domingo, 22 de fevereiro de 2015

"Óscares": as previsões



Que estranha tem sido esta temporada de Óscares. O favorito é um filme com muito pouco de oscarizável, e mesmo o seu concorrente directo é tão estranho que num ano normal só seria mencionado em categorias de representação. Juntem-se dois biopics ingleses, mais filmes sobre sociopatas e quando uma biografia de Martin Luther King correu o risco de nem sequer ser nomeada, sabemos que este ano torna a arte de prever vencedores em algo muito parecido com o esoterismo. Posto isto, e fazendo desde já saber que estas previsões têm sempre algo de preferência, quero desde já dizer que esta colheita é, no geral, razoável, com alguns exemplares bem dispensáveis e a ausência do melhor filme americano do ano (“Gone girl”) a tornar tudo o mais quase ridículo em comparação. Partidas habituais dos Óscares, e já ando a brincar às previsões há tanto tempo que quase me consigo abstrair. Quase. De qualquer forma, o meu aviso é sempre o seguinte: quando previrem, não tentem puxar a brasa aos que gostaram mais. Nada tem a ver. Não há que chorar, nem lamentar, nem desejar que ganhe quem queremos. É o que é e ninguém sabe de nada.

Filme: E aqui está o problema todo da coisa, onde as regras vão pela janela: diz a tradição que o vencedor de Melhor Filme se prevê por quem ganha os prémios dos sindicatos mais importantes – Actores, Produtores e Realizadores. Por outro lado, nos últimos anos, o BAFTA tem-se assumido como um indicador bem seguro: quem ganha lá Melhor filme, segue para os Óscares favorito. Para completar o ramalhete, é muito, muito raro um filme ganhar o prémio máximo sem ter uma nomeação na categoria de montagem. Ora, existem dois claros favoritos, “Boyhood” e “Birdman”. Ambos filmes atípicos de Oscar, logo por aí não nos entendemos. O primeiro ganhou o BAFTA e tem sido o favorito quase desde o início. O segundo ganhou os três prémios dos sindicatos, mas não tem nomeação de montagem. “Birdman” tem a ligeira vantagem de ser um filme sobre o mundo do espectáculo e abordar o mundo do maior corpo de votantes da Academia, os actores. Mas “Boyhood” cumpre a quota de sentimentalismo que nos últimos anos tem imperado. Tudo pesado, empate técnico. No entanto, aposto em “Boyhood” porque me parece que está aqui o cenário perfeito para algo raro: filme e realizador a não irem para o mesmo.

Realizador: Aqui, normalmente, não há grande mistério – DGA equivale a Oscar, e a aposta é Iñarritu. Wes Anderson tem a primeira nomeação, e deve ter ficado contente pela atenção; Bennett Miller apareceu aqui aos caídos, mas tem sido normal, e é alguém de quem a Academia claramente gosta; Morten Tyldum é um erro de casting; e só Linklater tem um trabalho daqueles que sobressai ao ponto do mérito.

Actor: Carell, Cumberbatch e Cooper, está visto, só vêm para aquecer. Tudo se resolverá entre Michael Keaton e Eddie Redmayne. O primeiro tem um papel de total exposição, a identificação com a personagem e ter 61 anos (e a sensação de que se não ganha desta vez, nunca mais consegue). O segundo interpreta Stephen Hawking. A Academia gosta de aleijadinhos e Redmayne tem o SAG. Às vezes esta combinação falha, mas parece-me que interpretar Hawking é o tipo de seguro que nunca mais tem. Apostem em Redmayne.

Actriz, Actor Secundário e Actriz Secundária: Julianne Moore, J.K Simmons e Patricia Arquette. Nem tem história para contar, que eles têm limpo tudo

Daqui para baixo, os meus palpites são os seguintes:

Argumento Adaptado: “The imitation game” (mal entregue, que devia ganhar “Whiplash”)

Argumento Original: Coisas muito próximas entre “Birdman” e “Grand Budapest Hotel”. Vantagem para a dramédia de Iñarritu

Editing: A categoria crucial para os Óscares. Quem ganha aqui, segue normalmente para ganhar Melhor filme. Por isso, aposto em “Boyhood”. Mas cuidado com “Whiplash”

Fotografia: Mais uma vez, Roger Deakins está nomeado em “Unbroken”, e mais uma vez o melhor director de fotografia americano vai sair de mãos a abanar: a aposta é no trabalhode Emmmanuel Lubezki em “Birdman”, pelo show-off do aparente one-shot

Design de Produção: “Grand Budapest Hotel” tem bastantes nomeações, e este é um dos destaques da obra de Wes Anderson

Mistura de som: “Whiplash” é, para mim, o claro favorito; no entanto, “Interstelar” é o mais evidente nesse campo. Apostem no primeiro, atentem no segundo

Design de som: Aqui, “Interstellar” não deve ter concorrência~

Guarda-roupa: A extravagância de “Grande Budapest Hotel”, na sua nostalgia, será premiada

Banda Sonora: Alexandre Desplat é dos melhores compositores da actualidade, e já devia ter ganho um Oscar há muito. Aposto que será desta com “Grand Budapest Hotel”

Efeitos Visuais: Anda toda a gente a meter as fichas em “Interstellar” e talvez fosse justo, mas parece-me que o revolucionário trabalho em “Dawn of the planet of the apes” levará o prémio

Caracterização: Altura de saudar o sucesso off-beat de “Guardians of the galaxy”

Canção: “Selma a erguer-se para defender os direitos blablábla

Curta de animação: “The dam keeper”

Curta documental: “Crisis hotline: veterans press 1”

Curta de imagem real: “The phone call”

Animação: “How to traing your dragon 2” parece-me o óbvio favorito

Documentário: “Citizenfour” parece-me encaminhado, mas esta categoria tem sempre surpreendido nas últimas edições. “Virunga” tem Leonardo di Caprio como produtor…

Filme estrangeiro: “Ida” tem sido o filme mais falado desde o início, mas a Argentina arranja sempre maneira de fazer uma gracinha. Já há uns anos encavou “The white ribbon” e “Un prophet”. Este ano tem “Wild tales”. Aposto na obra de Pawlikoski, mas com reservas em relação ao seu adversário argentino


Já agora, por curiosidade, se voltássemos ao velho formato de cinco nomeados, estes seriam aqueles que considero os melhores na categoria de melhor filme:

"Whiplash"
"Birdman"
"Grand Budapest Hotel"
"Boyhood"
"Selma"

Faço a lista sem ter visto ainda "American Sniper"

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Oscars 2014: previsões



Que estranha tem sido esta temporada de Óscares. O favorito é um filme com muito pouco de oscarizável, e mesmo o seu concorrente directo é tão estranho que num ano normal só seria mencionado em categorias de representação. Juntem-se dois biopics ingleses, mais filmes sobre sociopatas e quando uma biografia de Martin Luther King corre o risco de nem sequer ser nomeada, sabemos que este ano torna a arte de prever nomeados em algo muito parecido com o esoterismo. Posto isto, e fazendo desde já saber que estas previsões têm sempre algo de preferência pessoal (vou prever David Fincher para realizador, mas estou convencido que não será nomeado), aqui estão os meus palpites para o careca dourado deste ano.

MELHOR FILME

"Boyhood"
"The theory of everything"
"Birdman"
"The imitation game"
"The Grand Budapest Hotel"
"Gone girl"
"American sniper"
"Nightcrawler"
"Foxcatcher"

10ª opção: "Whiplash" ou "Selma"

Os cinco primeiros parecem-me garantidos. Apesar de tudo, penso que "Gone girl" seguirá, e que o apelo do tema guerreiro de "American sniper" terá os seus adeptos de masculinidade num ano pouco dado ao retrato de homens seguros. Acreditando que serão nove os nomeados, como tem acontecido, sobram dois lugares para quatro filmes. Escolho "Foxcatcher", porque tem sido apontado consistentemente desde Veneza como nomeável e "Nightcrawler" não só porque achei o filme excelente, mas porque tem aparecido em muitas guildas onde não se esperava. No entanto, o tema de "Selma", sobre Martin Luther King, presta-se a Oscar, mesmo que a sua recepção na indústria tenha sido tépida; e "Whiplash" surgiu de nenhures para ser uma das surpresas da temporada.

MELHOR ACTOR

Michael Keaton, "Birdman"
Eddie Redmayne, "The theory..."
Benedict Cumberbatch, "The imitation game"
Jake Gyllenhall, "Nightcrawler"
Steve Carell, "Foxcatcher"

Considerem-se o primeiros 3 certos. Os outros dois estºao em situações diferentes: Gyllenhall parece-me seguro; Carell aind apode soltar, seja com David Oyelowo a fazer de MLK em Selma, seja com Bradley Cooper em "American Sniper"

MELHOR ACTRIZ

Julianne Moore - "Stil Alice"
Rosamund Pike - "Gone girl"
Reese Whitherspoon - "Wild"
Felicity Jones - "The theory..."
Jennifer Aniston - "Cake"

Só o último lugar treme. Cuidado com Marion Cotillard em "2 days, 1 night"

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO

J.K Simmons - "Whiplash"
Edward Norton - "Birdman"
Mark Ruffalo - "Foxcactcher"
Ethan Hawke - "Boyhood"
Robert Duvall - "The judge"

Duvall é o único em perigo. Mas parece-me que não há grandes dúvidas aqui

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA

Patricia Arquette, "Boyhood"
Emma Stone, "Birdman"
Keira Knightley, "The imitation game"
Meryl Streep, "Into the woods"
Jessica Chastain, "A most violent year"

Para mim, está fechada

MELHOR REALIZADOR

Richard Linklatter, "Boyhood"
Alejandro Gonzalez Iñarritu - "Birdman"
Wes Anderson - "The Grand Budapest Hotel"
Morten Tyldum - "The imitation game"
David Fincher -"Gone girl"

Não me parece que Fincher seja nomeado, mas não metê-lo é contra a minha religião. Toda a gente fala do velho Clint para este quinto lugar, mas reparem que nem Morten Tyldum está seguro. Tenham em atenção Damian Chazelle, que fez estardalhaço com "Whiplash"

MELHOR DOCUMENTÁRIO

"Citizenfour"
"Life itself"
"Last days in Vietnam"
"The overnighters"
"Keep in keepin' on"

MELHOR FILME ESTRANGEIRO

"Ida" (Polónia)
"Wild tales" (Argentina)
"Leviathan" (Russia)
"The liberator" (Venezuela)
"Force majeure" (Suécia)

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO

"How to traing your dragon 2"
"The lego movie"
"The box trolls"
"Princess Kaguya"
"Big hero 6"


domingo, 23 de novembro de 2014

"Interstellar"



Um truque complicado de cinema é querer conciliar, num filme de ficção científica, o sentimentalismo aberto e a cerebralidade característica de alguns exemplares do género. O mais próximo que tivemos de uma obra que casasse estas duas ilhas separadas terá sido "A.I", porque era o fruto da mente de dois dos artífices mais eminentes de qualquer uma das correntes de cinefilia: Steven Spielberg, no caso da primeira; e Stanley Kubrick, no caso da segunda. Em todas as grandes obras do género, ou se opta por uma via ou, ou se segue pela outra. não quero dizer com isto que a emoção costuma fugir da ficção científica: mesmo um cineasta como Tarkovski, que, à maneira russa, trata o coração com todo o distanciamento e subtileza que caracterizam aquilo que faz do seu cinema um dos mais fascinantes, tem o seu "Solaris", que dentro de toda a metafísica e ciência, é na verdade um sublime e sensível filme sobre perda e luto. No entanto, tudo isto é tratado com algum distanciamento e sempre sem abrir o coração ao vento. Sem me alongar mais noutro exemplo, deixo exemplo: "Blade Runner", como quase todas as obras futuristas ou espaciais de Ridley Scott, é uma obra de fascínio futurista e de ideias, raramente de relações inter-pessoais; a saga "Star Wars" é só wish fulfillment; "Close encounters of the third kind" e "Minority Report", os dois melhores sci-fi de Spielberg, por entre todas as ideias e valores, estão muito menos interessados em questionar e perguntar e discutir do que em emocionar o espectador. Ideias e emoção conseguem casar no espaço da ficção científica, mas uma cede o lugar à outra.


Um exemplo que propositadamente deixei de fora foi o de "2001", visto que será a obra com a qual o último filme de Christopher Nolan, "Interstellar", é mais vezes comparado. Na aparência, existem motivos: ambos tratam de exploração espacial; ambos envolvem máquinas de inteligência artticifial; ambas apresentam a exploração do espaço com fascínio, deixando no ar a ideia de que é este o pináculo da evolução humana; e por fim, os dois filmes partilham plenas oportunidades de lançar os espectadores em horas de teorização e discussão. Deixe-me por isso dizer desde logo que "Interstellar" tem muito pouco a ver com a obra-prima de Kubrick. Aliás, em termos de tom, resultado final e até intenções, são dois filmes muito, muito diferentes. Tudo vem do que se discute acima: Kubrick, sábio como poucos realizadores, apresenta o seu espectáculo, uma reviravolta calma de tempo e espaço, com ideias e conceitos subentendidos e sugeridos, nunca explicados. O filme deve a sua imortalidade não só aos revolucionários efeitos visuais de Douglas Turnbull, mas à ambiguidade e abertura de interpretação do seu final e dos seus intermédios. Fica-se de boca aberta admirando a valsa das estrelas, mas no final, as dezenas de pormenores do filme, desde a filosofia à própria Física que permite a explicação possível do que vimos, é deixada ao nosso critério. Outra coisa que é deixada de fora é qualquer tipo de história emocional, de relação entre personagens. Estes são um meio para atingir um fim, que é a promoção da ideia subjacente a "2001" e sublinhando a relação entre homem e máquina. 


Em "Interstellar", tal não existe. No coração do filme, está a história de um pai e uma filha que faz pulsar o filme emocionalmente como poucas obras de Nolan. Arriscava-me a dizer que com excepção de "Memento", raramente um filme seu possuiu uma intriga humana tão interessante. Spielberg teve "Interstellar" nas mãos antes do britânico, e o seu efeito faz-se sentir neste aspecto da narrativa, que é um dos melhores: ancora tudo o que vemos a seguir, desde o aspecto de exploração espacial (que é muito positivo: aliás, a caracterização do Homem como um ser curioso e aventureiro é muito à antiga, e coloca o astronauta quase como o navegador da Expansão portuguesa, que em "Interstellar" oferece literalmente novos mundos ao mundo) até à possibilidade de o mundo acabar porque já não se produz comida. No meio de tudo isto, a família do herói do filme, Cooper, interpretado por Matthew McConnaughey, está unida contra a desgraça, mas o pai é chamado mais uma vez ao Espaço, para descobrir um novo planeta onde os terrestres possam viver. Isto prejudica a sua relação com a filha mais nova, Murph, e quando Cooper salta para o espaço com os seus companheiros de viagem, é neste amor (e ódio) entre pai e filha que o filme brilha como um Sol, porque dá-lhe, de facto, uma complexidade que não rasa a lamechice e transforma tudo o mais de científico e prosaico numa empatia com quem vê. No entanto, Nolan, como em quase todos os seus blockbusters, carrega nas explicações científicas, na tentativa da aula de Física à iminência de um novo fenómeno cósmico que o espectador precisa perceber, embora, a bem do filme, até nem precise; e esta necessidade de explicação e de palavras excessivas retira poder e qualidade a um filme que tem tudo para ser enorme, e parece não querer. Há fitas que falham por terem erros científicos descabelados. É estranho ver esta prejudicar-se pelo motivo exactamente oposto. Este problema não trava apenas o ritmo de "Interstellar": retiram ao espectador o prazer de especular e de pensar, de conversar, de intuir. Ou seja, para um filme que tanto apregoa os valores da ciência e a sua importância (e isso é importante, e é uma boa propaganda), acaba por tirar bastante do debate. Podem-me argumentar que o quarto de hora final irá lançar a discussão durante muito tempo, mas eu digo que aquilo não bate certo com o que se viu antes: é um Deus Ex-Machina de argumento (ou seja, uma artimanha que cai do nada) para resolver uma série de problemas que são buracos na intriga, sob o pretexto de ser inteligente e fascinante. Sem revelar o que é, admito que é um conceito muitíssimo vem esgalhado, mas perfeitamente desnecessário e confuso nas horas. A satisfação do lado emocional do filme, parecendo que não, é sacrificado para mais um conceito de Física Teória deitado na arena; e isto, embora aceite que agrade a alguns, não favorece "Interstellar" em quase nada, e quer fazer passar por esperto o que não é grandemente de esperteza.


Dito isto, é um filme com coisas muito boas. A intensidade das cenas de acção é sempre de louvar em Nolan, e com Wally Pfister a fazer trampa como realizador, convoca-se Hoyte van Hoytema, que proporciona ao filme, e ao espaço cósmico, tons e cores fantásticas. A equipa de efeitos visuais consegue uma representação do Universo que não só é fiel,como hipnotiza e maravilha (e aqui, quem viu "Tree of life" não pode deixar de recordar as sinfonias espaciais que surgem a certa altura no filme de Malick para maravilhar/adormecer (risquem a que não vos interessa) o espectador). No meio dos predicados técnicos, duas interpretações surgem como símbolos humanos no meio de toda a teoria: uma é a de Jessica Chastain, num papel que não posso divulgar, e que no pouco tempo que surge (e no pouco que lhe dão de personagem) marca o filme de tal forma que dá vontade que tenha mais umas cenas de ciência só para vê-la; e sobre todos os outros, Matthew McConnaughey, fascinante como quase sempre nos seus filmes recentes, humano até à medula, ingénuo e desenvolto, emocional e o protagonista de cenas onde muitos se perderiam na parafernália lógica e matemático, mas onde ele é um bastião de integridade e humanidade. Uma, em particular, depois de um dos pontos baixos do filme, onde a câmara se fixa seguramente um minuto na sua cara e na sua expressão vale quase por si o preço do bilhete; e fez-me lamentar, noutras cenas posteriores, que Christopher Nolan não se tivesse deixado fascinar antes pelo actor texano, pela sua personagem que representa o que há de verdadeiramente humano e genuíno nesta história, em vez da aula científica a que se entrega desnecessariamente. Tem de se louvar a apetência (e a certo ponto, coragem) para Nolan criar um filme desta dimensão. No entanto, existe aqui um marco da ficção científica para ser feito, o o realizador inglês acaba por fugir disso,


No fim de contas, é um filme que considero razoável, e a certos espaços, bom. Embora acabe por se enrodilhar desnecessariamente (será que Nolan começa a sentir que o rótulo de realizador de blockbusters cerebrais se colou em demasia e ele se tornou numa franchise pessoal?), o coração que bate bem aberto em "Interstellar", raro de se ver na filmografia de Nolan, não me faz perder a esperança de que nos futuro, seja em três dimensões ou em cinco, surja do britânico uma nova obra de excelência e fascínio que me faça regressar ao tempo em que com "Memento" e "Insomnia" (e acrescento, se calhar, "The prestige") fazia a minha mente voar que nem um foguetão rumo ao espaço sideral onde o cérebro se pode alimentar sem sentir o coração traído.

sábado, 4 de outubro de 2014

"Gone girl"



Mantenho há algum tempo a opinião de que a obra geral de David Fincher é das mais incompreendidas do cinema actual, e até mesmo por aqueles que o adoram. As referências às suas obras seminais "Seven" e "Fight club" é recorrente, mas parece que chegado ao século XXI, a carreira do autor de São Francisco entra numa espécie de faz de conta onde os filmes não conseguem ser obrad-primas ou referências. Uma ou outra alma caridosa ainda concede o título a "Zodiac" (e com toda a justiça), mas fica-se por aí e não se atreve a ir mais longe. Acho que tal se deve não a um declínio de talento do norte-americano, mas sim de foco: depois de ter criado uma reputação de esteta supremo, capaz de estilo a rodos, vira a partir de "Zodiac" o seu foco para a narrativa pura e dura, e é nesse campo que se tem tornado num dos cineastas norte-americanos definitivos dos últimos anos, como um dos últimos guardiões de um certo cinema de tradição clássica que Hollywood tem perdido. Na verdade, partilha essa mudança na carreira com outro dos grandes nomes saídos da década de 90, Paul Thomas Anderson, que tem optado pelos estudos de personagem e dissecação pura de vícios e personalidade que é herdeira dos anos 60 e 70. Fincher, no entanto, usa a narrativa para se tornar não no cínico cuja luz parece por vezes emitir, mas num humanista puro: ele entende a natureza humana a partir de um ponto de vista imparcial, muito raramente julgando os seus personagens e preferindo entregar ao espectador esse papel. É, afinal, um dos nossos maiores prazeres: condenar ou absolver alguém cuja história nos é contada; e quase sempre falhamos, sem no entanto deixarmos de nos sentir atraídos por isso. Torna-se muito difícil encontrar alguém verdadeiramente vilanesco nos seus filmes, e mesmo as personagens que ocupam esse espaço com mais evidência, como o John Doe de "Seven", têm espaço para se fazer entender, e ganhar empatia; e estamos a falar de um sociopata cruel e sádico.

Não surpreende então que "Gone girl", jogo de fachadas e de moralidade relativa, seja um enorme filme nas mãos de David Fincher. Não vou falar aqui sobre a história, visto que a surpresa dos twists faz parte do jogo perverso que Fincher nos propõe, mas no geral é sobre um marido que se vê acossado pela polícia e pela imprensa após a sua mulher desaparecer no dia do seu quinto aniversário de casamento. É o que interessa para se localizarem no que se passa, e o resto é uma desmontagem da instituição do casamento, dos papéis que representamos todos os dias, do choque das expectativas contra a realidade, do papel corrosivo e destruidor dos media e acima de tudo, uma viagem pela repugnância num tom de humor negro supremo. O cinema de Fincher desconstrói, desmonta, desmistifica. Aponta um espelho à condição humana e diverte-se nas suas mentiras e contradições, desde o narrador anónimo de "Fight club", que no fundo que ser Tyler Durden, ou o Nicholas van Orton de "The game", destruído peça a peça por um jogo diabólico."Gone girl" é guerra dos sexos em esteróides, um conflito que divide a nossa empatia em bocadinhos muito pequenos. Em certos pontos, é a definição perfeita do que seria a comédia romântica de Fincher... Mas com sexo a rodos e cunnilingus como sinónimo da comunhão entre um casal. Ou seja, como as pessoas se comportam, e é o comportamento humano que guia toda a história. O filme questiona também a destruição dos sonhos e também da ideia do que deve ser a mulher no casamento, hoje em dia. Afasta-se o cliché da servilidade, e entra um novo conceito, o de mulher cool, revelado numa das melhores sequências do filme. Esta habilidade para juntar entretenimento pipoqueiro e conseguir, em simultâneo ser um retrato afiado do que é a vida em casal, e o mundo individual, no século XXI, é o que espanta neste filme, como se para Fincher o carrossel não dipensasse a biblioteca.


Mesmo sem extravagância, o filme é belo e excelentemente filmado pela fotografia de Jeff Cronenweth; os enquadramentos precisos de Fincher dão aos planos aparentemente normais um fôlego estético superior e servem na perfeição o seu principal mestre, a narrativa. Ben Aflleck, com um charme untuoso e gabarola, encarna na perfeição Nick Dunne, e se não é o actor certo, é pelo menos o vaso onde a nossa percepção melhor vê a imoralidade, e a certa altura desespero, de Dunne quando os jornalistas o rodeiam e lhe fazem incontáveis perguntas, Já vimos este filme. Apesar da solidez de todo o elenco secundário (onde Carrie Coon, que faz da irmão de Nick Dunne, se destaca pela suas tiradas), é Rosamund Pike quem comanda as atenções, numa daquelas performances que caminha entre dois mundos morais muito diferentes, e que tem mais camadas do que uma cebola: é difícil sair com uma opinião formada em definitivo, mas a certeza é que nunca é menos do que fascinante, na sua força e fragilidade, em toda a sua auto-justificação e desilusão. É um gosto de se ver.

É no plano inicial que o filme se define: Rosamund Pike surge como uma loura hitchcockiana numa ambiguidade que é tradicional em Fincher. Não olha para nós, dirige a sua atenção para um elemento fora do ecrã; mas está inquisitiva, sedenta ou simplesmente calma. Não sabemos. Não saber é, aliás, o mote do filme: o quanto, mesmo num casamento, não conhecemos o outro, e como a nossa pequena perversão curiosa destrói e mói e corrói. "Gone girl" é essa montra das fragilidades do mundo, que disfarçada de simples thriller do subúrbio, aguça as garras e arrasta a cortina das aparências. Uma coisa não é uma coisa, e podem ser três, e acreditar pode ser o maior dos erros. No meio de tudo isto, uma certeza: está aqui um dos filmes mais vitais de 2014, e uma daquelas obras que, como "Fight club" e "Zodiac", precisará de mais uns anos para que os cépticos se apercebam do que falharam no primeiro visionamento. Enquanto o grande cinema existir, Fincher nunca estará em parte incerta, mas sim na linha da frente.


domingo, 27 de abril de 2014

"The unknown known"



Em 2003, Errol Morris fez "The fog of war", um belíssimo documentário onde entregou a cadeira do confessionário "inter-rotrónico" a Robert McNamara, que durante anos foi secretário de estado da Defesa em duas presidências norte-americanas. Do confronto entre factos da sua carreira e as resposta às perguntas do realizador, resultava um retrato contraditório, humano e em última instância, daquela lucidez que atinge alguns homens no final da sua vida, quando olham para trás e começam a pensar que as suas grandes vitórias talvez tenham sido erros no grande esquema da moral humana. Longe de ser uma denúncia política, era uma entrevista equilibrada, onde as entrelinhas são o fundamental para entender o que se está de facto a passar. 10 anos depois, Morris pareceu dedicar-se a uma sequela espiritual com "The unknown known, onde convidou o vilanesco Donald Rumsfeld a enfrentar igual desafio. O produto final, no entanto, está longe de ser tão produtivo e imediato quanto o referido documentário, pois fica a ideia de que McNamara tem pelo menos alguma coisa a que podemos chamar consciência e a noção do lugar que a História contemporânea lhe reserva. Talvez em virtude de uma natureza egocêntrica, e também de um distanciamento muito curto, Rumsfeld não possui nenhuma dessas qualidades. Temos então um raro objecto documental, onde o mais importante é aquilo que não está lá, apesar da utilização de alguns exemplares das centenas de milhar de memorandos escritos durante as suas regências em cargos públicos no governo norte-americano.Com um sorriso cínico, um comportamento de quem se acha o mais inteligente da turma e uma vontade de querer reescrever e ditar a História pelo seu próprio discurso, Rumsfeld emerge como alguém decidido a frustrar os planos do entrevistador com uma atitude passiva-agressiva, e uma ideia que define toda a política externa norte-americana desde sempre: merda acontece, a culpa não é nossa. Morris deixa Rumsfeld falar, e usa os jornais como contra-ponto da narrativa ficcional com quem Rumsfeld tenta convencê-lo, e nesse sentido este documentário tem muito mais a ver com "Tabloid" do que com "The fog of war": entre cada sorriso e tirada pretensamente espirituosa, o desespero opaco e fugidio de Rumsfeld escapa uma e outra vez do confronto com a verdade e do seu papel na História. "The unknown known" talvez não seja o filme explosivo que muitos queriam ver, mas é uma obra excelentemente realizada (com um cuidado estético que esperamos de Morris e que o tornam num homem à parte no panorama documental actual), com uma fantástica banda sonora de Danny Elfman e uma fidelidade aos seus princípios que me atrai sempre a ver cada novo filme do realizador. Na impossibilidade de obter a verdade directamente, Morris trata o discurso oblíquo de Rumsfeld na sua medida certa: a imagem recorrente de num oceano sem limites, que é substituído por um pântano, retratam a tempestade perfeita de tretas com que somos bombardeados e toda a expedição norte-americana ao Médio Oriente. Algo que, trinta anos antes, Rumsfeld tinha até previsto. O desconhecido, para Rumsfeld, tornou-se conhecido antes de sê-lo.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

"The grand budapest hotel"



É raro encontrar hoje em dia filmes onde consigamos sentir que há um realizador a divertir-se à grande, e felizmente que fui ver um desses espécimes: "The grand Budapest Hotel" é a prova de que algures no mundo idiossincrático e muito pessoal de Wes Anderson, existe um folgazão realizador, capaz de encontrar em si a habilidade de construir um entretenimento que ultrapassa as barreiras nas quais a crítica normalmente fecha o seu trabalho (e o filme já fez 40 milhões só nos Estados Unidos...). Juntamente com "The fantastic Mr. Fox", esta é a obra mais descontraída e virada para a pura diversão do cinema da carreira do texano. Anderson tem muitos tiques formalistas que por vezes se tornam irritantes, mas depois da experiência  falhada de "The life aquatic de Steve Zissou", onde esses mesmos tiques atingiram o grau de overdose tal que distraíam de outras coisas boas do filme, o realizador pareceu encontrar um ponto de equilíbrio que nos deu três belos filmes de seguida. Ainda que nenhum deles tivesse atingido a excelência daquelas que, na minha opinião, são as suas melhores obras ("Rushmore" e "The royal Tennenbaums"), são boas notícias.

"The Grand Budapest Hotel" reforça essa ideia, com a sua construção narrativa como se fosse uma boneca russa onde narradores estão enfiados dentro de narradores, hoteis têm vários estratos e camadas e até uma organização secreta com mais caixinhas dentro de outras. A história gira em torno de um MacGuffin em forma de quadro que é uma paródia e a partir daí, assistimos a um filme preciso do ponto de vista do enquadramento e do estilo, mas absolutamente anárquico e delirante na história, interpretações e tudo o que mais que nos contorce a rir na cadeira de cinema. O elenco todo é um parece escolhido a dedo (com alguns habitués) para que essa experiência seja total, e mesmo Ralph Fiennes, que nos habituámos a ver como um actor britânico sério, cria em Gustave H., o concierge da instituição que intitula esta obra, um dandy que cairia bem num romance queirosiano, com o seu gosto por criaturas de duas pernas, os seus pormenores de estilo apurado e também essa capacidade quase portuguesa que é a de se querer dar bem com toda a gente... mesmo quando toda a gente tem sempre algo de odioso dentro de si. Fora de toda a folia, há uma melancolia que se entende, quando sabemos que os escritos de Stefan Zweig inspiraram o argumento: "The Grand Budapest Hotel" é tão obviamente nostálgico de um tempo que já passou e não regressa, um tempo onde o cosmopolitismo, o sentido individual e o bom gosto eram a norma e não um assomo irritante de alguns, que só se compreende quando a obra de Wes Anderson está presente na nossa mente: todos os seus filmes celebram o passado, destilando uma visão idealizada do mundo, dos tempos e das formas. Quando, no final do filme, Anderson permite que a realidade choque com o seu ideal, oferece-nos um sabor agridoce que é pouco comum nos seus filmes, pelo menos desta forma. Gustave H. era um baluarte de civilização na altura em que a Europa era engolida pela barbárie, da mesma maneira que "The Grand Budapest Hotel" é um filme sofisticado cuja popularidade parece querer provar duas coisas: que Wes Anderson é um cosmopolita em contacto com o seu mundo e que nós, como espectadores, não somos tão bárbaros quanto os multiplex nos julgam. E isto faz-me lembrar um poema romântico, mas o senhor Gustav ficou com o livro.

sexta-feira, 14 de março de 2014

"True detective"


O sentimento constante quando "True detective" se desfia à frente dos nossos olhos é a de estarmos a assistir a algo maior do que o Homem, com a Lousiana a ser ao mesmo tempo palco do mundo e boca do inferno e onde pirâmides de galhos, e hastes de veado são as marcas de um mal que parece primitivo e sem um início ou um fim específico: está, habita e nunca pode ser desalojado. É por isso surpreendente que, ao final de 8 capítulos e um último episódio que chega a ter ressonâncias míticas bem para lá do gótico americano e do pulp que são a base da grande intriga criminal da série (o labirinto do minotauro é uma referência que me parece evidente), se chegue à conclusão que "True detective" foi sempre sobre os pequenos planetas chamados Rust Cohle e Martin Hart. Perseguindo os defeitos do homem estão dois homens com defeito: um que se pensa conhecer/se bem demais, o outro que não se conhece e ainda não o sabe. É na tensão entre eles, e a sua resolução final, que "True detective" adquire os contornos míticos que passam ao lado daquilo que o espectador pensa procurar. Uma década de mistérios de televisão intrincados levam-nos a pensar no mais complicado quando vemos uma história: procurar pistas mínimas, ligações, conjecturas. Esta série é bem mais simples do que isso, e no entanto é da complexidade inerente ao que somos que retira a sua força motriz. Cohle e Hart percorrem o percurso do herói, mas sempre com a noção de que não são heróis, e apenas escravos de uma vontade maior que um pode atribuir a Deus, mas que outro relega, uma vez e sempre, ao dever de um ser humano que escolhe para si o sacrifício de remir, através do afastamento da sociedade, o Mal que grassa. Isto sem nunca presumir que é mais do que esse mundo contaminado. O niilismo ateu de Rust Cohle torna-o na figura crística mais estranha dos últimos anos, e seria o protagonista perfeito dos filmes iniciais de Martin Scorsese.

"True detective" escolhe um modelo pouco comum na televisão norte-americana: é escrita apenas por um homem (o excelente e perspicaz Nic Pizzolato), realizada por outro (num trabalho superlativo na captação do espírito da Louisiana em película, e que supera largamente quase tudo o que se faz na televisão actualmente, Cary Fukunaga é o verdadeiro detective da série, procurando sempre nos lugares e nos objectos aquilo que não se pode descrever com palavras), é um exemplo a seguir no que à qualidade diz respeito, entregando o seu rumo à visão de dois homens. É, no entanto, outro par que enraíza toda a história: Woody Harrelson interpreta o homem comum que comummente se perde ao querer ser tão normal que se esquece do que o torna animal e sorvedor de vida. É um papel complicado, mas Harrelson enverga essa armadura cheia de mossas com estatura e a procura de redenção que estará no fim de um labirinto; Matthew McConnaughey torna o papel de Rust Cohle icónico. Como se fosse um pregador do Sul enxertado no Bayou, McConnaughey é menos um corpo e mais um espírito desencarnado há muito, que navega na suas palavras e sente o mundo e o seu peso como se fosse o titã Atlas. É o mais próximo da taciturna, e no entanto poética, figura do cavaleiro negro que procura a luz que temos desde que Frank Black partiu com a filha não se sabe bem para onde na terceira temporada de "Millennium". Está tudo no olhar perdido,mas faíscante, que empresta a Cohle, na estranha coreografia do corpo quotidiano, na cadência e desnecessária elaboração do discurso: um homem preso em si e que foge disso e da realidade. Se quisermos ser mais simples, onde Harrelson é banalmente brilhante, McConnaughey é a essência faíscante desse brilhantismo.

No final, regressa-se à história mais simples de todas, a primária que lançou todo o nosso amor pela narrativa como arte de contar uma história: o Bem contra o Mal, a luz contra as sombras; e no meio de tantos finais surpresa previstos, a única reviravolta é a de dois homens que uma vez cegos, voltam a ver depois de um mergulho no poço de breu. Quando de lá saem, contemplam as estrelas, e descobrem a verdade de ser detective: a justiça vai-se conseguindo e não é absoluta; mas desde que se acendam candeeiros suficientes, os detectives tornarão o mundo um pouco menos labiríntico para si próprios e para nós, que nele habitamos.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Óscares 2014: previsões e opiniões


Não me recordo de haver um ano onde adivinhar o vencedor da categoria de Melhor filme fosse tão complicado. Numa corrida a três, entre "Gravity", "12 years a slave" e "American Hustle", temos um trio de opções completamente diferentes em estilo, tema e até público-alvo. Se "American Hustle" não será, parece-me, uma escolha onde se premeie, de facto, o melhor, qualquer uma das restantes opções será justa, embora todos os textos de que leio a apoiar o filme de Steve McQueen fale mais da "importância" de se escolher este filme sobre a escravatura e menos sobre a sua superioridade como obra de cinema ou não. No ano passado, com "Lincoln", não me recordo deste dilema a surgir com tanta ferocidade. Isto prova até que ponto os Óscares são, de facto, um jogo de aparências.
Algumas categorias estão mais tremidas do que outras. Não vou abordar todas, pois deixo no final um link para o meu boletim de voto virtual que preenchi no site oficial dos Oscars. Deixarei não só as minhas previsões, como a minha escola de preferência pessoal, que, como já expliquei aqui, raramente coincide com quem eu acho que vai ganhar. Comecemos rapidinho e depois, mais por extenso

MELHOR FILME ESTRANGEIRO

VAI GANHAR: "The hunt"
MERECIA GANHAR: "The hunt"
ALTERNATIVA: "The great beauty"

MELHOR DOCUMENTÁRIO

VAI GANHAR: "The act of killing" (na verdade, tenho a impressao que o feel good "20 feet of stardom" está a conquistar os corações dos votantes e que um dos filmes mais impressionantes dos últimos anos pode sair derrotado. Acompanharia velhas tradições oscarianas)
MERECIA GANHAR: "The act of killing"
ALTERNATIVA: "20 feet of stardom"

MELHOR ANIMAÇÃO

VAI GANHAR: "Frozen"
MERECIA GANHAR: Não vi nenhum...
ALTERNATIVA: "The wind rises"

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA

VAI GANHAR: Lupita Nyongo, "12 years a slave" - Esta é, talvez, a categoria de interpretação mais tramada da noite. É praticamente impossível adivinhar quem vai ganhar, entre Nyongo e Jennifer Lawrence, que têm recolhido os prémios durante esta temporada. Num cenário alternativo, até pode surgir uma divisão de votos e uma terceira via, com qualquer uma das restantes nomeadas
MERECIA GANHAR: Sem ter visto Julia Roberts, entregava o prémio a June Squibb, que está fantástica em "Nebraska" e assenta bem na definição de actriz secundária
ALTERNATIVA: Jennifer Lawrence, "American Hustle", embora acho que fosse escandaloso, não só porque a performance é apenas mediana, como por alguém tão novo, em dois anos seguidos, ganhar prémios por interpretações que nada são de extraordinário. Era o hype levado ao extremo, e muito mau para quem ainda procura alguma credibilidade nestes prémios

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO

VAI GANHAR: Jared Leto, "Dallas Buyers Club" - Não me oferece qualquer dúvida: tem ganho tudo o que há para ganhar, e a interpretação é de facto extraordinária.
MERECIA GANHAR: Jared Leto
ALTERNATIVA: Jonah Hill, "The wolf of Wall Street"

MELHOR ACTRIZ

VAI GANHAR: Cate Blanchett, "Blue Jasmine" - Desde que surgiu que é a favorita e a sua aura vencedora não se tem desvanecido e tem resistido a tudo, desde golpes de teatro da equipa publicitária de "American Hustle", até à sede publicitária da família Farrow. Para além disso, ajuda que a sua interpretação seja, de facto, épica.
MERECIA GANHAR: Cate Blanchett, "Blue Jasmine", e sem ser esta, Judi Dench, em "Philomena"
ALTERNATIVA: Amy Adams, "American Hustle"

MELHOR ACTOR

VAI GANHAR: Matthew McConnaughey, "Dallas Buyers Club" - Tem-se tentado criar um suspenses desnecessário em redor desta categoria, principalmente pelo movimento "A hora de di Caprio", que deve desconhecer que até Al Pacino só ganhou à 8º nomeação (entre as vezes que foi ignorado, contam-se "The godfather 1 e 2", "Dog day afternoon" e "Serpico"... Com todo o respeito para com Leo, mas é toda uma outra divisão). O texano tem isto no bolso, e tudo alinhado a seu favor: as pessoas gostam do filme, a sua interpretação é reconhecida como corajosa e até gimmicky, para quem não percebe nada de representação, e "True detective" é o anti-Norbit.
MERECIA GANHAR: Tirando Christian Bale, qualquer um dos nomeados tem uma performance superlativa, e há para todos os gostos: McConnaughey merece, de facto, o Oscar, mas Leonardo di Caprio, em "The wolf of Wall Street"  é magnético e tabém extraordinário
ALTERNATIVA: Chiwetel Ejiofor, "12 years a slave"

MELHOR REALIZADOR

VAI GANHAR: Alfonso Cuáron, "Gravity" - O favorito, por tudo o que ganhou, e acima de tudo pela monumentalidade do seu trabalho. Todos os nomeados têm coisas a seu favor, mas só um criou, basicamente, tudo o que lhe permitiu concretizar o seu projecto tal como o via na cabeça, e esse alguém é Cuáron
MERECIA GANHAR: Sem ser Cuáron, Martin Scorsese por "The wolf of Wall street". Sei que a campanha por Steve McQueen tem os seus apoiantes, mas eu voto pelo filme em si, e não por ficar bem dar um Oscar a um realizador negro só porque é pioneiro. Se formos por aí, Cuáron será o primeiro latino a receber
ALTERNATIVA: Steve McQueen, "12 years a slave"

MELHOR FILME (Os meus)

Na minha opinião, se fossem apenas cinco nomeados, estes seriam os meus filmes do ano:

"The wolf of Wall Street"
"Her"
"Gravity"
"Nebraska"
"Captain Phillips"

MELHOR FILME

VAI GANHAR: "Gravity" - O bom senso diz para apostar em "12 years a slave", mas não consigo deixar de me inclinar para "Gravity", porque é o tipo de filme que tem ganho: segue-se com o coração, não choca ninguém e no caso deste ano, há de facto muita razão para premiar esta obra inovadora e que não envergonha ninguém como escolha
DEVIA GANHAR: "The wolf of wall street" - É simplesmente o melhor filme dos Óscares deste ano, e sério candidato a melhor de 2013.
ALTERNATIVA: "12 years a slave"



terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

2 ou 3 coisas que aprendi sobre prever Óscares


Embora veja a cerimónia dos Óscares em directo desde o ano 2000 (tendo falhado apenas em 2002, e mesmo assim escutei a emissão radiofónica), só me iniciei a sério no jogo na temporada 2005/2006. Pareceu-me o ano ideal: quase todos os filmes passíveis de serem nomeados eram de boa qualidade, no mínimo, e longe pareciam os dias em que "Shakespeare in Love", "Titanic" ou "Chicago" embaraçavam a Academia ao ganharem a estatueta de Melhor filme. Não que sejam todos maus espécimes (acho grande piada a "Chicago"), mas o meu paladar cinéfilo desenvolvia-se e esse ano trazia-nos "Brokeback mountain", "Munich", "Capote... Claro que, como devem estar recordados, o vencedor foi "Crash" e voltámos à mesma ladainha de sempre. No entanto, o bichinho da previsão ficou dentro de mim, e desde aí que lanço, invariavelmente, os meus bitaites não só sobre a qualidade dos nomeados, mas sobretudo acerca da sua identidade. Como digo muitas vezes, não preciso de ver os filmes para saber quem ganha, e muitas vezes até atrapalha: a primeira regra que se aprende nesta brincadeira é a de que devemos deixar as emoções de fora. Não consigo fazê-lo, tenho-o descoberto, e por essa razão tenho-me afundado, com consciência, nalguns momentos épicos: "The social network", "Lincoln", "The curious case of Benjamin Button"... Falhanços previsíveis, mas se gosto realmente de um filme não me consigo desligar dele. Ponto.
Claro que, andando nisto há quase dez anos, vão-se aprendendo alguns truques e notando tendências que tornam a previsão acertada independente do gosto ou mesmo de se ver as obras a concurso. É isso que gostava de partilhar convosco, se tiverem paciência para me aturar nesta roleta anual.


1 - A única coisa fiável são as "Guilds": Quase todas as categorias dos Óscares premeiam um trabalho específico dentro de um filme, e cada um desses trabalhos pertence a um sindicato, as conhecidas "Guilds". Estas atribuem prémios no espaço de dois meses antes de acontecerem os prémios da Academia e como muitas vezes os seus corpos de voto partilham bastantes membros com os da Academia, pode-se ter uma ideia da tendência de voto. Nos últimos anos, a juntar a isto, temos os BAFTA, os prémios do cinema britânico, que têm mostrado ser um bom indicador principalmente para as surpresas. Há uns anos, ficou toda a gente (incluindo eu) de boca aberta com a vitória de Tilda Swinton em Actriz Secundária, por "Michael Clayton", mas os BAFTA tinham-na premiado, e foram o único percursor a fazê-lo. Alguns videntes do Óscar usam também os prémios da crítica, mas cada vez mais isso é relativo: "The social network", por exemplo, foi o único filme a ganhar todos os prémios da crítica (nacional e de cada estado) nos EUA, e depois chegaram à noite principal e gaguejou "The king's speech". O mesmo se pode dizer em relação aos Globos de Ouro. Nos últimos dois anos, só por duas vezes acertaram "Melhor filme" e foi sempre em anos onde era bastante óbvio quem ia ganhar ("Slumdog millionaire" e "Argo"). Confiem nas "Guilds", embora não sejam completamente infalíveis. A mais importante para a categoria de melhor filme costuma ser a DGA, relativa aos realizadores. Habitualmente, e a não ser num raro ano de divisão filme/realizador, quem ganha o DGA, ganha melhor filme.


2 - O princípio "Está na hora": Todos os anos surge esta maneira de prever vencedores, e há convicção por todos os lados de que esta máxima é inevitável. Não é. Que o diga Peter O'Toole, que nunca ganhou um Oscar em competição e teve 8 tentativas, incluindo a derradeira em 2007, num dos mais flagrantes "Está na hora" que me lembro. Nesse ano, aliás, Julie Christie também teve esse momento, e vejam lá, viu a estatueta fugir numa vitória surpresa de Marion Cotillard (que, mais uma vez, foi prevista pelos BAFTA). O princípio "Está na hora" só funciona se estiverem reunidas duas condições: uma interpretação que seja realmente boa (de preferência com sotaque/alteração física/personagem real) e não exista na categoria nenhuma outra hipótese evidente de vitória. Isto aconteceu na primeira forma deste princípio (a "já foi nomeada tantas vezes, alguma vez tem de ganhar") há uns anos com Kate Winslet. Depois de 5 nomeações anteriores, foi finalmente com "The reader" com a britânica ganhou (merecidamente) a estatueta. Mas quem estava nomeada com ela? Anna Hathawaye Melissa Leo, nas suas primeiras nomeações; Meryl Streep, a quem na altura não tinha sido concedido o indulto de poder ganhar uma nova estatueta; e Angelina Jolie, por um filme onde tinha estado bem, mas cuja expressão nos Óscares era zero. É com base neste princípio que estão a tentar forçar a vitória de Leonardo di Caprio este ano, mas o caso é completamente diferente. Para já, a categoria de melhor actor está extremamente competitiva. Há várias actuações excelentes, e será difícil a uma concentração de votos em Leo. Para compor tudo, o favorito, Matthew MacConnaughey, está a ter um ano perfeito: todos os filmes em que entrou foram triunfos, tem ganho todos os prémios (menos o BAFTA; mas o filme não podia ir a concurso), os discursos de vencedor têm sido de topo, o papel alia uma transformação física a uma intensidade emocional inegável e neste momento, na HBO, rola a melhor campanha de marketing que o seu talento podia ter: a série "True detective". Não vejo como outro actor para além deste possa levar o Oscar, mas cada um com os seus métodos de adivinhação.
O princípio "está na hora" tem duas outras encarnações: uma é a já clássica "O veterano", que funciona habitualmente nas categorias de actor secundário e actriz secundária (nos últimos 15 anos, por exemplo, temos Alan Arkin, Morgan Freeman, Chris Cooper, Jim Broadbent e Chistopher Plummer: tudo actores respeitados, que nunca tinham ganho, e finalmente foram recompensados); a outra é a "merecias ter ganho o ano passado, vamos dar-te um este ano", que levou Colin Firth à glória em 2010 (depois de lhe ter sido negado o Oscar na interpretação superior em "A serious man", onde perdeu para Jeff Bridges, um actor que já tinha sido nomeado várias vezes... sem ganhar) e ofereceu a única nomeação da carreira a Paul Giamatti, em "Cinderella man", num papel ridículo, depois de ter sido ignorado escandalosamente no ano anterior pelo extraordinário trabalho em "Sideways". Há um oposto ao "Está na hora" que é o "Já não há hora" e que se aplica a vencedores póstumos: Heath Ledger é o mais conhecido, mas também Peter Finch, em "Network", venceu pouco depois de ter falecido. James Dean e Spencer Tracy também forma nomeados depois de morrerem, num efeito sentimental que muitas vezes atinge a Academia de diversas formas. Isso leva-nos à terceira dica.


3 - Os votantes gostam de "sentir: É mentira que os Óscares não sejam sobre a qualidade. Há poucos filmes verdadeiramente tamancos que tenham ganho o prémio de melhor filme. Mesmo obras mais razoáveis, como "Argo no ano passado, são filmes bem feitos e com a sua pinta. No entanto, nunca serão obras-primas. Alguns dos grandes escandalos da história dos Óscares nascem deste factor: "Pulp Fiction", "Goodfellas", "The social network", "L.A Confidential"... Entre o filme de qualidade e o filme que faz sentir, o sentimento ganha quase sempre. A não ser que seja uma obra "importante", quer no tema quer no resto. É isso que torna a corrida de melhor filme deste ano a mais difícil de prever dos últimos anos. Pode ir para qualquer lado. No entanto, quando em dúvida, optem pela obra mais fácil de sentir, e não necessariamente o filme de melhor qualidade. Esta é a gente que entregou prémios a "No country for old men", mas também a "Driving miss Daisy".


4 - Nunca confiar em documentários e filmes estrangeiros: De longe, e à distância, estas são as duas categorias mais imprevisíveis dos Óscares. Ao contrário das técnicas e de representação, não há percursores fiáveis e até este ano, o método de votação é diferente. Por isso, muitas vezes, os opinadores do Óscar seguem habitualmente o critério do prestígio crítico, mas invariavelmente essa tendência está condenada a falhar. A partir do ano 2000, na categoria de filme estrangeiro, e só para criar uma base estável de modas, só por 3 vezes o candidato mais óbvio da categoria venceu: "Crouching tiger, hidden dragon" e "Amour" estavam nomeados também para melhor filme, e "A separation" venceu quase por exclusão de partes. De resto, passar os olhos pela lista de nomeados notáveis derrotados é perceber o perigo em que se entra quando se tenta seguir a noção de que o queridinho crítico vence sempre: "Amores Perros", "Le gout des autres", "Amélie", "Hero", "Downfall", "El laberinto del fauno", "Entre les murs", "Waltz with Bashir", "The Baader-Meinhof complex", "Un prophet"", "White ribbon"... Um fartote. O que muita gente se esquece é que quem vota nos Óscares não são os críticos, nem especialistas em filmes: são espectadores como todos nós, mais ou menos tamancos. Habitualmente, entre o complicado e o simples, vão pelo simples.Os três filmes que mencionem como excepções desde o ano 2000 partilham isso: são bem filmados, compreensíveis a gente de uma cultura diferente e tem um punch emocional muito forte e universal. O mais indicado, quando se prevê esta categoria, é ir pelo filme mais universal, e as vitórias dos últimos anos têm provado isso. Por isso é que, enquanto muita gente está a prever o favorito e premiado em Cannes "The great beauty, de Itália, eu estou virado para o dinamarquês "The hunt" e o belga "The broken circle breakdown".
A mesma coisa em relação aos documentários. Principalmente nos dez anos mais recentes e o boom comercial do cinema documental, esta categoria tem sido tão focada como as restantes, e qualquer cinéfilo digno desse nome chega à cerimónia conhecendo a maioria dos nomeados. Como em "melhor filme estrangeiro", a tentação é ir pelo mais conhecido e prestigiado. Erro crasso: entre derrotados desde 2004, temos Banksy, Werner Herzog, Michael Moore ou Alex Gibney, e mesmo Errol Morris, o melhor documentarista norte-americano da actualidade, não conseguiu ser nomeado pelos seus dois últimos filmes. É muito complicado prever não só nomeações, como vencedores (eu que o diga: dois nomeados que considerava certos, neste ano, foram com os cães, e fiquei a esfregar a cabeça depois disso... Eu e muita gente...). Aqui, não há exactamente um critério. Vão pelo documentário que vos pareça mais acessível. Al Gore ganhou com aquilo que é, basicamente, uma apresentação powerpoint em "An inconvenient truth" e "March of the penguins" é um documentário simplista narrado por Morgan Freeman. Estas coisas não seguem uma lógica, mas este é o truque mais próximo que vos posso dar. Este ano, por exemplo, tenho o feeling que vai ganhar "20 feet of stardom", um documentário feel good passado no mundo da música negra norte-americana, mas não consigo deixar de meter "The act of killing", que é das coisas mais marcantes que vi nos últimos anos. Em última instância, façam escolhas que não vos envergonhem e fiquem com elas até ao final.


5 - A importância da Montagem - A categoria mais crucial da noite para saber o vencedor de "Melhor filme" é montagem. Mesmo que o filme seja do mais básico a esse nível, a vitória neste categoria virá porque anda de mão dada com o consenso geral da qualidade do filme. Em toda a história dos Óscares, só nove filmes ganharam "Melhor filme" sem uma nomeação em "Melhor montagem", e a razão talvez seja mais simples do que parece: boa parte da qualidade de um filme está naquilo que se faz na sala de montagem. Por isso, sendo a relação entre realizador e editor tão estreira, normalmente a importância de ambos como percursores da qualidade do filme é também um facto. Mais de metade dos filmes que ganharam o Óscar de "Melhor filme" venceram nesta categoria. Quando acontecem excepções, na maior parte, o filme que vence não está nomeado para a categoria principal (aconteceu, por exemplo, há dois anos com "The girl with the dragon tattoo"). Por isso, quando estão a prever o vencedor aqui, tenham em atenção que podem ter de correlacioná-lo com o vencedor da noite. E isso também se aplica à minha última dica.


6 - A ligação realizador/filme: Não há como negar: quem vence melhor realizador, vence melhor filme. Mesmo os trabalhos de realização mais simplórios e pedestres conseguiram ser reconhecidos simplesmente porque o resultado final ganhou "melhor filme". Há anos que exemplificam esta tendência ao ponto da raiva: em 1976, por exemplo, ganhou John G. Avildsen, por "Rocky", que também viria a vencer nesse ano (vide emoção vs qualidade, na dica 3). Deixou como derrotados, por exemplo, Martin Scorsese, por "Taxi Driver"; Alan J. Pakula, por "All the president's men"; e Sidney Lumet, por "Network". Em 1982, Richard Attenborough ganha por "Gandhi", que viria a ser o vencedor final (e acentuar a tendência do filme prestígio britânico como íman de Óscares). Os derrotados, desta vez, incluíam Sidney Lumet, desta vez por "The verdict"; Steven Spielberg, por "E.T"; Sydney Pollack, por "Tootsie"; e Wolfgang Petersen, por "Das boot". As vitórias de Tom Hooper e Muchel Hazanavicius, no últimos anos, foram uma tal bofetada na cara do bom gosto que isto só se percebe pela lógica interna destes prémios. Não se esqueçam disto quando escolherem as vossas previsões nestas duas categorias. Marimbem-se para a lógica e para a qualidade: a divisão entre os vencedores de filme e realização acontece muito, muito raramente. Nos últimos 25 anos, aconteceu apenas 3 vezes. É um dado estatístico que não se pode ignorar.

Outras dicas tenho para dizer, mas isto já vai longo e esta semana vão enjoar de ouvir e ler sobre este tema. Por agora, espero que tenha sido minimamente interessante e que tenham sobrevivido até aqui. A minha promessa fica feita de que as minhas previsões aparecerão por aqui algures quinta-feira. Até lá, apertem os cintos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Carecas dourados 2014



Amanhã, por volta da uma e meia da tarde, serão anunciadas as nomeações dos Óscares de 2014. Há algum tempo que não havia uma corrida tão imprevisível em todas as categorias, e a começar pelas próprias nomeações. Em actor secundário, por exemplo, só consigo estar certo de uma das minhas apostas: de resto, está tudo tão fluido que as coisas se podem baralhar ainda antes de serem dadas as cartas. Isto mostra bem como este ano, sem um cabecilha aparente, vale tudo e não há padrão. Desde filmes "importantes até obras de estilo, passando por obras dominadas pelos efeitos visuais e filmes clássicos, há muito por onde escolher e ninguém que se possa assumir como favorito. Tudo isto tornará as minhas previsões uma quase certeza de falhanço e certamente que esta edição de 2013/2014 será aquela em que mais me espalharei ao comprido. Não vi a maior parte dos concorrentes, mas como já expliquei muitas vezes, não é preciso quando se tratar de prever nomeados. É um facto triste, mas que se tem concretizado uma e outra vez. Por fim, como sempre deixo o alerta: parte das minhas previsões são emocionais. Posto isto, vamos começar:

MELHOR FILME

"12 years as a slave"
"American Hustle"
"Gravity"
"Captain Phillips"
"The wolf of Wall Street"
"Nebraska"
"Her"
"Dallas Buyers club"
"Inside Llewyn Davis"
"Saving Mr. Banks"

A grande dificuldade é saber quantos filmes serão nomeados. Eu prevejo nove, como nos últimos anos. A ordem pela qual nomearia seria esta, por isso no cenário de 9, "Saving Mr. Banks" saltaria. Não vejo como os primeiros 5 possam mudar: picaram o ponto em praticamente todas as guildas. Os restantes 4 são aqueles que me parecem ter um apoio mais generalizado tanto da crítica, como da indústria.

MELHOR ACTOR

Chiwetel Ejiofor, "12 years as a slave"
MatthewMcConnaughey, "Dallas  Buyers Club"
Bruce Dern, "Nebraska"
Robert Redford, "All is lost"
Leonardo di Caprio, "The wolf of Wall Street"

Os dois últimos lugares estão ainda em discussão. Parece-me que facilmente tanto Christian Bale, em "American Hustle", como Tom Hanks, em "Captain Phillips" aqui podem entrar. Mas aqui, vou-me deixar guiar pela emoção e por duas das melhores composições do ano

MELHOR ACTRIZ

Cate Blanchett, "Blue Jasmine"
Emma Thompson, "Saving Mr. Banks"
Sandra Bullock, "Gravity"
Judi Dench, "Philomena"
Amy Adams, "American Hustle"

Tirando Amy Adams, tudo irá bater certo e seguro. Se Adams saltar, será devido a Meryl Streep, em "August: Osage county". Nunca se deve subestimar Meryl Streep. Mas ainda assim, pelo apoio geral de "American Hustle" e porque Adams é também um camião TIR dentro da Academia, dou vantagem à ruiva

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO

Jared Leto, "Dallas Buyers Club"
Michael Fassbender, "12 years as a slave"
Daniel Bruhl, "Rush"
James Gandolfini, "Enough said"
Barkhad Abdi, "Captain Phillips

Alternativa: Bradley Cooper, "American Hustle"

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA

Lupita N'Yongo, "12 years as a slave"
Jennifer Lawrence, "American Hustle"
June Quibb, "Nebraska"
Julia Roberts, "August: Osage County"
Opran Winfrey, "The butler"

Alternativa: Sally Hawkins, "Blue Jasmine"

MELHOR REALIZADOR

Steve McQueen, "12 years as a slave"
Alfonso Cuáron, "Gravity"
David O. Russell, "American Hustle"
Martin Scorsese, "The wolf of Wall Street"
Spike Jonze, "Her"

Alt.: Paul Greengrass, "Captain Phillips"; Alexander Payne, "Nebraska"
No ano passado, esta categoria foi o maior "shocker" de todos, e este ano é, talvez, a mais difícil de acertar. Os três primeiros nomes estão seguros, parece-me. Os restantes dois podem mudar. Scorsese é sempre uma aposta firme e Spike Jonze é o meu gosto pessoal, mas não tiro da cabeça que Alexander Payne vai por aqui dar a cara

MELHOR DOCUMENTÁRIO

"Blackfish"
"The act of killing"
"Stories we tell"
"The square"
"Tim's vermeer"

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO

"Frozen"
"Wind rises"
"Monster's university"
"Despicable me 2"
The croods"

MELHOR FILME ESTRANGEIRO

"The great beauty" (Itália)
"The hunt" (Dinamarca)
"The grandmaster" (Hong Kong)
"Omar" (Palestina)
"Two lives" (Alemanha)

Quanto a argumentos e categorias técnicas, aqui ficam as tendências que seguem o que eu preveria. Amanhã, cá estaremos para chamar nomes àqueles manhosos! :D

domingo, 8 de dezembro de 2013

"Killer Joe"


Depois de abrir a carreira com dois dos filmes mais influentes nos respectivos géneros ("The french connection" e "The exorcist"), o sempre controverso e belicoso William Friedkin provou o sabor da hubris quando o seu remake "Sorcerer" falhou nas bilheteiras e, como ele próprio admite na sua auto-biografia, como filme. A partir daí, a sua carreira entrou num declínio que o levou a fazer filmes perfeitamente dispensáveis durante as décadas de 80 e 90 (salvo "Living and dying in LA"). No entanto, o facto de ter sido esquecido levou-o a um renascimento artístico em 2006, com o excelente e perturbante "Bug", e 2011 trouxe-nos o seu melhor filme em anos, que leva a perturbação a níveis muito mais íntimos, crus e, digo-o pessoalmente e com a certeza de poder despertar diagnósticos de psicopatia, de diversão inesperada. "Killer Joe" é uma obra onde a presença e a disfuncionalidade e da demência parecem ser requisitos pré-criação das vidas dos personagens, e não há grande explicação para a sua existência; no entanto, a unidade familiar que faz funcionar uma trama base de um filme noir (a morte de um parente é planeada pela necessidade de resgatar o dinheiro de uma apólice de seguro de vida) escolheu para si mesma o outro lado da moralidade como casa, com um quintal pleno de más decisões e algum azar no jogo que a vida lhes deu. Esta parte da história serve apenas para aguçar a entrada do personagem homónimo do título do filme, um untuoso, pervertido e assustador Matthew McConaughey, que deita pela janela qualquer tipo de preconceitos que o espectador tenha sobre ele logo na primeira vez que surge de corpo inteiro: uma serpente batendo à porta, com o seu Stetson, as suas luvas e a atitude de Leviathan devorador de almas. O filme sobrevive da vitalidade da sua interpretação, pois a intriga é aquilo que é, e tem poucas reviravoltas. No entanto, a presença de Killer Joe Cooper, em cada cena, é o sinal de que algo de muito errado tem todas as hipóteses de acontecer, e normalmente acontece. Friedkin filma McConaughey da mesma forma que filmou o demónio Pasuzu em "The exorcist", com a mesma atracção pelo desdém daquilo que é correcto ou que possa haver de Bem. Numa família onde esse compasso é a música da sua existência (Thomas Haden Church, um pau mandado que assenta sempre sobre areias movediças; Emile Hirsch, com um complexo incestuoso latente e uma paleta de escolhas de vida dignas de um guaxinim cego; Gina Gershon, como a mulher fatalmente a quem fatalmente calha ser mulher para mal dos seus pecados e regozijo de Killer Joe), só Dottie, que Juno Temple desenha como a imprevisibilidade nesta mecânica de podridão e a única pessoa razoavelmente pura (e que por isso serve de justificação a actos medonhos), escapa praticamente sem mácula. Um mundo a preto e branco, e onde apenas parece existir isso.



Há filmes cujas limitações são facilmente esquecidas quando a realização as afina, e "Killer Joe" conta com um William Friedkin que no Texas profundo redescobre o seu talento que usou para filmar paisagens urbanas e casas assombradas dos subúrbios. O desenho da família que precisa de dinheiro é batido e esquecível, mas a interpretação de McConaughey e a intransigência de Friedkin em filmar violência e sexo com uma potência desinteressada fazem de "Killer Joe" um filme com deses de fabuloso elevadas. Este ano, ouvirão falar muitas vezes do ressurgimento de Matthew McConaughey. Não se deixem iludir: ele começa neste filme.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Much ado about nothing"


Há uns anos, no seu documentário "Looking for Richard" sobre a sua adaptação da peça "Richard III" em Nova Iorque, Al Pacino queixava-se de que os actores norte-americanos tinham um medo quase patológico de Shakespeare e das suas peças. Era como se este pertencesse aos britânicos exclusivamente, até mesmo na língua, pois o inglês isabelino é em muitos aspectos um idioma bem diferente do actual com os seus "thous" e "thees" e "dousts". É por isso que "Much ado about nothing", de Joss Whedon, deve ser saudado como uma quebra nesse ciclo de receio: não é raro Hollywood adaptar o bardo, mas as suas tentativas são entregues quase sempre nas mãos de ingleses, e as poucas que não o são ("Romeo + Juliet", de Baz Luhrmann, ou "O", de Tim Blake Nelson são dois exemplos) modernizam a intriga, colocando-a nos nossos dias. Há pouco tempo, em "Coriolanus", Ralph Fiennes seguiu pelo mesmo caminho. O sucesso não depende exclusivamente das modernizações, mas mesmo a justificação de que os temas tratados pelo eterno William são universais e intemporais soam quase sempre a algum medo de abordar Shakespeare em colisão frontal, ou pelo menos mantendo no cinema a mise-en-scene que Shakespeare empresta às suas peças no palco. "Romeo + Juliet" resulta muito bem no cinema (é barroco, pictórico, sempre em desequilíbrio emocional, o que, afinal, é uma das marcas das peças de Shakespeare), mas é mais Luhrmaniano do que Shakespereano e a certa altura, quase vemos o dramaturgo a fugir a tanta velocidade que nem o delirium tremens do australiano consegue acompanhá-lo!

A tentativa de Joss Whedon, se bem que enveredando por um cenário moderno (e emanar o doce odor das hipsterianas sebes), mantém o texto original na íntegra, e opta por um encenação quase sempre rigorosa e quase teatral, respeitando o fluir do texto. Nem sempre é bem conseguido, e se Whedon pudesse evitar a demasia de câmara ao ombro, o seu filme ficava a ganhar com isso. No entanto, o orçamento era apertado e havia apenas 12 dias para filmar tudo. Ajuda que o elenco seja composto quase na totalidade por habitués de Whedon, e se os actores mantêm um nível no geral bom, há destaques: Amy Acker e Alexis Denisoff, como Beatrice e Benedick, a dupla "Odeio-o/Amo-o" funcionam na perfeição, até porque já têm experiência de par romântico na série "Angel", e Reed Diamond e Nathan Fillion são um absoluto prazer de observar nos seus papéis de Guarda de Messina e Don Pedro, respectivamente, manobrando o texto de Shakespeare com um tamanho à vontade e naturalismo que por momentos esquecemos que aquele inglês não é aquele que estamos habituados a ouvir. "Much ado about nothing" é mãe da comédia romântica moderna de enganos, com temas como o amor, a honra e até o valor da família, tendo um segundo acto quase a cair na tragédia, e é agradável como Whedon consegue a parte trágica do filme não afunde a leveza do mesmo, fazendo com que tudo seja tão natural como a vida. É uma boa adaptação, de um homem experimentado (Whedon realizou, durante vários anos, dramatizações de Shakespeare entre amigos) e de quem não se quer deixar encurralar pelo esmagador sucesso de "The avengers". Assim como o filme traça o duelo de wittiness entre o Beatrice e Bennedick, dois grandes mestres do one-liner e da frase curta encontram-se em 2013, e o melhor é que nenhum perde e ambos saem a ganhar. Não é uma obra-prima, mas é uma adaptação que relê Shakespeare em termos que não perdem o amor do britânico pela palavra, nem a paixão que Whedon tem para desconstruir seres humanos e as suas paixões. Do século XVI ao século, XXI, afinal, é aquilo que deve ser o alvo maior de um argumentista.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Gravity"


O Espaço é a última fronteira na realidade e na ficção; no cinema então, isso é mais verdade do que pensamos. Por estranho que pareça, quanto mais os efeitos visuais avançaram, com a Idade do Digital a poder replicar quase tudo o que se queira (excepto, mais vezes do que poucas, a Realidade), a tela espacial vai-se tornando falsa e o espectador, naquela parte de trás da mente que "sabe tudo", tem a plena noção de que é tudo fabricado num computador, e não se impressiona. Se pensarmos nos filmes desenrolados fora do planeta Terra que nos impressionaram pela representação credível do abismo vazio da dança das estrelas e o vácuo que as envolve, temos de recuar algumas décadas. "2001" é incontornável, mas também "Alien" e toda a saga original "Star Wars" que, com efeitos práticos e quase prescindindo de computadores, deixaram como legado a imagem colectiva que possuímos daquilo que é a imensidão espacial. É estranho que a tecnologia digital não tenha conseguido criar verdade nessa zona, quando já ultrapassou barreiras aparentemente mais impossíveis (os recentes "The curious caso of Benjamin Button", "Avatar" e "Life of Pi" criaram vida humana e animal onde esta não existe, e com uma realidade tal que a definição de virtual se torna impossível de escrever). O problema acerca do Espaço é que quase ninguém lá esteve. O que sabemos é o que vemos daqui e o que vemos já não existe.



"Gravity", de Alfonso Cuáron, é assombroso em muitas coisas, mas aquela em que se torna pioneiro é na representação dessa área que não conhecemos por fora, mas cuja música escutamos dentro de nós quando observamos as estrelas. É uma obra de ficção, mas não do tipo científica: o tempo é o Presente; a realidade é a de um trio de astronautas que reparam a estação espacial Hubble, até que o erro de cálculo no lançamento de um míssil russo lança uma luta pela sobrevivência; e a ciência é quase sempre credível, na representação do Espaço, nas opções dadas aos personagens para o avanço da história e no respeito pelas leis da Física. É notório que Cuáron respeita, e muito, a exploração espacial, e este filme é a demonstração desse amor através daquilo que um cineasta pode fazer: levar aos espectadores uma experiência real e visceral de presença  fora da Terra. Demorou quatro anos a fazê-lo, e teve de desenvolver muitas das tecnologias aplicadas (numa entrevista, disse que esta devia ser a primeira obra de cinema onde a pós-produção ficou pronta antes da pré-produção), mas o esforço técnico compensou. O primeiro plano dá o mote: fixo num ponto algures entre as galáxias, mostra uma imagem da curvatura do planeta, com o familiar tom azul, onde se distinguem montanhas, formas de continentes (no caso, a América), nuvens, e até esporádicos olhos de luz chamados cidades. Ao longe, muito subtilmente e acompanhando a órbita do planeta, surge um space shuttle no nosso campo de visão ainda fixo, e está estampada na nossa mente a imensidão do Cosmos, o quão pequenos somos dentro dele e o nosso respeito pelo que é o principal antagonista do filme, de facto, estabelece-se. Começa aqui um "long shot" de 20 minutos que é tão espantoso quanto demiurgo no seu pormenor e execução (algures, num local acima deste, Kubrick aplaude), e balança a calma do espaço com o choque da tragédia iminente e que deixa dois astronautas à deriva no Espaço, quase sem apoios, reféns da gravidade que dá titulo ao filme; e incrivelmente, o filme só fica mais tenso a partir daqui.


George Clooney e principalmente Sandra Bullock são os protagonistas do drama que se segue, com dois personagens diferentes na atitude perante o espaço: Matt Kowalsky é um vivido astronauta que se sente à vontade no silêncio do Universo, como se estivesse na sala de estar, e parece estar preparado para a incerteza de qualquer imprevisto; Ryan Stone, na sua primeira viagem espacial, está nervosa e leva consigo uma mágoa que transforma o seu conflito com o Espaço numa luta com a sua própria vida. Ambos os actores estão excelentes, e o filme, longe de querer entrar em considerações sobre ciência espacial ou a mecânica do Espaço, é afinal intimista na maneira como coloca toda a acção de hora e meia de filme numa questão antiga na dramaturgia: a superação do ser humano perante as adversidades e o renascimento depois de estas estarem ultrapassadas. À deriva no Espaço, Ryan Stone vê-se obrigada a salvar as suas duas vidas: aquela que a situação de crise coloca em risco, e a que trazia já quando descolou da Terra, como se fosse uma fuga ao que a traumatiza. Essa salvação apenas pode ser conseguida querendo viver e voltar a Casa, aquela casa que está permanentemente à vista debaixo dela. Num filme em que a Tecnologia domina, esta atenção ao factor humano, afinal o que diminui tantas obras de grande espectáculo ou simplesmente passadas no Espaço, é o engrandece, e mostra a diferença entre um tarefeiro e um realizador. A cinematografia de Cuáron é dominada por histórias que raramente perdem essa ligação humana com o espectador, mesmo quando o pano de fundo sejam futuros distópicos ou escolas de feitiçaria. É por isso que a acção decorre fluida, sem pausas e sobressaltos, nunca forçada na desenrolar dos problemas. O maior triunfo é sempre o humano.


Alfonso Cuáron e Emanuel Lubezki triunfam não só na recriação visual do Espaço, mas acima de tudo trazendo o seu ritmo: as personagens movem-se numa câmara lenta permanente, como se a estadia no Espaço fosse uma vida suspensa e tudo tivesse o sue movimento próprio. Como se o Espaço fosse uma outra realidade, e é aqui que Cuáron reúne o seu virtuosismo técnico e a história emocional do filme num só ponto, cruzando com referências da nossa própria memória visual de espectadores, seja citando filmes, como criando imagens arquetípicas, como um plano que fica na memória onde Stone regride toda a sua vida em poucos segundos que talvez sejam óbvios, mas não deixam de ter impacto por isso. Cuáron construiu a sua fama de virtuoso com os seus planos longos e sem cortes aparentes. Neste filme, ele ri-se disso, e constrói uma série de planos que duram dezenas de minutos, e nunca parecem forçados. Stone e Kowalsky estão livres, e nunca se viu tanta liberdade em qualquer outro filme. Há uma graciosidade no movimento, uma naturalidade na acção, e um sentimento de estarmos a viver e não a ver. É a visão dos dois mexicanos que triunfa, um respeito pelo poder da imagem e das sensações que se vivem numa sala de cinema. Não há atropelos: há visceralidade que começa no ecrã e acaba em nós. É, afinal, o trabalho do realizador: fazer o coração bater e saltar batidas através dos nossos olhos.


A gravidade é o mote do filme, e no caso de Ryan Stone (Sandra Bullock atrai tão naturalmente o nosso interesse que é um casting quase óbvio) aquilo que a faz regressar à Terra. É o julgamento através do fogo, e a força humana como um prodígio tão grande como o assombro do Espaço. "Gravity" coloca o homem na sua devida dimensão perante o Cosmos, mas sem nunca reduzir a sua capacidade de superação e de ter em si a força e a fé que faz mover montanhas. Talvez não mova planetas, mas é aquilo que impele cada pequeno mundo individual a superar-se e a encontrar-se. Estar perdido no Espaço pode significar reencontrar-se onde o coração está. É essa a nossa casa, afinal.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Elysium


A ficção científica é um género quase tão antigo quanto o próprio cinema (perguntem a Meliés), mas continua a ser visto como algo de menor ou pouco desenvolvido. É comum acusar obras do género como sendo apenas desfiles de efeitos visuais e naves e extraterretres e robôs e coisas que tais. Percebo a facilidade com que se trata todo o um género por esta bitola, mas não consigo deixar de vê-lo como um preconceito. É facilitismo e preguiça não passar para lá da ideia preconcebida, e se há muitas razões para não se gostar de um tipo de filme, acusá-lo de ser apenas "uma coisa que não faz pensar", como já me disseram, diz mais sobre o interlocutor do que sobre o próprio género. O que há mais no Cinema são filmes excelentes e complexos que envolvem o espaço, naves espaciais, extraterretres e efeitos visuais até fartar: "2001", "Solaris", "Blade Runner", "Alien", The day the earth stood still", "Close encounters of the third kind", "La jetee"... Dão para todos os gostos e todos os géneros, e se alguém se quiser chegar à frente e dizer que qualquer um destes é simplista, está perfeitamente à vontade para fazer figura de urso.


Há também algo comum a estes filmes que dei como exemplos: o mais recente tem mais de 25 anos. É um facto que embora os efeitos especiais tenham avançado nas últimas duas décadas, isso não correspondeu ao aumento de qualidade no género. Há excepções, ainda assim: Paul Verhoeven fez "Robocop", "Total Recall" e "Starship troopers", todos vistos, em maior ou menor grau, como clássicos de ficção científica; "Matrix" deu a origem a trilogia horrível, mas o primeiro continua a ser uma referência, embora a minha relação com a obra do Wachowsky é ambivalente, quanto muito. Há "Brazil", "Aliens", "Back to the future", mas quando mais nos aproximamos dos nossos dias, o número vai diminuindo. São raríssimos os "Eternal sunshine of the spotless mind" e "Donnie Darko". Há quatro anos, no entanto, no meio de outras pérolas interessantes, embora não excelentes, que começaram a saltirar dos filmes de orçamento mais modesto, surgiu um exemplar que chamou a atenção, e com razão. Pegando na clássica alegora de ficção cientifica dos "alienígenas" como espelho dos problemas da sociedade, criava um mundo de appartheid localizado num país onde não muito tempo antes uma segregação do género existira na realidade. Só que desta vez, os extraterrestres eram os proscritos. "District 9" revelou Neil Blomkampo como um daqueles realizadores que conseguia criar um mundo coerente, estruturado e cool com pouco orçamento, e que ainda assim conseguia ter uma história substantiva para contar. Não era necessariamente subtil, mas cada um com o seu estilo, e o de Blomkamp é bruto como tudo na denúncia social que veicula.



2013 marca o seu regresso com "Elysium", uma distopia futurista onde o que resta da Terra é uma paisagem destruída e caótica, e uma sociedade de pantanas onde o Homem é o predador do Homem. Os ricos já cá não moram e emigraram para Elysium, uma utopia em forma de estação espacial anelar no espaço. Um operário, Max da Costa (Matt Damon), fica doente e vê-se obrigado a chegar a esta estação, onde existem máquinas que curam e restauram tudo. O problema é que pelos padrões elíseos, ele não é cidadão, e a Secretária de Defesa Delacourt (Jodie Foster) tem uma política contra emigrantes particularmente rígida. Portanto, nada de subtilezas aqui: a guerra de classes social mantém-se nesse futuro não muito distante, onde os pobres são cada vez mais pobres, e a opulência dos ricos leva a que estes vejam os menos favorecidos como coisas, e não seres humanos. O Sistema de Saúde está completamente obliterado, as pessoas sujeitam-se a tudo por um emprego e as mínimas aspirações de vida estão vedadas a quem não tem dinheiro. A face do Estado são so robôs que patrulham o que resta do planeta, e oferecem apenas frieza e incompreensão pelas necesidades das pessoas, e mesmo características humanas como o sentido de humor. Este género de ficçao científica orgânica é aquilo que de melhor o filme tem para dar, porque permite uma identificação quase imediata com este mundo e deita para longe qualquer acusação de que a ficção científica tem muito pouco a dizer sobre o mundo das pessoas. Do vestuário utlizado à caótica e destruída urbanização, há algo que neste munto que também é nosso, e mesmo o luxo do Elysium dos mais abastados é reconhecível. Parece Beverly Hills, mas multiplicado. No entanto, nunca entramos suficientemente no mundo de Elysium para perceber exactamente quem são estas pessoas que aparentemente abanodnaram a sua humanidade no planeta Terra para, em troca, beberem champanhe à vontade num ambiente filtrado a Purel. Entrevemos o seu nojo a qualquer coisa que possa vir lá de baixo num personagem que é dono de uma multinacional e trabalha na Terra, mas para um lugar que é referido várias vezes como um sonho inatingível e um antro de gente má, o nosso deslumbre não acontece e a compreensão que possamos ter do modo de vida dos seus habitantes é quase nula. Há uma ténue intriga política, mas sem se entende muito bem a sua profundidade. Dá a ideia de que Blomkamp aposta naquilo que é bom, ou seja o design de produção, e passa ao lado de pormenores que poderiam enriquecer bem mais o seu mundo e a sua mensagem. O filme até nem é muito longo, marcando abaixo das duas horas, e podia-se muito bem substituir uma segunda metade de desilusão (já lá vamos) por substância que tornaria "Elysium" um filme excelente e realmente digno de nota.


Onde o filme é realmente bom é naquilo em que "District 9" também era: há, tecnologicamente, um mundo que foi pensado consistentemente e com criatividade, desde os diversos tipos de naves conforme as suas utilidades e ocupantes, equipamento militar, fabril, material robótico e a estação especial Elysium, desenhada pelo grande Syd Mead. Mesmo que uma parte maior se desenrole numa favela global a que chamamos Terra (e não é por acaso que todos os actores filme chamados a preenchê-la, à excepção de Matt Damon, sejam latinos: Alice Braga, Diego Luna, Wagner Moura...), o mundo de "Elysium" é palpável e estruturado, sendo que a estação especial em si, embora nunca nos apareça num detalhe milimétrico, surge como o símbolo de um paraíso em forma de estrela, longe na sua proximidade com os sonhos dos personagens. Embora isto preencha os espaços do filme, está é acometido de outros problemas para além do já referido: as cenas de acção que envolvam luta são mal filmadas (e não pode ser acaso que um dos editores de "Elysium" seja Lee Smith, o colaborador habitual de Christopher Nolan, outro realizador com um olho para a grande escala, mas pitosga no que toca à luta corpo corpo) e isto estraga quase por completo toda a componente de acção do filme. Não é que de, resto, haja má acção (Blmokamp demonstra saber, por exemplo, como tratar bólides espaciais e voadores, com classe e pinta), mas estraga a experiência de divertimento do filme de maneira irrecuperável. Saber filmar acção é, continua a ser, um dom que não está ao alcance de muitos. É pena, porque há um vilão odiável e há Matt Damon com exo esqueleto de robô Tinha tudo para pancada de meia-noite e nada disso se concretiza. Embora seja corajoso na apresentação de ideias políticos polémicos, os seus personagens têm densidade de seda: Matt Damon faz de um mexicano com um sonho, Alice Braga recorre, novamente, no papel de anjo em tempo de ruína e Shalto Copley é o mercenário alucinado e psicopata que gosta de crianças. É por isso que depois de construir o filme com interesse em questões sociais e políticas, a segunda parte é lançada como acção non stop, sem grande estilo, com muito flash e pouca recompensa emocional. O que é realmente um desperdício. Isso e não colocar Jason Bourne e o capitão Nascimento a varrer robôs.

Fica aquela sensação de que se teve aqui uma bela oportunidade de filmaço, e de repente, por uma qualquer razão (provavelmente querer misturar dois filmes e tê-lo feito da maneira errada) se passou ao lado. Não é que "Elysium" seja mau: é uma filme razoável, que cativa o espectador a segui-lo e com suficiente encanto visual para ainda assim atenuar os efeitos da má realização já referida. Fica, no entanto, a meio caminho dos campos elíseos, um pouco acima do caos