quinta-feira, 28 de junho de 2012

I don't think there's one word that can describe a mans life


"Citizen Kane", de Orson Welles

Sugestões rápidas: "3:10 to Yuma"



De quando em vez, um filme ganha o direito a ser mais do que esperamos dele; e hoje à tarde, fui surpreendido por "3:10 to Yuma", um interessante  e muito bem esgalhado western sem a carga mítica do género, mas com toda o elenco de homens duros e lacónicos que o caracteriza.

James Mangold, que o realiza, tem construído uma carreira sem grande génio, mas com trabalhos que têm, ainda assim, qualidade e, acima tudo, chama. "Walk the line", sobre a primeira parte da vida de Johnny Cash, é um biopic by the numbers, mas com energia, uma perfeita noção de ritmo e uma boa direcção de actores; "Kate & Leopold" terá sido o filme mais decente que Meg Ryan fez nos últimos 20 anos, o que pode até nem querer dizer muito, mas é uma comédia romântica muito simpática; e mesmo que o mais recente "Knight and day" não seja um filme digno de nota, destaquemos ainda "Copland", por exemplo, um obra bem interessante, com o único papel de actor a sério que Stallone fez pós "Rambo", e um elenco excelente.



"3:10 to Yuma" confirma uma tendência do Western desde "Unforgiven", a de aparecer pouco, mas dar-nos filmes de qualidade com muita frequência. "Wyatt Earp", por exemplo, não será um filme completamente conseguido, mas tem demasiadas coisas boas para se chamar de falhanço, e o seu irmão "Tombstone" é uma daquelas obras carismáticas e divertidas que empolgam enquanto se vê. Até Kevin Cistner, habitualmente maldito desde o flop crítico de "Waterworld", realizou o magnífico "Open Range", provavelmente o melhor filme do género na década que passou.

O filme conta a história de dois personagens: Ben Wade, (Russel Crowe), um bandido do faroeste  com mais charme do que toda a gente no filme junta e Daniel Evans (Christian Bale), veterano de guerra perneta que luta para sobreviver no seu quinhão de terra com a família, lidando com dividas, a seca e um agiota local que tudo lhe faz para ficar com o trabalho de uma vida. Os dois cruzam-se numa intriga que leva o segundo a participar num grupo que escoltará o primeiro até um comboio que parte à hora do título do filme na cidade mencionada. Pelo meio, o bando de Ben Wade persegue-os e claro está, cadáveres aparecerão e tiros serão disparados.






O que dá interesse a esta obra é a dinâmica entre dois personagens complexos, interpretados magnificamente pelos actores principais. Wade é um criminoso realmente temível, e não é de reputação: ao longo do filme, assistimos às coisas terríveis que faz, e mesmo ao seu desembaraço perante o perigo, mas tem ao mesmo tempo um código moral que respeita e cumpre, mesmo que de vez em quando esse código choque com a lei. No entanto, nunca o vemos completamente como vilão, e essa é a parte onde entra Russel Crowe, que nos seduz com um sorriso matreiro, mesmo quando atira pelo penhasco um tipo que acabou de lhe insultar a mãe. Wade é uma alma nobre e que respeitamos, ao longo do filme todo, perigosa sem nuca nos atemorizar. No outro lado, está um Christian Bale, que mistura orgulho, fé e derrota num homem que, mesmo vencido pela vida, não desiste, e faz de tudo não só para proteger a família, mas principalmente a sua memória perante os seus. Olhado pelo filho mais velho como um incapaz, a sua preocupação é garantir o futuro, mesmo que sacrifique o seu presente; e é isto que Ben Wade aprende a respeitar, um homem que terá talvez a motivação exterior a si para ser bem sucedido, e o que cria a relação entre ambos e sustenta o filme, transportando-o para fora da esfera do western. Um buddy movie bizarro? Não, um buddy movie clássico, com dois homens que se olham nos olhos e respeitam não por aquilo que dizem as suas reputações, mas sim pelo que as suas acções falam por si. Mangold encena todo o filme como um carrossel em viagem, dando ainda a Ben Foster, um actor a ter em atenção, uma espécie de psicopata com o casaco de Ryan Gosling em "Driver". 


Destaque para uma banda sonora de bom nível de Marco Beltrami.

Assistam e depois passem cá, para dar umas palavrinhas sobre o mesmo!

quarta-feira, 20 de junho de 2012

domingo, 17 de junho de 2012

: You have a D.A, he doesn't talk about when they convict you, or how they convict you. He's talking about how he's going to kill ya. He don't give a damn if you're innocent, he don't give a damn if you're guilty. He's talking... about killing ya.


"The thin blue line", de Errol Morris

O movie jockey



Penso não me enganar muito quando afirmo que Quentin Tarantino se tornou, nos últimos vinte anos, num dos nomes mais reconhecíveis, na área da realização, para o cidadão comum. Existem poucos realizadores cujo nome signifique algo para o espectador que não lê com regularidade sobre a 7ª arte e que ainda se encontrem em actividade. Lembro-me de Spielberg, Scorsese... Talvez George Lucas, Coppola, Almodovar... Não sei se muitos mais. O culto de Tarantino adquire, aliás, uma dimensão extra, porque se é apenas um nome para o simples espectador, revela-se extenso e profundo naqueles que fazem do cinema mais do que um passatempo. Ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste.



É difícil fugir a esta discussão. "Tarantinesco" é um adjectivo que se tornou um valor em si mesmo, e a quantidade de filmes que imitou o estilo do realizador (personagens palavrosos, que se perdem em conversas da treta; laivos de coolness em homenagens cinéfilas que se confundem com pastiche; a utilização de música retro na banda sonora; um certo bas-fond criminal como pano de fundo) é longa e torna a sua influência e impacto inquestionáveis. No entanto, uma questão raramente levantada, e que tem toda a pertinência perante o status de Tarantino actualmente, é a da nossa memória como espectadores. É curioso reparar que boa parte dos seus fãs têm, na verdade, uma memória cinéfila bastante curta, e conhecem pouco do passado do cinema. Compreendo que, para esses, a abertura de um filme como "Inglourious basterds" pareça genial e refrescante. Recordo-me de ter dado por mim a sorrir quando os acordes de Morricone encheram a paisagem alpina que inicia a saga revisionista de QT pela 2ª Guerra Mundial. O tom da fita era de claro western spaghetti, roubando até algumas noções de plano a Sergio Leone; eu sorri, porque era um cruzamento bem pensado. Não é algo particularmente original na obra de Tarantino ("Kill Bill", em ambos os volumes, é basicamente uma preparação para o cerimonial de homenagem ao realizador italiano e de passagem, ao brilhantismo genial do próprio Morricone) que atinge o seu cume em "Inglourious..." e promete continuar na assunção directa de que o próximo "Django unchained" é um western, mas continua ser uma ideia engraçada, que diverte quem tem algum conhecimento de cinema (o que é o meu caso).



Quem, porém, nunca viu um filme tão obrigatório como "The good, the bad and the ugly", vai achar genial e originalíssimo. É o problema que Tarantino representa também para os críticos de cinema. Gostar dele é um acto de reconhecimento da homenagem à mesma arte que adoram; detestá-lo parece picuinhas e ridículo, quando a acusação é falta de originalidade. Na verdade, quase todos os realizadores roubam uns aos outros. Apenas os mais fracos conseguem ser apanhados, afinal. Brian de Palma, que é um dos grandes virtuosos do cinema moderno, é basicamente uma enciclopédia de citações. Consegue-se reconhecer Hitchcock em todas as suas obras (mesmo em "Mission Impossible), e a cena mais conhecida do seu clássico "The untouchables" é retirada de "O couraçado Potemkine", que é coisa para ter mais de 70 anos. Os "furtos" de Tarantino não são originais, e muito bom génio já o fez. No entanto, as citações que de Palma usa na sua obra parecem integrar-se de uma forma mais orgânica no seu estilo. Não é descabido que este seja também um dos artífices que o próprio QT mais gosta. Não sendo frutas da mesma árvore, consideram o cinema como a sua literacia, o que é, aliás, apanágio de qualquer realizador que começou a trabalhar depois de 1970. Lendo o livro "Scorsese sobre Scorsese", vi-me apanhado numa teia de referência cinéfilas que nunca julguei possíveis na obra do genial italo-americano. A carreira de Scorsese, se quiséssemos interpretar assim, seria basicamente uma destilação de horas passadas em salas de cinema e ecrãs de televisão a consumir e comer imagens para criar um estilo. Há, no entanto, uma diferença, entre este método e aquilo que Tarantino efectua. O primeiro criou um estilo absolutamente próprio e distintivo, onde as influências que o moldaram são reconhecíveis, mas de forma subtil. Ver "Taxi driver", por exemplo, não é como estar a digerir uma obra urbana de Antonioni, ou um filme de tensão e paranóias de Powell e Pressburger. O que ali está é Scorsese, com obsessões próprias, temas que lhe dizem tudo e um sentido visual que é seu.
Um filme de Tarantino é outra coisa. Um filme de Tarantino é um mashup.



Não há nada de errado com isso, claro, São opções artísticas e de carreira; é minha opinião que desde "Pulp fiction" que Quentin Tarantino não fez um qualquer grande filme: "Jackie Brown" é demasiado cool para inspirar empatia; "Kill Bill" é um épico partido ao meio, onde a primeira parte é uma enciclopédia de cinema asiático, e a segunda começa como a primeira acaba, e a meio acaba por, estranhamente, criar alguns dos melhores momentos da sua carreira, quando QT decide deixar de brincar aos sabichões; e "Inglourious Basterds" é um divertidíssimo delírio cinéfilo, sem qualquer outra consequência mais séria que não seja descobrir a excelência de Christopher Waltz. O que separa toda esta obra de "Pulp fiction" é o seu carácter de faz de conta extremos, uma manta de retalhos de outros filmes (e em casos extremos e muito pouco de homenagem, diálogos inteiros) que entretêm mesmo os mais analfabetos de cinefilia, mas falham em criar uma obra dramática consistente. A "The bride" do binómio "Kill Bill" é um espectro de badasserie, e pouco mais. Tarantino cria-lhe os dramas, posiciona-os no sítio certo, mas nunca os faz explodir. Aflora-os aqui e ali, como se quisesse justificar os seus excessos mais gratuitos com algo que não está bem lá. É um milagre que Uma Thurman consiga arrancar uma excelente interpretação de um personagem tão inexistente, mas isso é uma prova do seu talento como actriz, e, também, de Tarantino se tornar um director de actores competente nos seus próprios filmes quando filma aquilo que escreve.



O estilo movie-jockey de Tarantino, como lhe costumo chamar, é algo de que já falei várias vezes, e lamento. O homem escreve diálogos com uma pinta enorme, e tem cenas que são, basicamente, aulas de escrita para cinema (a cena no "La louisiane", no seu último filme, é um prodígio, e uma pérola brilhante enfiada no meio de jóias bonitas, porém foscas) e tenho pena que não se dedique mais a outras coisas como estrutura, enriquecimento dramático e procurar uma voz única. Sei que vou continuar a gostar dos seus filmes, e de me divertir com eles, mas nunca lhe terei o respeito que devo a um Paul Thomas Anderson, para não falar de divindades. Compreendo o hype que existe em redor de Tarantino, e o próprio contribui com a sua natureza egocêntrica e truculenta, mas não consigo achá-lo genial ou algo perto disso. É um tipo que viu muito cinema, e sabe aplicá-lo. Ainda espero dele uma outra obra-prima, quase 20 anos depois, mas não sei se alguma vez a verei. No entanto, a tarantella em seu redor certamente continuará, numa febre que remete ao tarantismo da Idade Média, onde cidades inteiras entravam numa febre de transe que retirava os habitantes da consciência da realidade. O fanatismo tarantinesco não anda muito longe disto, hoje em dia.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

"Argumento adaptado"


"It was the 1969 feature film Butch Cassidy and the Sundance Kid that crystallised the dream of a career in cinema for the young David Fincher. 'I saw a documentary on the making of Butch Cassidy and I saw it when I was about eight and a half. It had never occurred to me before then that movies weren't made in real time, that there was a real job to make a movie. It just seemed to me that if it took place over three days, it took three days to shoot. The documentary that I saw was narrated by the director, George Roy Hill - I think it's actually on the DVD of the 25th anniversary edition of Butch Cassidy and the Sundance Kid - and it just was kind of amusing as he talked about the different processes. He was talking about this behind the scenes footage and talking about why he chose the people and that they had to shoot stuff in slow motion to make the explosion look bigger, and all these things that I had just never thought about. The documentary talked you through the whole thing, and I was kind of like, "Wow! These are adults building full-scale balsa-wood trains, just to blow them up! How do you get involved in that?" From that point on I was thinking, "That would be a good job."'

sexta-feira, 8 de junho de 2012

There is an explanation for this, you know.


"Alien", de Ridley Scott

"Prometheus"


Uma frase que acho justificada é aquela que nos diz que não devemos voltar a um lugar onde se foi feliz. Há muitos lugares desses no cinema, e poucos que realmente, pegando em personagens e material que já abordaram, conseguem produzir qualidade. A saga "Alien", ao contrário de outras franchises, deriva boa parte do seu interesse (e diga-se a verdade, das suas falhas) à escolha de realizadores diferentes para cada uma das suas componentes. Apesar de  se apontar o seu género geral como ficção científica, "Alien", nas suas quatro partes até agora, deve muito mais ao cinema de terror, no género simples de slasher movie. O próprio Ridley Scott, que iniciou toda esta aventura com o magnífico filme homónimo de 1979, nunca negou que a sua principal inspiração fora "The Texas chainsaw massacre", e por muito que o argumento possa ter várias leituras (seja a de luta de classes, ou a da psicologia sexual que o design de H.R Giger sugere com particular deslumbramento e bom gosto chocante), o primeiro filme da saga é terror puro, numa intriga muito directa, sem desvios, onde há cadáveres para despachar, e um monstro que apelas aos nossos piores pesadelos a perseguir gente num espaço fechado. O horror é assumido, e o que distancia a obra de muitos exemplares do género que a precedem é o orçamento e um realizador com uma capacidade visual assombrosa para traduzir em imagem os arrepios que sentimos. Mesmo com a sua idade, a famosa cena de nascimento da criatura do primeiro "Alien" continua a ter o mesmo impacto de nojo e serrabulho que a fez tão marcante na sua altura. As marcas estilísticas que Ridley Scott impõe nessa obra (desde o tratamento dos espaços fechados e escuros até uma certa noção de "camionistas no espaço" que é dado ao lado humano da história) marcou filmes posteriores.



As suas sequelas variam em qualidade e tema: enquanto que o "Alien" é um filme de terror directo, o "Aliens" de James Cameron tem toda a pinta de obra bélica, colocando marines contra uma colmeia de xenomorfos, e culminando no grande tema do filme: a maternidade, confrontando Ripley, que protege uma orfã, contra a Mother Bitch Queen das criaturas; "Alien 3"tenta ser, e só o consegue a espaços, ser uma exploração místico-religiosa daquilo que o alien pode simbolizar; e "Alien ressurrection" funde as duas mães do segundo filme numa só, em Ripley, sendo uma exploração estranha das mutações humanas que Cronenberg aborda nos seus filmes. Embora falhanços em diferente grau, os dois últimos filmes nunca fizeram pensar que a saga acabara; e quando se anunciou que Ridley Scott regressaria ao espaço com "Prometheus", uma sequela que explicaria a mitologia e origem da raça "Alien", as expectativas eram inevitáveis. Depois de alguma deriva criativa, a saga regressaria às mãos do seu primeiro pai. Com um orçamento elevado, um elenco teoricamente competente e Scott a assegurar que esta era a história que ele queria contar desde o primeiro filme, nada podia correr mal.



As más notícias é que quase tudo corre. Incrivelmente, "Prometheus" transforma talvez o melhor ponto de partida de qualquer um dos cinco filmes numa obra aborrecida, vazia e incoerente. Não serei talvez o melhor dos críticos, porque é muito difícil eu achar um filme realmente mau. Principalmente, um do qual quero gostar à partida; mas ao ver o tratamento que uma temática tão fascinante como a procura das origens humanas e de Deus cruzada com a simbologia Alien sofre nas mãos de quem escreveu este filme, e também de quem o filma, é inevitável ficar desiludido. Scott já fez filmes interessantes com maus argumentos, mas aqui, parece estar em completo desnorte. Nem sequer é piloto automático, porque ao longo do filme se nota que houve cuidado estético e imaginação a funcionar, mesmo que se pareçam tomar as opções erradas em praticamente todos os momentos. Há aqui algo que não se pode explicar pelas teorias da conspiração do costume (a culpa é do estúdio!; a culpa é dos argumentistas!), e que esbarra simplesmente na falta de habilidade para cruzar temas profundos com entretenimento pipoqueiro.



Por onde começar? O argumento é uma confusão, apresentando personagens cujas acções contradizem a sua personalidade. Tem cenas que não ligam umas entre as outras, perde qualquer noção de pinta a despachar personagens para a sua morte (tirando uma cena apenas) e não tem qualquer organização interna. Tem, de facto, um excelente ponto de partida, que já referi, mas explora-o com um catrapilo desgovernado, e com tanta falta de subtileza e nível que mais valia ter escolhido "A migração dos gansos de Aachen" como pano de fundo deste filme; tecnicamente, o filme é competente, mas revela uma  falta de imaginação ao nível do design que nem as malignas 3ª e 4ª partes possuíam. Não tenho qualquer problema com os grandes cenários que revelam o mundo onde viviam aquilo que no filme se designa como "Engenheiros", mas a sua caracterização como seres gigantes sem pêlo e pálidos, alimentados a esteróides, e cuja única capacidade parece ser esmurrar e atirar gente em redor (não dizem uma única palavra, e para quem tem a importância que lhes é atribuída, não será a melhor opção) é atroz. Fez-se uma viagem longínqua no espaço para se descobrir que deus é Stone Cold Steve Austin? Está bem então; mesmo a realização de Scott não tem chama. Há, talvez, um momento realmente memorável em todo o filme (e está muito bem filmado), mas de resto, tirando alguns grandes planos que o cenário natural ajuda a tornar belos, pareceu-me desinspirado Mesmo as grandes cenas de espanto e acção do filme são questionavelmente filmadas e falham em criar excitação no espectador. Pelo menos, este que escreve. Vi, curiosamente, hoje um outro filme em que o argumento é pedestre, mas que ao contrário de "Prometheus", é um blockbuster com terror e ficção científica que nos leva numa louca montanha russa: "Lost world"; e neste filme, Spielberg não quer ter as mesmas aspirações filosóficas de Scott. Mas é melhor filme. Porquê? Porque um realizador entusiasmado consegue sempre transformar um mau argumento num filme com grande valor de entretenimento, pelo mesmo. "Prometheus" não assusta, nem excita. É um objecto belo, sim, mas inanimado.



Os actores, com "personagens", não conseguem fazer muito mais do que tentar parecer dignos. Poucos conseguem. Charlize Theron é admirável no tradicional papel desta saga de figura empresarial maquiavélica, quanto mais não seja porque existe uma corrente subterrânea na sua personagem que nos faz duvidar até da sua sanidade. Isso pode ser apenas má escrita, mas Theron tem talento o suficiente para fazê-la passar por ambiguidade; Noomi Rapace é feita a herdeira espiritual de Ripley (de maneira quase literal), mas falha, simplesmente porque a sua arqueóloga nunca parece ser consistente em termos de personalidade. Traumas e complexos que tentam torná-la multi-dimensional não são explorados, e ela fica ali, meio inerte, até que, no 3º acto decidem torná-la na nossa representante no filme. Até Idris Elba é desperdiçado, e daqui só se salva uma das únicas coisas realmente boas do filme: David, um andróide interpretado admiravelmente por u Michael Fassbender adolescente nas suas maneiras, infantil na sua curiosidade e verdadeiramente adulto na sua ambiguidade moral. A sua introdução no filme é um oásis de classe num deserto de brutidade, e mesmo quando o filme se arrasta (que são muitas vezes), a sua aparição torna todo o descalabro numa coisa com muita pinta e coolness. O filme pode ser frio, e por isso afastar-nos, mas é na coolness de Fassbender que nos reconciliamos com a qualidade que este filme poderia ter alcançado.



"Prometheus" é uma referência óbvia ao titã da mitologia grega que quis roubar o conhecimento dos deuses para entregá-lo aos homens, Foi castigado por isso. Ridley Scott é o Prometeu desta história, querendo criar um filme da saga "Alien" (mesmo que, há que reconhecer, nunca lhe chame isso, e com razão) que quer ser mais do que aquilo que nós queremos que seja. Boas intenções e ideias grandiloquentes valem de pouco quando mal executadas, e este filme prova-o. Mesmo com toda a qualidade visual a espaços e algum delírio positivo que se deve apontar, a falta de qualquer tipo de suspense e emoção, o mau argumento e uma ausência de rumo constante e contínuo fazem desta obra uma novo capítulo nas más entradas da saga "Alien". É pena. A esta altura, David Fincher deve estar em casa, a rir-se. Com menos orçamento e menos margem de manobra, ele conseguiu fazer uma coisa com mais chama do que a que este Prometeu nos entrega, mortais espectadores.

domingo, 3 de junho de 2012

I would rather take my chance out there on the ocean than to stay here and die on this shithole island, spending the rest of my life talking TO A GODDAMN VOLLEYBALL!


"Cast away", de Robert Zemeckis

Scene it: "Pleasantville"




A acusação de falta de originalidade lançada amiudemente ao cinema norte-americano é tão ridícula que apenas por preconceito e desconhecimento geral daquilo que é o cinema se pode levar a sério. Por muitos maus filmes que Hollywood e seu sistema de sub-estúdios nos dão (tanto no lado mainstream, como no lado independente), há sempre pequena novidades e pérolas que apenas a falta de informação e as mandíbulas vorazes do marketing rápido permitem escapar pelas frinchas do soalho para uma cave de has beens onde não deviam estar.
Um desses filmes é o maravilhoso "Pleasantville", uma história entre o fantástico do conto e um sonho perdido de um qualquer surrealista, que Gary Ross escreveu e realizou nos idos de 1998. Ross viria a tornar-se posteriormente num dos pares de mãos mais confiáveis do cinema americano, pegando em material bastante regular e transformando-o em obras de alguma qualidade ("Seabiscuit") ou bastante pinta (ainda não vi "The hunger games", mas tem sido difícil encontrar uma crítica negativa), mas em "Pleasantville", oferece-nos um interessante quadro de "what if...": dois jovens, David e Jennifer (interpretados por Tobey Maguire e Resse Whitherspoon), por razões várias, vêem-se transportados dos nossos dias para o mundo de uma série de televisão a preto e branco dos anos 50, onde tudo corre feliz e contente, e não há grandes abalos. Ou seja, um mundo de sonho, sem agitações, sem espasmos, sem emoções e sobressaltos. Uma paz de alma de lugar que só pode ser encontrado e construído num estúdio de televisão. Este local paralelo tem a sua existência própria, e David e Jennifer encarnam em dois personagens da série, os filhos do casal de Betty  e George Parker (Joan Allen e William H. Macy), onde devem disfarçar a sua verdadeira personalidade, a fim de manter a coerência interna da própria série; a sua chegada, no entanto, vai inevitavelmente revolucionar o quotidiano de "Pleasantville".
O choque é um tema permanente durante o filme: a transição do contemporâneo para passado; o contraste entre o pensamento moderno e os velhoes valores americanos; os estilhaços sempre presentes quando rebenta a bomba da emoção; a colisão frontal entre o nosso cérebro fechado e o mundo da arte que expande o pensamento; e, como esta cena demonstra, o poder devastador da descoberta sexual.
A cena que escolhi hoje pode ser lida de diversas maneiras, desde um piscar de olhos feminista (não só gira à volta da masturbação feminina como símbolo de libertação, mas também apresenta a mulher como aquela que possui a curiosidade de querer saber mais) até ao simples acto de descobrirmos o quanto um conhecimento devido do nosso corpo pode dar cor à nossa vida; o que é difícil negar é que a sua expressão do desejo feminino através de um arbusto ardente é não só bíblico, mas também estranhamente erótico. O sexo como fogo é uma imagem gnóstica, que Gary Ross sabiamente canaliza para o nosso subconsciente, que a entende perfeitamente. Num tom calmo e banal, uma conversa entre mãe e filha sobre sexo (algo que a primeira nunca fez) desemboca numa experiência reveladora num banheira, onde um marido aborrecido ignora, na sua cama, que na casa de banho se desenrola um momento de puro êxtase. O preto e branco (belo, diga-se) do mundo de Pleasantville, transforma-se gradualmente em salpicos de cor, espalhados na casa de banho, à media que Betty aprecia todo o bem-estar que uma massagem clitoriana pode proporcionar (ter uma boa direcção de fotografia dá nisto). Joan Allen é brilhante a interpretar a cena, colocando Betty como alguém que estava cego e vê algo que lhe esteve vedado toda a vida. De olhos bem abertos, o orgasmo é capaz até de inflamar o mundo em redor. Como se o desejo fosse pirómano, e o mundo em redor devesse temer uma mulher que toma o controlo de si mesma.

George, look at me. Look at my face. That meeting is not for me.



George Parker: You'll put on some make-up
Betty Parker: I don't want to put on some make-up
George Parker: It'll go away. It always goes away.
Betty Parker: I don't wan it to go away!

"Pleasantville", de Gary Ross