domingo, 17 de junho de 2012

O movie jockey



Penso não me enganar muito quando afirmo que Quentin Tarantino se tornou, nos últimos vinte anos, num dos nomes mais reconhecíveis, na área da realização, para o cidadão comum. Existem poucos realizadores cujo nome signifique algo para o espectador que não lê com regularidade sobre a 7ª arte e que ainda se encontrem em actividade. Lembro-me de Spielberg, Scorsese... Talvez George Lucas, Coppola, Almodovar... Não sei se muitos mais. O culto de Tarantino adquire, aliás, uma dimensão extra, porque se é apenas um nome para o simples espectador, revela-se extenso e profundo naqueles que fazem do cinema mais do que um passatempo. Ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste.



É difícil fugir a esta discussão. "Tarantinesco" é um adjectivo que se tornou um valor em si mesmo, e a quantidade de filmes que imitou o estilo do realizador (personagens palavrosos, que se perdem em conversas da treta; laivos de coolness em homenagens cinéfilas que se confundem com pastiche; a utilização de música retro na banda sonora; um certo bas-fond criminal como pano de fundo) é longa e torna a sua influência e impacto inquestionáveis. No entanto, uma questão raramente levantada, e que tem toda a pertinência perante o status de Tarantino actualmente, é a da nossa memória como espectadores. É curioso reparar que boa parte dos seus fãs têm, na verdade, uma memória cinéfila bastante curta, e conhecem pouco do passado do cinema. Compreendo que, para esses, a abertura de um filme como "Inglourious basterds" pareça genial e refrescante. Recordo-me de ter dado por mim a sorrir quando os acordes de Morricone encheram a paisagem alpina que inicia a saga revisionista de QT pela 2ª Guerra Mundial. O tom da fita era de claro western spaghetti, roubando até algumas noções de plano a Sergio Leone; eu sorri, porque era um cruzamento bem pensado. Não é algo particularmente original na obra de Tarantino ("Kill Bill", em ambos os volumes, é basicamente uma preparação para o cerimonial de homenagem ao realizador italiano e de passagem, ao brilhantismo genial do próprio Morricone) que atinge o seu cume em "Inglourious..." e promete continuar na assunção directa de que o próximo "Django unchained" é um western, mas continua ser uma ideia engraçada, que diverte quem tem algum conhecimento de cinema (o que é o meu caso).



Quem, porém, nunca viu um filme tão obrigatório como "The good, the bad and the ugly", vai achar genial e originalíssimo. É o problema que Tarantino representa também para os críticos de cinema. Gostar dele é um acto de reconhecimento da homenagem à mesma arte que adoram; detestá-lo parece picuinhas e ridículo, quando a acusação é falta de originalidade. Na verdade, quase todos os realizadores roubam uns aos outros. Apenas os mais fracos conseguem ser apanhados, afinal. Brian de Palma, que é um dos grandes virtuosos do cinema moderno, é basicamente uma enciclopédia de citações. Consegue-se reconhecer Hitchcock em todas as suas obras (mesmo em "Mission Impossible), e a cena mais conhecida do seu clássico "The untouchables" é retirada de "O couraçado Potemkine", que é coisa para ter mais de 70 anos. Os "furtos" de Tarantino não são originais, e muito bom génio já o fez. No entanto, as citações que de Palma usa na sua obra parecem integrar-se de uma forma mais orgânica no seu estilo. Não é descabido que este seja também um dos artífices que o próprio QT mais gosta. Não sendo frutas da mesma árvore, consideram o cinema como a sua literacia, o que é, aliás, apanágio de qualquer realizador que começou a trabalhar depois de 1970. Lendo o livro "Scorsese sobre Scorsese", vi-me apanhado numa teia de referência cinéfilas que nunca julguei possíveis na obra do genial italo-americano. A carreira de Scorsese, se quiséssemos interpretar assim, seria basicamente uma destilação de horas passadas em salas de cinema e ecrãs de televisão a consumir e comer imagens para criar um estilo. Há, no entanto, uma diferença, entre este método e aquilo que Tarantino efectua. O primeiro criou um estilo absolutamente próprio e distintivo, onde as influências que o moldaram são reconhecíveis, mas de forma subtil. Ver "Taxi driver", por exemplo, não é como estar a digerir uma obra urbana de Antonioni, ou um filme de tensão e paranóias de Powell e Pressburger. O que ali está é Scorsese, com obsessões próprias, temas que lhe dizem tudo e um sentido visual que é seu.
Um filme de Tarantino é outra coisa. Um filme de Tarantino é um mashup.



Não há nada de errado com isso, claro, São opções artísticas e de carreira; é minha opinião que desde "Pulp fiction" que Quentin Tarantino não fez um qualquer grande filme: "Jackie Brown" é demasiado cool para inspirar empatia; "Kill Bill" é um épico partido ao meio, onde a primeira parte é uma enciclopédia de cinema asiático, e a segunda começa como a primeira acaba, e a meio acaba por, estranhamente, criar alguns dos melhores momentos da sua carreira, quando QT decide deixar de brincar aos sabichões; e "Inglourious Basterds" é um divertidíssimo delírio cinéfilo, sem qualquer outra consequência mais séria que não seja descobrir a excelência de Christopher Waltz. O que separa toda esta obra de "Pulp fiction" é o seu carácter de faz de conta extremos, uma manta de retalhos de outros filmes (e em casos extremos e muito pouco de homenagem, diálogos inteiros) que entretêm mesmo os mais analfabetos de cinefilia, mas falham em criar uma obra dramática consistente. A "The bride" do binómio "Kill Bill" é um espectro de badasserie, e pouco mais. Tarantino cria-lhe os dramas, posiciona-os no sítio certo, mas nunca os faz explodir. Aflora-os aqui e ali, como se quisesse justificar os seus excessos mais gratuitos com algo que não está bem lá. É um milagre que Uma Thurman consiga arrancar uma excelente interpretação de um personagem tão inexistente, mas isso é uma prova do seu talento como actriz, e, também, de Tarantino se tornar um director de actores competente nos seus próprios filmes quando filma aquilo que escreve.



O estilo movie-jockey de Tarantino, como lhe costumo chamar, é algo de que já falei várias vezes, e lamento. O homem escreve diálogos com uma pinta enorme, e tem cenas que são, basicamente, aulas de escrita para cinema (a cena no "La louisiane", no seu último filme, é um prodígio, e uma pérola brilhante enfiada no meio de jóias bonitas, porém foscas) e tenho pena que não se dedique mais a outras coisas como estrutura, enriquecimento dramático e procurar uma voz única. Sei que vou continuar a gostar dos seus filmes, e de me divertir com eles, mas nunca lhe terei o respeito que devo a um Paul Thomas Anderson, para não falar de divindades. Compreendo o hype que existe em redor de Tarantino, e o próprio contribui com a sua natureza egocêntrica e truculenta, mas não consigo achá-lo genial ou algo perto disso. É um tipo que viu muito cinema, e sabe aplicá-lo. Ainda espero dele uma outra obra-prima, quase 20 anos depois, mas não sei se alguma vez a verei. No entanto, a tarantella em seu redor certamente continuará, numa febre que remete ao tarantismo da Idade Média, onde cidades inteiras entravam numa febre de transe que retirava os habitantes da consciência da realidade. O fanatismo tarantinesco não anda muito longe disto, hoje em dia.

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