sexta-feira, 8 de junho de 2012

"Prometheus"


Uma frase que acho justificada é aquela que nos diz que não devemos voltar a um lugar onde se foi feliz. Há muitos lugares desses no cinema, e poucos que realmente, pegando em personagens e material que já abordaram, conseguem produzir qualidade. A saga "Alien", ao contrário de outras franchises, deriva boa parte do seu interesse (e diga-se a verdade, das suas falhas) à escolha de realizadores diferentes para cada uma das suas componentes. Apesar de  se apontar o seu género geral como ficção científica, "Alien", nas suas quatro partes até agora, deve muito mais ao cinema de terror, no género simples de slasher movie. O próprio Ridley Scott, que iniciou toda esta aventura com o magnífico filme homónimo de 1979, nunca negou que a sua principal inspiração fora "The Texas chainsaw massacre", e por muito que o argumento possa ter várias leituras (seja a de luta de classes, ou a da psicologia sexual que o design de H.R Giger sugere com particular deslumbramento e bom gosto chocante), o primeiro filme da saga é terror puro, numa intriga muito directa, sem desvios, onde há cadáveres para despachar, e um monstro que apelas aos nossos piores pesadelos a perseguir gente num espaço fechado. O horror é assumido, e o que distancia a obra de muitos exemplares do género que a precedem é o orçamento e um realizador com uma capacidade visual assombrosa para traduzir em imagem os arrepios que sentimos. Mesmo com a sua idade, a famosa cena de nascimento da criatura do primeiro "Alien" continua a ter o mesmo impacto de nojo e serrabulho que a fez tão marcante na sua altura. As marcas estilísticas que Ridley Scott impõe nessa obra (desde o tratamento dos espaços fechados e escuros até uma certa noção de "camionistas no espaço" que é dado ao lado humano da história) marcou filmes posteriores.



As suas sequelas variam em qualidade e tema: enquanto que o "Alien" é um filme de terror directo, o "Aliens" de James Cameron tem toda a pinta de obra bélica, colocando marines contra uma colmeia de xenomorfos, e culminando no grande tema do filme: a maternidade, confrontando Ripley, que protege uma orfã, contra a Mother Bitch Queen das criaturas; "Alien 3"tenta ser, e só o consegue a espaços, ser uma exploração místico-religiosa daquilo que o alien pode simbolizar; e "Alien ressurrection" funde as duas mães do segundo filme numa só, em Ripley, sendo uma exploração estranha das mutações humanas que Cronenberg aborda nos seus filmes. Embora falhanços em diferente grau, os dois últimos filmes nunca fizeram pensar que a saga acabara; e quando se anunciou que Ridley Scott regressaria ao espaço com "Prometheus", uma sequela que explicaria a mitologia e origem da raça "Alien", as expectativas eram inevitáveis. Depois de alguma deriva criativa, a saga regressaria às mãos do seu primeiro pai. Com um orçamento elevado, um elenco teoricamente competente e Scott a assegurar que esta era a história que ele queria contar desde o primeiro filme, nada podia correr mal.



As más notícias é que quase tudo corre. Incrivelmente, "Prometheus" transforma talvez o melhor ponto de partida de qualquer um dos cinco filmes numa obra aborrecida, vazia e incoerente. Não serei talvez o melhor dos críticos, porque é muito difícil eu achar um filme realmente mau. Principalmente, um do qual quero gostar à partida; mas ao ver o tratamento que uma temática tão fascinante como a procura das origens humanas e de Deus cruzada com a simbologia Alien sofre nas mãos de quem escreveu este filme, e também de quem o filma, é inevitável ficar desiludido. Scott já fez filmes interessantes com maus argumentos, mas aqui, parece estar em completo desnorte. Nem sequer é piloto automático, porque ao longo do filme se nota que houve cuidado estético e imaginação a funcionar, mesmo que se pareçam tomar as opções erradas em praticamente todos os momentos. Há aqui algo que não se pode explicar pelas teorias da conspiração do costume (a culpa é do estúdio!; a culpa é dos argumentistas!), e que esbarra simplesmente na falta de habilidade para cruzar temas profundos com entretenimento pipoqueiro.



Por onde começar? O argumento é uma confusão, apresentando personagens cujas acções contradizem a sua personalidade. Tem cenas que não ligam umas entre as outras, perde qualquer noção de pinta a despachar personagens para a sua morte (tirando uma cena apenas) e não tem qualquer organização interna. Tem, de facto, um excelente ponto de partida, que já referi, mas explora-o com um catrapilo desgovernado, e com tanta falta de subtileza e nível que mais valia ter escolhido "A migração dos gansos de Aachen" como pano de fundo deste filme; tecnicamente, o filme é competente, mas revela uma  falta de imaginação ao nível do design que nem as malignas 3ª e 4ª partes possuíam. Não tenho qualquer problema com os grandes cenários que revelam o mundo onde viviam aquilo que no filme se designa como "Engenheiros", mas a sua caracterização como seres gigantes sem pêlo e pálidos, alimentados a esteróides, e cuja única capacidade parece ser esmurrar e atirar gente em redor (não dizem uma única palavra, e para quem tem a importância que lhes é atribuída, não será a melhor opção) é atroz. Fez-se uma viagem longínqua no espaço para se descobrir que deus é Stone Cold Steve Austin? Está bem então; mesmo a realização de Scott não tem chama. Há, talvez, um momento realmente memorável em todo o filme (e está muito bem filmado), mas de resto, tirando alguns grandes planos que o cenário natural ajuda a tornar belos, pareceu-me desinspirado Mesmo as grandes cenas de espanto e acção do filme são questionavelmente filmadas e falham em criar excitação no espectador. Pelo menos, este que escreve. Vi, curiosamente, hoje um outro filme em que o argumento é pedestre, mas que ao contrário de "Prometheus", é um blockbuster com terror e ficção científica que nos leva numa louca montanha russa: "Lost world"; e neste filme, Spielberg não quer ter as mesmas aspirações filosóficas de Scott. Mas é melhor filme. Porquê? Porque um realizador entusiasmado consegue sempre transformar um mau argumento num filme com grande valor de entretenimento, pelo mesmo. "Prometheus" não assusta, nem excita. É um objecto belo, sim, mas inanimado.



Os actores, com "personagens", não conseguem fazer muito mais do que tentar parecer dignos. Poucos conseguem. Charlize Theron é admirável no tradicional papel desta saga de figura empresarial maquiavélica, quanto mais não seja porque existe uma corrente subterrânea na sua personagem que nos faz duvidar até da sua sanidade. Isso pode ser apenas má escrita, mas Theron tem talento o suficiente para fazê-la passar por ambiguidade; Noomi Rapace é feita a herdeira espiritual de Ripley (de maneira quase literal), mas falha, simplesmente porque a sua arqueóloga nunca parece ser consistente em termos de personalidade. Traumas e complexos que tentam torná-la multi-dimensional não são explorados, e ela fica ali, meio inerte, até que, no 3º acto decidem torná-la na nossa representante no filme. Até Idris Elba é desperdiçado, e daqui só se salva uma das únicas coisas realmente boas do filme: David, um andróide interpretado admiravelmente por u Michael Fassbender adolescente nas suas maneiras, infantil na sua curiosidade e verdadeiramente adulto na sua ambiguidade moral. A sua introdução no filme é um oásis de classe num deserto de brutidade, e mesmo quando o filme se arrasta (que são muitas vezes), a sua aparição torna todo o descalabro numa coisa com muita pinta e coolness. O filme pode ser frio, e por isso afastar-nos, mas é na coolness de Fassbender que nos reconciliamos com a qualidade que este filme poderia ter alcançado.



"Prometheus" é uma referência óbvia ao titã da mitologia grega que quis roubar o conhecimento dos deuses para entregá-lo aos homens, Foi castigado por isso. Ridley Scott é o Prometeu desta história, querendo criar um filme da saga "Alien" (mesmo que, há que reconhecer, nunca lhe chame isso, e com razão) que quer ser mais do que aquilo que nós queremos que seja. Boas intenções e ideias grandiloquentes valem de pouco quando mal executadas, e este filme prova-o. Mesmo com toda a qualidade visual a espaços e algum delírio positivo que se deve apontar, a falta de qualquer tipo de suspense e emoção, o mau argumento e uma ausência de rumo constante e contínuo fazem desta obra uma novo capítulo nas más entradas da saga "Alien". É pena. A esta altura, David Fincher deve estar em casa, a rir-se. Com menos orçamento e menos margem de manobra, ele conseguiu fazer uma coisa com mais chama do que a que este Prometeu nos entrega, mortais espectadores.

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