Um exemplo que propositadamente deixei de fora foi o de "2001", visto que será a obra com a qual o último filme de Christopher Nolan, "Interstellar", é mais vezes comparado. Na aparência, existem motivos: ambos tratam de exploração espacial; ambos envolvem máquinas de inteligência artticifial; ambas apresentam a exploração do espaço com fascínio, deixando no ar a ideia de que é este o pináculo da evolução humana; e por fim, os dois filmes partilham plenas oportunidades de lançar os espectadores em horas de teorização e discussão. Deixe-me por isso dizer desde logo que "Interstellar" tem muito pouco a ver com a obra-prima de Kubrick. Aliás, em termos de tom, resultado final e até intenções, são dois filmes muito, muito diferentes. Tudo vem do que se discute acima: Kubrick, sábio como poucos realizadores, apresenta o seu espectáculo, uma reviravolta calma de tempo e espaço, com ideias e conceitos subentendidos e sugeridos, nunca explicados. O filme deve a sua imortalidade não só aos revolucionários efeitos visuais de Douglas Turnbull, mas à ambiguidade e abertura de interpretação do seu final e dos seus intermédios. Fica-se de boca aberta admirando a valsa das estrelas, mas no final, as dezenas de pormenores do filme, desde a filosofia à própria Física que permite a explicação possível do que vimos, é deixada ao nosso critério. Outra coisa que é deixada de fora é qualquer tipo de história emocional, de relação entre personagens. Estes são um meio para atingir um fim, que é a promoção da ideia subjacente a "2001" e sublinhando a relação entre homem e máquina.
Em "Interstellar", tal não existe. No coração do filme, está a história de um pai e uma filha que faz pulsar o filme emocionalmente como poucas obras de Nolan. Arriscava-me a dizer que com excepção de "Memento", raramente um filme seu possuiu uma intriga humana tão interessante. Spielberg teve "Interstellar" nas mãos antes do britânico, e o seu efeito faz-se sentir neste aspecto da narrativa, que é um dos melhores: ancora tudo o que vemos a seguir, desde o aspecto de exploração espacial (que é muito positivo: aliás, a caracterização do Homem como um ser curioso e aventureiro é muito à antiga, e coloca o astronauta quase como o navegador da Expansão portuguesa, que em "Interstellar" oferece literalmente novos mundos ao mundo) até à possibilidade de o mundo acabar porque já não se produz comida. No meio de tudo isto, a família do herói do filme, Cooper, interpretado por Matthew McConnaughey, está unida contra a desgraça, mas o pai é chamado mais uma vez ao Espaço, para descobrir um novo planeta onde os terrestres possam viver. Isto prejudica a sua relação com a filha mais nova, Murph, e quando Cooper salta para o espaço com os seus companheiros de viagem, é neste amor (e ódio) entre pai e filha que o filme brilha como um Sol, porque dá-lhe, de facto, uma complexidade que não rasa a lamechice e transforma tudo o mais de científico e prosaico numa empatia com quem vê. No entanto, Nolan, como em quase todos os seus blockbusters, carrega nas explicações científicas, na tentativa da aula de Física à iminência de um novo fenómeno cósmico que o espectador precisa perceber, embora, a bem do filme, até nem precise; e esta necessidade de explicação e de palavras excessivas retira poder e qualidade a um filme que tem tudo para ser enorme, e parece não querer. Há fitas que falham por terem erros científicos descabelados. É estranho ver esta prejudicar-se pelo motivo exactamente oposto. Este problema não trava apenas o ritmo de "Interstellar": retiram ao espectador o prazer de especular e de pensar, de conversar, de intuir. Ou seja, para um filme que tanto apregoa os valores da ciência e a sua importância (e isso é importante, e é uma boa propaganda), acaba por tirar bastante do debate. Podem-me argumentar que o quarto de hora final irá lançar a discussão durante muito tempo, mas eu digo que aquilo não bate certo com o que se viu antes: é um Deus Ex-Machina de argumento (ou seja, uma artimanha que cai do nada) para resolver uma série de problemas que são buracos na intriga, sob o pretexto de ser inteligente e fascinante. Sem revelar o que é, admito que é um conceito muitíssimo vem esgalhado, mas perfeitamente desnecessário e confuso nas horas. A satisfação do lado emocional do filme, parecendo que não, é sacrificado para mais um conceito de Física Teória deitado na arena; e isto, embora aceite que agrade a alguns, não favorece "Interstellar" em quase nada, e quer fazer passar por esperto o que não é grandemente de esperteza.
Dito isto, é um filme com coisas muito boas. A intensidade das cenas de acção é sempre de louvar em Nolan, e com Wally Pfister a fazer trampa como realizador, convoca-se Hoyte van Hoytema, que proporciona ao filme, e ao espaço cósmico, tons e cores fantásticas. A equipa de efeitos visuais consegue uma representação do Universo que não só é fiel,como hipnotiza e maravilha (e aqui, quem viu "Tree of life" não pode deixar de recordar as sinfonias espaciais que surgem a certa altura no filme de Malick para maravilhar/adormecer (risquem a que não vos interessa) o espectador). No meio dos predicados técnicos, duas interpretações surgem como símbolos humanos no meio de toda a teoria: uma é a de Jessica Chastain, num papel que não posso divulgar, e que no pouco tempo que surge (e no pouco que lhe dão de personagem) marca o filme de tal forma que dá vontade que tenha mais umas cenas de ciência só para vê-la; e sobre todos os outros, Matthew McConnaughey, fascinante como quase sempre nos seus filmes recentes, humano até à medula, ingénuo e desenvolto, emocional e o protagonista de cenas onde muitos se perderiam na parafernália lógica e matemático, mas onde ele é um bastião de integridade e humanidade. Uma, em particular, depois de um dos pontos baixos do filme, onde a câmara se fixa seguramente um minuto na sua cara e na sua expressão vale quase por si o preço do bilhete; e fez-me lamentar, noutras cenas posteriores, que Christopher Nolan não se tivesse deixado fascinar antes pelo actor texano, pela sua personagem que representa o que há de verdadeiramente humano e genuíno nesta história, em vez da aula científica a que se entrega desnecessariamente. Tem de se louvar a apetência (e a certo ponto, coragem) para Nolan criar um filme desta dimensão. No entanto, existe aqui um marco da ficção científica para ser feito, o o realizador inglês acaba por fugir disso,
No fim de contas, é um filme que considero razoável, e a certos espaços, bom. Embora acabe por se enrodilhar desnecessariamente (será que Nolan começa a sentir que o rótulo de realizador de blockbusters cerebrais se colou em demasia e ele se tornou numa franchise pessoal?), o coração que bate bem aberto em "Interstellar", raro de se ver na filmografia de Nolan, não me faz perder a esperança de que nos futuro, seja em três dimensões ou em cinco, surja do britânico uma nova obra de excelência e fascínio que me faça regressar ao tempo em que com "Memento" e "Insomnia" (e acrescento, se calhar, "The prestige") fazia a minha mente voar que nem um foguetão rumo ao espaço sideral onde o cérebro se pode alimentar sem sentir o coração traído.
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