A acusação de falta de originalidade lançada amiudemente ao cinema norte-americano é tão ridícula que apenas por preconceito e desconhecimento geral daquilo que é o cinema se pode levar a sério. Por muitos maus filmes que Hollywood e seu sistema de sub-estúdios nos dão (tanto no lado mainstream, como no lado independente), há sempre pequena novidades e pérolas que apenas a falta de informação e as mandíbulas vorazes do marketing rápido permitem escapar pelas frinchas do soalho para uma cave de has beens onde não deviam estar.
Um desses filmes é o maravilhoso "Pleasantville", uma história entre o fantástico do conto e um sonho perdido de um qualquer surrealista, que Gary Ross escreveu e realizou nos idos de 1998. Ross viria a tornar-se posteriormente num dos pares de mãos mais confiáveis do cinema americano, pegando em material bastante regular e transformando-o em obras de alguma qualidade ("Seabiscuit") ou bastante pinta (ainda não vi "The hunger games", mas tem sido difícil encontrar uma crítica negativa), mas em "Pleasantville", oferece-nos um interessante quadro de "what if...": dois jovens, David e Jennifer (interpretados por Tobey Maguire e Resse Whitherspoon), por razões várias, vêem-se transportados dos nossos dias para o mundo de uma série de televisão a preto e branco dos anos 50, onde tudo corre feliz e contente, e não há grandes abalos. Ou seja, um mundo de sonho, sem agitações, sem espasmos, sem emoções e sobressaltos. Uma paz de alma de lugar que só pode ser encontrado e construído num estúdio de televisão. Este local paralelo tem a sua existência própria, e David e Jennifer encarnam em dois personagens da série, os filhos do casal de Betty e George Parker (Joan Allen e William H. Macy), onde devem disfarçar a sua verdadeira personalidade, a fim de manter a coerência interna da própria série; a sua chegada, no entanto, vai inevitavelmente revolucionar o quotidiano de "Pleasantville".
O choque é um tema permanente durante o filme: a transição do contemporâneo para passado; o contraste entre o pensamento moderno e os velhoes valores americanos; os estilhaços sempre presentes quando rebenta a bomba da emoção; a colisão frontal entre o nosso cérebro fechado e o mundo da arte que expande o pensamento; e, como esta cena demonstra, o poder devastador da descoberta sexual.
A cena que escolhi hoje pode ser lida de diversas maneiras, desde um piscar de olhos feminista (não só gira à volta da masturbação feminina como símbolo de libertação, mas também apresenta a mulher como aquela que possui a curiosidade de querer saber mais) até ao simples acto de descobrirmos o quanto um conhecimento devido do nosso corpo pode dar cor à nossa vida; o que é difícil negar é que a sua expressão do desejo feminino através de um arbusto ardente é não só bíblico, mas também estranhamente erótico. O sexo como fogo é uma imagem gnóstica, que Gary Ross sabiamente canaliza para o nosso subconsciente, que a entende perfeitamente. Num tom calmo e banal, uma conversa entre mãe e filha sobre sexo (algo que a primeira nunca fez) desemboca numa experiência reveladora num banheira, onde um marido aborrecido ignora, na sua cama, que na casa de banho se desenrola um momento de puro êxtase. O preto e branco (belo, diga-se) do mundo de Pleasantville, transforma-se gradualmente em salpicos de cor, espalhados na casa de banho, à media que Betty aprecia todo o bem-estar que uma massagem clitoriana pode proporcionar (ter uma boa direcção de fotografia dá nisto). Joan Allen é brilhante a interpretar a cena, colocando Betty como alguém que estava cego e vê algo que lhe esteve vedado toda a vida. De olhos bem abertos, o orgasmo é capaz até de inflamar o mundo em redor. Como se o desejo fosse pirómano, e o mundo em redor devesse temer uma mulher que toma o controlo de si mesma.
:)
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