Hulk é um
dos personagens conceptualmente mais interessantes da Marvel Comics.
Simbolizando a dualidade existente entre o homem e a besta (afinal, a principal
razão pela qual somos o ser mais complexo, por coexistir em nós uma civilidade
aprendida e uma selvajaria nata), é um reescrever moderno de um mito que vem da
Antiguidade (o Minotauro grego é um bom exemplo) e tem o seu
exemplo mais conhecido na história de Mary Shelley "Frankenstein",
que na sua edição original tinha como subtítulo "The modern
prometheus". A alusão ao titã Prometeu, que roubou para os homens o
conhecimento possuído pelos deuses, é bem aplicada a um cientista que pretende
dar vida a um cadáver e colocar-se, escatologicamente, num domínio que não é o
seu. Podemos recordar também "Dr. Jekyll and Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson, onde o principal personagem tem precisamente a divisão de personalidade que é a principal característica de Hulk.
O
interessante de Hulk é que junta os dois lados do conto de Shelley: ele é o
cientista, mas também o monstro. Bombardeando-se a si mesmo com os raios gama
que despertarão o poder escondido que dá origem à besta verde, Bruce Banner
torna-se divino de duas maneiras. Não é essa a sua intenção, inicialmente, e
não é por seu desejo que o seu alter ego aparece, mas Banner é deus científico
e físico, tornando-se virtualmente invulnerável quando atinge a sua
transformação. Esta apenas surge quando é possuído por uma extrema ira. Ou
seja, Banner só é deus, mesmo involuntariamente, quando renuncia à civilização
e o seu corpo se entrega à sua própria natureza. Com isto perde toda uma série
de coisas (amigos, a sua namorada Betty Ross, a carreira) que parecem só estar
ao alcance de quem aceita entregar-se às regras sociais. É como se nos
dissessem que para atingir um poder desmesurado, temos de desistir de tudo
aquilo que compõe a sociedade moral.
Não sou
especialista em comics, e por isso, não me debruçarei acerca das várias
evoluções da personagem neste formato. No cinema, porém, Bruce Banner teve duas
abordagens opostas, em estilo e objectivos.
A
primeira, realizada por Ang Lee em 2003, é uma proposta arriscada de usar um
super-herói da BD como motor de um psico-drama típico do realizador taiwanês.
Esta descrição não é paleio intelectual para o que se passa: as cenas de acção são
poucas e curtas, e a ligação à raiz da personagem nos comics é nula. Ang Lee
usa o confronto entre pai e filho para explicar as motivações da raiva
intrínseca de Hulk, e se calhar o que o torna realmente atreito a
transformações monstruosas. Talvez tenha sido o filme de arte e ensaio mais
caro da história, e se bem que muito interessante como objecto dramático, é pouco conseguido no campo do entretenimento imediato.
As
escolhas para os papéis secundários não surtem efeito (Sam Elliot é um general
Ross demasiado laidback, e Jennifer Connely está presa ao clássico papel de
dama em perigo), embora Eric Bana não componha um Banner totalmente fora do que
se esperava e Nick Nolte, em over-acting, seja um vilão realmente malévolo,
embora mais num ponto de vista psicológico do que de ameaça física real. O grande
destaque no filme, e aquilo que o torna superior a muitos do género, é o
cuidado na parte técnica (principalmente na montagem e direcção de fotografia)
de usar o cinema para espelhar o ritmo e estilo das BD.
Embora não tenha causado prejuízo, este "Hulk" ficou aquém das projecções financeiras da Marvel e da Paramount. Por isso, em 2008, estreou um reboot da história, que nem sequer funciona como sequela da obra de Lee. Pretendendo-se menos clima freudiano e mais músculo, contratou-se o francês Louis Leterrier, habituado a inventar novas formas de despoletar múltiplas fracturas na anatomia humana na saga "The transporter". O elenco mudou todo: Liv Tyler é Betty Ross, William Hurt é o General Ross e o vilão, preparado para ser uma ameaça física real, ficou com Tim Roth, que encarna o mercenário Emil Blonsky, mais tarde a besta Abomination.
Como seria de esperar, "The incredible Hulk" (o título do filme, que imediatamente o remete para o seu formato de origem) funciona muito melhor no campo do entretenimento e até mesmo da abordagem prática do personagem, embora seja claramente menos filme. É interessante como Leterrier se demora naquilo que realmente torna o poder de Hulk problemático, ou seja, questões quotidianas. A adrenalina que desperta Hulk vem de actos de raiva, é certo, mas também pode ser libertada através de excitação sexual, por exemplo. A impossibilidade de Bruce Banner habitar numa grande urbe moderna, com todo o stress que lhe é inerente, obriga-o a viver realmente isolado, e torna a sua solidão mais dorida. É pena que o filme apenas aflore os pormenores que acaba por retirar da massa da história. É, no entanto, na tradução de Hulk para o cinema que tem vantagem sobre o seu predecessor. Uma set-piece no campus de Harvard é uma cena muito bem esgalhada de destruição e de impotência da tecnologia humana contra a selvajaria da transformação de Banner, e o confronto final entre este e Abomination é aquilo para o que afinal todos pagam o bilhete quando se sabe que há um filme de Hulk.
E enquanto que Liv Tyler e William Hurt superam os anteriores actores nos seus papéis (ela muito mais fesity, ele uma figura de autoridade e swagger), Edward Norton, embora teoricamente uma boa escolha para um homem dividido na esquizofrenia dos extremos, acaba por falhar na captura daquilo que realmente é Hulk: o outro lado de Bruce Banner. Quando interpreta o cientista, Norton torna-o muito mole e macio, nunca se percebendo muito bem a raiva que está no seu interior e salta da maneira mais dramática possível. Embora o filme seja mediano no seu geral, podia ser um pouco melhor se Norton, que até escreve o argumento, traduzisse melhor o que faz Banner funcionar.
Chega-se
a "The avengers" e embora já o tenha visto, escreverei a review daqui
a uns dias, apenas. No entanto, posso desde já dizer isto: Mark Ruffalo é um
Bruce Banner muito credível, e capta muito bem a dicotomia destrutiva, e a
solidão desesperada que referi no início. Hulk, uma criatura mítica se
considerarmos a pop culture moderna uma mitologia própria, é aquele monstro e
deus que os antigos se habituaram a temer: imprevisível e caprichoso. No
entanto, este só tem duas opções: ou nos defende, estando do nosso lado, ou nos
condena, atropelando e destruindo tudo o que lhe aparece pela frente. Quando
acorda, nem se recorda do que fez. Por muitas voltas que licenciados em
literatura dêem para menosprezar a BD, não é este tipo de pathos que está
presente nos grandes heróis trágicos?
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