideia de que McNamara tem pelo menos alguma coisa a que podemos chamar consciência e a noção do lugar que a História contemporânea lhe reserva. Talvez em virtude de uma natureza egocêntrica, e também de um distanciamento muito curto, Rumsfeld não possui nenhuma dessas qualidades. Temos então um raro objecto documental, onde o mais importante é aquilo que não está lá, apesar da utilização de alguns exemplares das centenas de milhar de memorandos escritos durante as suas regências em cargos públicos no governo norte-americano.Com um sorriso cínico, um comportamento de quem se acha o mais inteligente da turma e uma vontade de querer reescrever e ditar a História pelo seu próprio discurso, Rumsfeld emerge como alguém decidido a frustrar os planos do entrevistador com uma atitude passiva-agressiva, e uma ideia que define toda a política externa norte-americana desde sempre: merda acontece, a culpa não é nossa. Morris deixa Rumsfeld falar, e usa os jornais como contra-ponto da narrativa ficcional com quem Rumsfeld tenta convencê-lo, e nesse sentido este documentário tem muito mais a ver com "Tabloid" do que com "The fog of war": entre cada sorriso e tirada pretensamente espirituosa, o desespero opaco e fugidio de Rumsfeld escapa uma e outra vez do confronto com a verdade e do seu papel na História. "The unknown known" talvez não seja o filme explosivo que muitos queriam ver, mas é uma obra excelentemente realizada (com um cuidado estético que esperamos de Morris e que o tornam num homem à parte no panorama documental actual), com uma fantástica banda sonora de Danny Elfman e uma fidelidade aos seus princípios que me atrai sempre a ver cada novo filme do realizador. Na impossibilidade de obter a verdade directamente, Morris trata o discurso oblíquo de Rumsfeld na sua medida certa: a imagem recorrente de num oceano sem limites, que é substituído por um pântano, retratam a tempestade perfeita de tretas com que somos bombardeados e toda a expedição norte-americana ao Médio Oriente. Algo que, trinta anos antes, Rumsfeld tinha até previsto. O desconhecido, para Rumsfeld, tornou-se conhecido antes de sê-lo.

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