Mantenho há algum tempo a opinião de que a obra geral de David Fincher é das mais incompreendidas do cinema actual, e até mesmo por aqueles que o adoram. As referências às suas obras seminais "Seven" e "Fight club" é recorrente, mas parece que chegado ao século XXI, a carreira do autor de São Francisco entra numa espécie de faz de conta onde os filmes não conseguem ser obrad-primas ou referências. Uma ou outra alma caridosa ainda concede o título a "Zodiac" (e com toda a justiça), mas fica-se por aí e não se atreve a ir mais longe. Acho que tal se deve não a um declínio de talento do norte-americano, mas sim de foco: depois de ter criado uma reputação de esteta supremo, capaz de estilo a rodos, vira a partir de "Zodiac" o seu foco para a narrativa pura e dura, e é nesse campo que se tem tornado num dos cineastas norte-americanos definitivos dos últimos anos, como um dos últimos guardiões de um certo cinema de tradição clássica que Hollywood tem perdido. Na verdade, partilha essa mudança na carreira com outro dos grandes nomes saídos da década de 90, Paul Thomas Anderson, que tem optado pelos estudos de personagem e dissecação pura de vícios e personalidade que é herdeira dos anos 60 e 70. Fincher, no entanto, usa a narrativa para se tornar não no cínico cuja luz parece por vezes emitir, mas num humanista puro: ele entende a natureza humana a partir de um ponto de vista imparcial, muito raramente julgando os seus personagens e preferindo entregar ao espectador esse papel. É, afinal, um dos nossos maiores prazeres: condenar ou absolver alguém cuja história nos é contada; e quase sempre falhamos, sem no entanto deixarmos de nos sentir atraídos por isso. Torna-se muito difícil encontrar alguém verdadeiramente vilanesco nos seus filmes, e mesmo as personagens que ocupam esse espaço com mais evidência, como o John Doe de "Seven", têm espaço para se fazer entender, e ganhar empatia; e estamos a falar de um sociopata cruel e sádico.
Não surpreende então que "Gone girl", jogo de fachadas e de moralidade relativa, seja um enorme filme nas mãos de David Fincher. Não vou falar aqui sobre a história, visto que a surpresa dos twists faz parte do jogo perverso que Fincher nos propõe, mas no geral é sobre um marido que se vê acossado pela polícia e pela imprensa após a sua mulher desaparecer no dia do seu quinto aniversário de casamento. É o que interessa para se localizarem no que se passa, e o resto é uma desmontagem da instituição do casamento, dos papéis que representamos todos os dias, do choque das expectativas contra a realidade, do papel corrosivo e destruidor dos media e acima de tudo, uma viagem pela repugnância num tom de humor negro supremo. O cinema de Fincher desconstrói, desmonta, desmistifica. Aponta um espelho à condição humana e diverte-se nas suas mentiras e contradições, desde o narrador anónimo de "Fight club", que no fundo que ser Tyler Durden, ou o Nicholas van Orton de "The game", destruído peça a peça por um jogo diabólico."Gone girl" é guerra dos sexos em esteróides, um conflito que divide a nossa empatia em bocadinhos muito pequenos. Em certos pontos, é a definição perfeita do que seria a comédia romântica de Fincher... Mas com sexo a rodos e cunnilingus como sinónimo da comunhão entre um casal. Ou seja, como as pessoas se comportam, e é o comportamento humano que guia toda a história. O filme questiona também a destruição dos sonhos e também da ideia do que deve ser a mulher no casamento, hoje em dia. Afasta-se o cliché da servilidade, e entra um novo conceito, o de mulher cool, revelado numa das melhores sequências do filme. Esta habilidade para juntar entretenimento pipoqueiro e conseguir, em simultâneo ser um retrato afiado do que é a vida em casal, e o mundo individual, no século XXI, é o que espanta neste filme, como se para Fincher o carrossel não dipensasse a biblioteca.
Mesmo sem extravagância, o filme é belo e excelentemente filmado pela fotografia de Jeff Cronenweth; os enquadramentos precisos de Fincher dão aos planos aparentemente normais um fôlego estético superior e servem na perfeição o seu principal mestre, a narrativa. Ben Aflleck, com um charme untuoso e gabarola, encarna na perfeição Nick Dunne, e se não é o actor certo, é pelo menos o vaso onde a nossa percepção melhor vê a imoralidade, e a certa altura desespero, de Dunne quando os jornalistas o rodeiam e lhe fazem incontáveis perguntas, Já vimos este filme. Apesar da solidez de todo o elenco secundário (onde Carrie Coon, que faz da irmão de Nick Dunne, se destaca pela suas tiradas), é Rosamund Pike quem comanda as atenções, numa daquelas performances que caminha entre dois mundos morais muito diferentes, e que tem mais camadas do que uma cebola: é difícil sair com uma opinião formada em definitivo, mas a certeza é que nunca é menos do que fascinante, na sua força e fragilidade, em toda a sua auto-justificação e desilusão. É um gosto de se ver.
É no plano inicial que o filme se define: Rosamund Pike surge como uma loura hitchcockiana numa ambiguidade que é tradicional em Fincher. Não olha para nós, dirige a sua atenção para um elemento fora do ecrã; mas está inquisitiva, sedenta ou simplesmente calma. Não sabemos. Não saber é, aliás, o mote do filme: o quanto, mesmo num casamento, não conhecemos o outro, e como a nossa pequena perversão curiosa destrói e mói e corrói. "Gone girl" é essa montra das fragilidades do mundo, que disfarçada de simples thriller do subúrbio, aguça as garras e arrasta a cortina das aparências. Uma coisa não é uma coisa, e podem ser três, e acreditar pode ser o maior dos erros. No meio de tudo isto, uma certeza: está aqui um dos filmes mais vitais de 2014, e uma daquelas obras que, como "Fight club" e "Zodiac", precisará de mais uns anos para que os cépticos se apercebam do que falharam no primeiro visionamento. Enquanto o grande cinema existir, Fincher nunca estará em parte incerta, mas sim na linha da frente.
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