domingo, 23 de novembro de 2014

"Interstellar"



Um truque complicado de cinema é querer conciliar, num filme de ficção científica, o sentimentalismo aberto e a cerebralidade característica de alguns exemplares do género. O mais próximo que tivemos de uma obra que casasse estas duas ilhas separadas terá sido "A.I", porque era o fruto da mente de dois dos artífices mais eminentes de qualquer uma das correntes de cinefilia: Steven Spielberg, no caso da primeira; e Stanley Kubrick, no caso da segunda. Em todas as grandes obras do género, ou se opta por uma via ou, ou se segue pela outra. não quero dizer com isto que a emoção costuma fugir da ficção científica: mesmo um cineasta como Tarkovski, que, à maneira russa, trata o coração com todo o distanciamento e subtileza que caracterizam aquilo que faz do seu cinema um dos mais fascinantes, tem o seu "Solaris", que dentro de toda a metafísica e ciência, é na verdade um sublime e sensível filme sobre perda e luto. No entanto, tudo isto é tratado com algum distanciamento e sempre sem abrir o coração ao vento. Sem me alongar mais noutro exemplo, deixo exemplo: "Blade Runner", como quase todas as obras futuristas ou espaciais de Ridley Scott, é uma obra de fascínio futurista e de ideias, raramente de relações inter-pessoais; a saga "Star Wars" é só wish fulfillment; "Close encounters of the third kind" e "Minority Report", os dois melhores sci-fi de Spielberg, por entre todas as ideias e valores, estão muito menos interessados em questionar e perguntar e discutir do que em emocionar o espectador. Ideias e emoção conseguem casar no espaço da ficção científica, mas uma cede o lugar à outra.


Um exemplo que propositadamente deixei de fora foi o de "2001", visto que será a obra com a qual o último filme de Christopher Nolan, "Interstellar", é mais vezes comparado. Na aparência, existem motivos: ambos tratam de exploração espacial; ambos envolvem máquinas de inteligência artticifial; ambas apresentam a exploração do espaço com fascínio, deixando no ar a ideia de que é este o pináculo da evolução humana; e por fim, os dois filmes partilham plenas oportunidades de lançar os espectadores em horas de teorização e discussão. Deixe-me por isso dizer desde logo que "Interstellar" tem muito pouco a ver com a obra-prima de Kubrick. Aliás, em termos de tom, resultado final e até intenções, são dois filmes muito, muito diferentes. Tudo vem do que se discute acima: Kubrick, sábio como poucos realizadores, apresenta o seu espectáculo, uma reviravolta calma de tempo e espaço, com ideias e conceitos subentendidos e sugeridos, nunca explicados. O filme deve a sua imortalidade não só aos revolucionários efeitos visuais de Douglas Turnbull, mas à ambiguidade e abertura de interpretação do seu final e dos seus intermédios. Fica-se de boca aberta admirando a valsa das estrelas, mas no final, as dezenas de pormenores do filme, desde a filosofia à própria Física que permite a explicação possível do que vimos, é deixada ao nosso critério. Outra coisa que é deixada de fora é qualquer tipo de história emocional, de relação entre personagens. Estes são um meio para atingir um fim, que é a promoção da ideia subjacente a "2001" e sublinhando a relação entre homem e máquina. 


Em "Interstellar", tal não existe. No coração do filme, está a história de um pai e uma filha que faz pulsar o filme emocionalmente como poucas obras de Nolan. Arriscava-me a dizer que com excepção de "Memento", raramente um filme seu possuiu uma intriga humana tão interessante. Spielberg teve "Interstellar" nas mãos antes do britânico, e o seu efeito faz-se sentir neste aspecto da narrativa, que é um dos melhores: ancora tudo o que vemos a seguir, desde o aspecto de exploração espacial (que é muito positivo: aliás, a caracterização do Homem como um ser curioso e aventureiro é muito à antiga, e coloca o astronauta quase como o navegador da Expansão portuguesa, que em "Interstellar" oferece literalmente novos mundos ao mundo) até à possibilidade de o mundo acabar porque já não se produz comida. No meio de tudo isto, a família do herói do filme, Cooper, interpretado por Matthew McConnaughey, está unida contra a desgraça, mas o pai é chamado mais uma vez ao Espaço, para descobrir um novo planeta onde os terrestres possam viver. Isto prejudica a sua relação com a filha mais nova, Murph, e quando Cooper salta para o espaço com os seus companheiros de viagem, é neste amor (e ódio) entre pai e filha que o filme brilha como um Sol, porque dá-lhe, de facto, uma complexidade que não rasa a lamechice e transforma tudo o mais de científico e prosaico numa empatia com quem vê. No entanto, Nolan, como em quase todos os seus blockbusters, carrega nas explicações científicas, na tentativa da aula de Física à iminência de um novo fenómeno cósmico que o espectador precisa perceber, embora, a bem do filme, até nem precise; e esta necessidade de explicação e de palavras excessivas retira poder e qualidade a um filme que tem tudo para ser enorme, e parece não querer. Há fitas que falham por terem erros científicos descabelados. É estranho ver esta prejudicar-se pelo motivo exactamente oposto. Este problema não trava apenas o ritmo de "Interstellar": retiram ao espectador o prazer de especular e de pensar, de conversar, de intuir. Ou seja, para um filme que tanto apregoa os valores da ciência e a sua importância (e isso é importante, e é uma boa propaganda), acaba por tirar bastante do debate. Podem-me argumentar que o quarto de hora final irá lançar a discussão durante muito tempo, mas eu digo que aquilo não bate certo com o que se viu antes: é um Deus Ex-Machina de argumento (ou seja, uma artimanha que cai do nada) para resolver uma série de problemas que são buracos na intriga, sob o pretexto de ser inteligente e fascinante. Sem revelar o que é, admito que é um conceito muitíssimo vem esgalhado, mas perfeitamente desnecessário e confuso nas horas. A satisfação do lado emocional do filme, parecendo que não, é sacrificado para mais um conceito de Física Teória deitado na arena; e isto, embora aceite que agrade a alguns, não favorece "Interstellar" em quase nada, e quer fazer passar por esperto o que não é grandemente de esperteza.


Dito isto, é um filme com coisas muito boas. A intensidade das cenas de acção é sempre de louvar em Nolan, e com Wally Pfister a fazer trampa como realizador, convoca-se Hoyte van Hoytema, que proporciona ao filme, e ao espaço cósmico, tons e cores fantásticas. A equipa de efeitos visuais consegue uma representação do Universo que não só é fiel,como hipnotiza e maravilha (e aqui, quem viu "Tree of life" não pode deixar de recordar as sinfonias espaciais que surgem a certa altura no filme de Malick para maravilhar/adormecer (risquem a que não vos interessa) o espectador). No meio dos predicados técnicos, duas interpretações surgem como símbolos humanos no meio de toda a teoria: uma é a de Jessica Chastain, num papel que não posso divulgar, e que no pouco tempo que surge (e no pouco que lhe dão de personagem) marca o filme de tal forma que dá vontade que tenha mais umas cenas de ciência só para vê-la; e sobre todos os outros, Matthew McConnaughey, fascinante como quase sempre nos seus filmes recentes, humano até à medula, ingénuo e desenvolto, emocional e o protagonista de cenas onde muitos se perderiam na parafernália lógica e matemático, mas onde ele é um bastião de integridade e humanidade. Uma, em particular, depois de um dos pontos baixos do filme, onde a câmara se fixa seguramente um minuto na sua cara e na sua expressão vale quase por si o preço do bilhete; e fez-me lamentar, noutras cenas posteriores, que Christopher Nolan não se tivesse deixado fascinar antes pelo actor texano, pela sua personagem que representa o que há de verdadeiramente humano e genuíno nesta história, em vez da aula científica a que se entrega desnecessariamente. Tem de se louvar a apetência (e a certo ponto, coragem) para Nolan criar um filme desta dimensão. No entanto, existe aqui um marco da ficção científica para ser feito, o o realizador inglês acaba por fugir disso,


No fim de contas, é um filme que considero razoável, e a certos espaços, bom. Embora acabe por se enrodilhar desnecessariamente (será que Nolan começa a sentir que o rótulo de realizador de blockbusters cerebrais se colou em demasia e ele se tornou numa franchise pessoal?), o coração que bate bem aberto em "Interstellar", raro de se ver na filmografia de Nolan, não me faz perder a esperança de que nos futuro, seja em três dimensões ou em cinco, surja do britânico uma nova obra de excelência e fascínio que me faça regressar ao tempo em que com "Memento" e "Insomnia" (e acrescento, se calhar, "The prestige") fazia a minha mente voar que nem um foguetão rumo ao espaço sideral onde o cérebro se pode alimentar sem sentir o coração traído.

sábado, 4 de outubro de 2014

"Gone girl"



Mantenho há algum tempo a opinião de que a obra geral de David Fincher é das mais incompreendidas do cinema actual, e até mesmo por aqueles que o adoram. As referências às suas obras seminais "Seven" e "Fight club" é recorrente, mas parece que chegado ao século XXI, a carreira do autor de São Francisco entra numa espécie de faz de conta onde os filmes não conseguem ser obrad-primas ou referências. Uma ou outra alma caridosa ainda concede o título a "Zodiac" (e com toda a justiça), mas fica-se por aí e não se atreve a ir mais longe. Acho que tal se deve não a um declínio de talento do norte-americano, mas sim de foco: depois de ter criado uma reputação de esteta supremo, capaz de estilo a rodos, vira a partir de "Zodiac" o seu foco para a narrativa pura e dura, e é nesse campo que se tem tornado num dos cineastas norte-americanos definitivos dos últimos anos, como um dos últimos guardiões de um certo cinema de tradição clássica que Hollywood tem perdido. Na verdade, partilha essa mudança na carreira com outro dos grandes nomes saídos da década de 90, Paul Thomas Anderson, que tem optado pelos estudos de personagem e dissecação pura de vícios e personalidade que é herdeira dos anos 60 e 70. Fincher, no entanto, usa a narrativa para se tornar não no cínico cuja luz parece por vezes emitir, mas num humanista puro: ele entende a natureza humana a partir de um ponto de vista imparcial, muito raramente julgando os seus personagens e preferindo entregar ao espectador esse papel. É, afinal, um dos nossos maiores prazeres: condenar ou absolver alguém cuja história nos é contada; e quase sempre falhamos, sem no entanto deixarmos de nos sentir atraídos por isso. Torna-se muito difícil encontrar alguém verdadeiramente vilanesco nos seus filmes, e mesmo as personagens que ocupam esse espaço com mais evidência, como o John Doe de "Seven", têm espaço para se fazer entender, e ganhar empatia; e estamos a falar de um sociopata cruel e sádico.

Não surpreende então que "Gone girl", jogo de fachadas e de moralidade relativa, seja um enorme filme nas mãos de David Fincher. Não vou falar aqui sobre a história, visto que a surpresa dos twists faz parte do jogo perverso que Fincher nos propõe, mas no geral é sobre um marido que se vê acossado pela polícia e pela imprensa após a sua mulher desaparecer no dia do seu quinto aniversário de casamento. É o que interessa para se localizarem no que se passa, e o resto é uma desmontagem da instituição do casamento, dos papéis que representamos todos os dias, do choque das expectativas contra a realidade, do papel corrosivo e destruidor dos media e acima de tudo, uma viagem pela repugnância num tom de humor negro supremo. O cinema de Fincher desconstrói, desmonta, desmistifica. Aponta um espelho à condição humana e diverte-se nas suas mentiras e contradições, desde o narrador anónimo de "Fight club", que no fundo que ser Tyler Durden, ou o Nicholas van Orton de "The game", destruído peça a peça por um jogo diabólico."Gone girl" é guerra dos sexos em esteróides, um conflito que divide a nossa empatia em bocadinhos muito pequenos. Em certos pontos, é a definição perfeita do que seria a comédia romântica de Fincher... Mas com sexo a rodos e cunnilingus como sinónimo da comunhão entre um casal. Ou seja, como as pessoas se comportam, e é o comportamento humano que guia toda a história. O filme questiona também a destruição dos sonhos e também da ideia do que deve ser a mulher no casamento, hoje em dia. Afasta-se o cliché da servilidade, e entra um novo conceito, o de mulher cool, revelado numa das melhores sequências do filme. Esta habilidade para juntar entretenimento pipoqueiro e conseguir, em simultâneo ser um retrato afiado do que é a vida em casal, e o mundo individual, no século XXI, é o que espanta neste filme, como se para Fincher o carrossel não dipensasse a biblioteca.


Mesmo sem extravagância, o filme é belo e excelentemente filmado pela fotografia de Jeff Cronenweth; os enquadramentos precisos de Fincher dão aos planos aparentemente normais um fôlego estético superior e servem na perfeição o seu principal mestre, a narrativa. Ben Aflleck, com um charme untuoso e gabarola, encarna na perfeição Nick Dunne, e se não é o actor certo, é pelo menos o vaso onde a nossa percepção melhor vê a imoralidade, e a certa altura desespero, de Dunne quando os jornalistas o rodeiam e lhe fazem incontáveis perguntas, Já vimos este filme. Apesar da solidez de todo o elenco secundário (onde Carrie Coon, que faz da irmão de Nick Dunne, se destaca pela suas tiradas), é Rosamund Pike quem comanda as atenções, numa daquelas performances que caminha entre dois mundos morais muito diferentes, e que tem mais camadas do que uma cebola: é difícil sair com uma opinião formada em definitivo, mas a certeza é que nunca é menos do que fascinante, na sua força e fragilidade, em toda a sua auto-justificação e desilusão. É um gosto de se ver.

É no plano inicial que o filme se define: Rosamund Pike surge como uma loura hitchcockiana numa ambiguidade que é tradicional em Fincher. Não olha para nós, dirige a sua atenção para um elemento fora do ecrã; mas está inquisitiva, sedenta ou simplesmente calma. Não sabemos. Não saber é, aliás, o mote do filme: o quanto, mesmo num casamento, não conhecemos o outro, e como a nossa pequena perversão curiosa destrói e mói e corrói. "Gone girl" é essa montra das fragilidades do mundo, que disfarçada de simples thriller do subúrbio, aguça as garras e arrasta a cortina das aparências. Uma coisa não é uma coisa, e podem ser três, e acreditar pode ser o maior dos erros. No meio de tudo isto, uma certeza: está aqui um dos filmes mais vitais de 2014, e uma daquelas obras que, como "Fight club" e "Zodiac", precisará de mais uns anos para que os cépticos se apercebam do que falharam no primeiro visionamento. Enquanto o grande cinema existir, Fincher nunca estará em parte incerta, mas sim na linha da frente.


domingo, 27 de abril de 2014

"The unknown known"



Em 2003, Errol Morris fez "The fog of war", um belíssimo documentário onde entregou a cadeira do confessionário "inter-rotrónico" a Robert McNamara, que durante anos foi secretário de estado da Defesa em duas presidências norte-americanas. Do confronto entre factos da sua carreira e as resposta às perguntas do realizador, resultava um retrato contraditório, humano e em última instância, daquela lucidez que atinge alguns homens no final da sua vida, quando olham para trás e começam a pensar que as suas grandes vitórias talvez tenham sido erros no grande esquema da moral humana. Longe de ser uma denúncia política, era uma entrevista equilibrada, onde as entrelinhas são o fundamental para entender o que se está de facto a passar. 10 anos depois, Morris pareceu dedicar-se a uma sequela espiritual com "The unknown known, onde convidou o vilanesco Donald Rumsfeld a enfrentar igual desafio. O produto final, no entanto, está longe de ser tão produtivo e imediato quanto o referido documentário, pois fica a ideia de que McNamara tem pelo menos alguma coisa a que podemos chamar consciência e a noção do lugar que a História contemporânea lhe reserva. Talvez em virtude de uma natureza egocêntrica, e também de um distanciamento muito curto, Rumsfeld não possui nenhuma dessas qualidades. Temos então um raro objecto documental, onde o mais importante é aquilo que não está lá, apesar da utilização de alguns exemplares das centenas de milhar de memorandos escritos durante as suas regências em cargos públicos no governo norte-americano.Com um sorriso cínico, um comportamento de quem se acha o mais inteligente da turma e uma vontade de querer reescrever e ditar a História pelo seu próprio discurso, Rumsfeld emerge como alguém decidido a frustrar os planos do entrevistador com uma atitude passiva-agressiva, e uma ideia que define toda a política externa norte-americana desde sempre: merda acontece, a culpa não é nossa. Morris deixa Rumsfeld falar, e usa os jornais como contra-ponto da narrativa ficcional com quem Rumsfeld tenta convencê-lo, e nesse sentido este documentário tem muito mais a ver com "Tabloid" do que com "The fog of war": entre cada sorriso e tirada pretensamente espirituosa, o desespero opaco e fugidio de Rumsfeld escapa uma e outra vez do confronto com a verdade e do seu papel na História. "The unknown known" talvez não seja o filme explosivo que muitos queriam ver, mas é uma obra excelentemente realizada (com um cuidado estético que esperamos de Morris e que o tornam num homem à parte no panorama documental actual), com uma fantástica banda sonora de Danny Elfman e uma fidelidade aos seus princípios que me atrai sempre a ver cada novo filme do realizador. Na impossibilidade de obter a verdade directamente, Morris trata o discurso oblíquo de Rumsfeld na sua medida certa: a imagem recorrente de num oceano sem limites, que é substituído por um pântano, retratam a tempestade perfeita de tretas com que somos bombardeados e toda a expedição norte-americana ao Médio Oriente. Algo que, trinta anos antes, Rumsfeld tinha até previsto. O desconhecido, para Rumsfeld, tornou-se conhecido antes de sê-lo.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

"The grand budapest hotel"



É raro encontrar hoje em dia filmes onde consigamos sentir que há um realizador a divertir-se à grande, e felizmente que fui ver um desses espécimes: "The grand Budapest Hotel" é a prova de que algures no mundo idiossincrático e muito pessoal de Wes Anderson, existe um folgazão realizador, capaz de encontrar em si a habilidade de construir um entretenimento que ultrapassa as barreiras nas quais a crítica normalmente fecha o seu trabalho (e o filme já fez 40 milhões só nos Estados Unidos...). Juntamente com "The fantastic Mr. Fox", esta é a obra mais descontraída e virada para a pura diversão do cinema da carreira do texano. Anderson tem muitos tiques formalistas que por vezes se tornam irritantes, mas depois da experiência  falhada de "The life aquatic de Steve Zissou", onde esses mesmos tiques atingiram o grau de overdose tal que distraíam de outras coisas boas do filme, o realizador pareceu encontrar um ponto de equilíbrio que nos deu três belos filmes de seguida. Ainda que nenhum deles tivesse atingido a excelência daquelas que, na minha opinião, são as suas melhores obras ("Rushmore" e "The royal Tennenbaums"), são boas notícias.

"The Grand Budapest Hotel" reforça essa ideia, com a sua construção narrativa como se fosse uma boneca russa onde narradores estão enfiados dentro de narradores, hoteis têm vários estratos e camadas e até uma organização secreta com mais caixinhas dentro de outras. A história gira em torno de um MacGuffin em forma de quadro que é uma paródia e a partir daí, assistimos a um filme preciso do ponto de vista do enquadramento e do estilo, mas absolutamente anárquico e delirante na história, interpretações e tudo o que mais que nos contorce a rir na cadeira de cinema. O elenco todo é um parece escolhido a dedo (com alguns habitués) para que essa experiência seja total, e mesmo Ralph Fiennes, que nos habituámos a ver como um actor britânico sério, cria em Gustave H., o concierge da instituição que intitula esta obra, um dandy que cairia bem num romance queirosiano, com o seu gosto por criaturas de duas pernas, os seus pormenores de estilo apurado e também essa capacidade quase portuguesa que é a de se querer dar bem com toda a gente... mesmo quando toda a gente tem sempre algo de odioso dentro de si. Fora de toda a folia, há uma melancolia que se entende, quando sabemos que os escritos de Stefan Zweig inspiraram o argumento: "The Grand Budapest Hotel" é tão obviamente nostálgico de um tempo que já passou e não regressa, um tempo onde o cosmopolitismo, o sentido individual e o bom gosto eram a norma e não um assomo irritante de alguns, que só se compreende quando a obra de Wes Anderson está presente na nossa mente: todos os seus filmes celebram o passado, destilando uma visão idealizada do mundo, dos tempos e das formas. Quando, no final do filme, Anderson permite que a realidade choque com o seu ideal, oferece-nos um sabor agridoce que é pouco comum nos seus filmes, pelo menos desta forma. Gustave H. era um baluarte de civilização na altura em que a Europa era engolida pela barbárie, da mesma maneira que "The Grand Budapest Hotel" é um filme sofisticado cuja popularidade parece querer provar duas coisas: que Wes Anderson é um cosmopolita em contacto com o seu mundo e que nós, como espectadores, não somos tão bárbaros quanto os multiplex nos julgam. E isto faz-me lembrar um poema romântico, mas o senhor Gustav ficou com o livro.

sexta-feira, 14 de março de 2014

"True detective"


O sentimento constante quando "True detective" se desfia à frente dos nossos olhos é a de estarmos a assistir a algo maior do que o Homem, com a Lousiana a ser ao mesmo tempo palco do mundo e boca do inferno e onde pirâmides de galhos, e hastes de veado são as marcas de um mal que parece primitivo e sem um início ou um fim específico: está, habita e nunca pode ser desalojado. É por isso surpreendente que, ao final de 8 capítulos e um último episódio que chega a ter ressonâncias míticas bem para lá do gótico americano e do pulp que são a base da grande intriga criminal da série (o labirinto do minotauro é uma referência que me parece evidente), se chegue à conclusão que "True detective" foi sempre sobre os pequenos planetas chamados Rust Cohle e Martin Hart. Perseguindo os defeitos do homem estão dois homens com defeito: um que se pensa conhecer/se bem demais, o outro que não se conhece e ainda não o sabe. É na tensão entre eles, e a sua resolução final, que "True detective" adquire os contornos míticos que passam ao lado daquilo que o espectador pensa procurar. Uma década de mistérios de televisão intrincados levam-nos a pensar no mais complicado quando vemos uma história: procurar pistas mínimas, ligações, conjecturas. Esta série é bem mais simples do que isso, e no entanto é da complexidade inerente ao que somos que retira a sua força motriz. Cohle e Hart percorrem o percurso do herói, mas sempre com a noção de que não são heróis, e apenas escravos de uma vontade maior que um pode atribuir a Deus, mas que outro relega, uma vez e sempre, ao dever de um ser humano que escolhe para si o sacrifício de remir, através do afastamento da sociedade, o Mal que grassa. Isto sem nunca presumir que é mais do que esse mundo contaminado. O niilismo ateu de Rust Cohle torna-o na figura crística mais estranha dos últimos anos, e seria o protagonista perfeito dos filmes iniciais de Martin Scorsese.

"True detective" escolhe um modelo pouco comum na televisão norte-americana: é escrita apenas por um homem (o excelente e perspicaz Nic Pizzolato), realizada por outro (num trabalho superlativo na captação do espírito da Louisiana em película, e que supera largamente quase tudo o que se faz na televisão actualmente, Cary Fukunaga é o verdadeiro detective da série, procurando sempre nos lugares e nos objectos aquilo que não se pode descrever com palavras), é um exemplo a seguir no que à qualidade diz respeito, entregando o seu rumo à visão de dois homens. É, no entanto, outro par que enraíza toda a história: Woody Harrelson interpreta o homem comum que comummente se perde ao querer ser tão normal que se esquece do que o torna animal e sorvedor de vida. É um papel complicado, mas Harrelson enverga essa armadura cheia de mossas com estatura e a procura de redenção que estará no fim de um labirinto; Matthew McConnaughey torna o papel de Rust Cohle icónico. Como se fosse um pregador do Sul enxertado no Bayou, McConnaughey é menos um corpo e mais um espírito desencarnado há muito, que navega na suas palavras e sente o mundo e o seu peso como se fosse o titã Atlas. É o mais próximo da taciturna, e no entanto poética, figura do cavaleiro negro que procura a luz que temos desde que Frank Black partiu com a filha não se sabe bem para onde na terceira temporada de "Millennium". Está tudo no olhar perdido,mas faíscante, que empresta a Cohle, na estranha coreografia do corpo quotidiano, na cadência e desnecessária elaboração do discurso: um homem preso em si e que foge disso e da realidade. Se quisermos ser mais simples, onde Harrelson é banalmente brilhante, McConnaughey é a essência faíscante desse brilhantismo.

No final, regressa-se à história mais simples de todas, a primária que lançou todo o nosso amor pela narrativa como arte de contar uma história: o Bem contra o Mal, a luz contra as sombras; e no meio de tantos finais surpresa previstos, a única reviravolta é a de dois homens que uma vez cegos, voltam a ver depois de um mergulho no poço de breu. Quando de lá saem, contemplam as estrelas, e descobrem a verdade de ser detective: a justiça vai-se conseguindo e não é absoluta; mas desde que se acendam candeeiros suficientes, os detectives tornarão o mundo um pouco menos labiríntico para si próprios e para nós, que nele habitamos.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Óscares 2014: previsões e opiniões


Não me recordo de haver um ano onde adivinhar o vencedor da categoria de Melhor filme fosse tão complicado. Numa corrida a três, entre "Gravity", "12 years a slave" e "American Hustle", temos um trio de opções completamente diferentes em estilo, tema e até público-alvo. Se "American Hustle" não será, parece-me, uma escolha onde se premeie, de facto, o melhor, qualquer uma das restantes opções será justa, embora todos os textos de que leio a apoiar o filme de Steve McQueen fale mais da "importância" de se escolher este filme sobre a escravatura e menos sobre a sua superioridade como obra de cinema ou não. No ano passado, com "Lincoln", não me recordo deste dilema a surgir com tanta ferocidade. Isto prova até que ponto os Óscares são, de facto, um jogo de aparências.
Algumas categorias estão mais tremidas do que outras. Não vou abordar todas, pois deixo no final um link para o meu boletim de voto virtual que preenchi no site oficial dos Oscars. Deixarei não só as minhas previsões, como a minha escola de preferência pessoal, que, como já expliquei aqui, raramente coincide com quem eu acho que vai ganhar. Comecemos rapidinho e depois, mais por extenso

MELHOR FILME ESTRANGEIRO

VAI GANHAR: "The hunt"
MERECIA GANHAR: "The hunt"
ALTERNATIVA: "The great beauty"

MELHOR DOCUMENTÁRIO

VAI GANHAR: "The act of killing" (na verdade, tenho a impressao que o feel good "20 feet of stardom" está a conquistar os corações dos votantes e que um dos filmes mais impressionantes dos últimos anos pode sair derrotado. Acompanharia velhas tradições oscarianas)
MERECIA GANHAR: "The act of killing"
ALTERNATIVA: "20 feet of stardom"

MELHOR ANIMAÇÃO

VAI GANHAR: "Frozen"
MERECIA GANHAR: Não vi nenhum...
ALTERNATIVA: "The wind rises"

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA

VAI GANHAR: Lupita Nyongo, "12 years a slave" - Esta é, talvez, a categoria de interpretação mais tramada da noite. É praticamente impossível adivinhar quem vai ganhar, entre Nyongo e Jennifer Lawrence, que têm recolhido os prémios durante esta temporada. Num cenário alternativo, até pode surgir uma divisão de votos e uma terceira via, com qualquer uma das restantes nomeadas
MERECIA GANHAR: Sem ter visto Julia Roberts, entregava o prémio a June Squibb, que está fantástica em "Nebraska" e assenta bem na definição de actriz secundária
ALTERNATIVA: Jennifer Lawrence, "American Hustle", embora acho que fosse escandaloso, não só porque a performance é apenas mediana, como por alguém tão novo, em dois anos seguidos, ganhar prémios por interpretações que nada são de extraordinário. Era o hype levado ao extremo, e muito mau para quem ainda procura alguma credibilidade nestes prémios

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO

VAI GANHAR: Jared Leto, "Dallas Buyers Club" - Não me oferece qualquer dúvida: tem ganho tudo o que há para ganhar, e a interpretação é de facto extraordinária.
MERECIA GANHAR: Jared Leto
ALTERNATIVA: Jonah Hill, "The wolf of Wall Street"

MELHOR ACTRIZ

VAI GANHAR: Cate Blanchett, "Blue Jasmine" - Desde que surgiu que é a favorita e a sua aura vencedora não se tem desvanecido e tem resistido a tudo, desde golpes de teatro da equipa publicitária de "American Hustle", até à sede publicitária da família Farrow. Para além disso, ajuda que a sua interpretação seja, de facto, épica.
MERECIA GANHAR: Cate Blanchett, "Blue Jasmine", e sem ser esta, Judi Dench, em "Philomena"
ALTERNATIVA: Amy Adams, "American Hustle"

MELHOR ACTOR

VAI GANHAR: Matthew McConnaughey, "Dallas Buyers Club" - Tem-se tentado criar um suspenses desnecessário em redor desta categoria, principalmente pelo movimento "A hora de di Caprio", que deve desconhecer que até Al Pacino só ganhou à 8º nomeação (entre as vezes que foi ignorado, contam-se "The godfather 1 e 2", "Dog day afternoon" e "Serpico"... Com todo o respeito para com Leo, mas é toda uma outra divisão). O texano tem isto no bolso, e tudo alinhado a seu favor: as pessoas gostam do filme, a sua interpretação é reconhecida como corajosa e até gimmicky, para quem não percebe nada de representação, e "True detective" é o anti-Norbit.
MERECIA GANHAR: Tirando Christian Bale, qualquer um dos nomeados tem uma performance superlativa, e há para todos os gostos: McConnaughey merece, de facto, o Oscar, mas Leonardo di Caprio, em "The wolf of Wall Street"  é magnético e tabém extraordinário
ALTERNATIVA: Chiwetel Ejiofor, "12 years a slave"

MELHOR REALIZADOR

VAI GANHAR: Alfonso Cuáron, "Gravity" - O favorito, por tudo o que ganhou, e acima de tudo pela monumentalidade do seu trabalho. Todos os nomeados têm coisas a seu favor, mas só um criou, basicamente, tudo o que lhe permitiu concretizar o seu projecto tal como o via na cabeça, e esse alguém é Cuáron
MERECIA GANHAR: Sem ser Cuáron, Martin Scorsese por "The wolf of Wall street". Sei que a campanha por Steve McQueen tem os seus apoiantes, mas eu voto pelo filme em si, e não por ficar bem dar um Oscar a um realizador negro só porque é pioneiro. Se formos por aí, Cuáron será o primeiro latino a receber
ALTERNATIVA: Steve McQueen, "12 years a slave"

MELHOR FILME (Os meus)

Na minha opinião, se fossem apenas cinco nomeados, estes seriam os meus filmes do ano:

"The wolf of Wall Street"
"Her"
"Gravity"
"Nebraska"
"Captain Phillips"

MELHOR FILME

VAI GANHAR: "Gravity" - O bom senso diz para apostar em "12 years a slave", mas não consigo deixar de me inclinar para "Gravity", porque é o tipo de filme que tem ganho: segue-se com o coração, não choca ninguém e no caso deste ano, há de facto muita razão para premiar esta obra inovadora e que não envergonha ninguém como escolha
DEVIA GANHAR: "The wolf of wall street" - É simplesmente o melhor filme dos Óscares deste ano, e sério candidato a melhor de 2013.
ALTERNATIVA: "12 years a slave"



terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

2 ou 3 coisas que aprendi sobre prever Óscares


Embora veja a cerimónia dos Óscares em directo desde o ano 2000 (tendo falhado apenas em 2002, e mesmo assim escutei a emissão radiofónica), só me iniciei a sério no jogo na temporada 2005/2006. Pareceu-me o ano ideal: quase todos os filmes passíveis de serem nomeados eram de boa qualidade, no mínimo, e longe pareciam os dias em que "Shakespeare in Love", "Titanic" ou "Chicago" embaraçavam a Academia ao ganharem a estatueta de Melhor filme. Não que sejam todos maus espécimes (acho grande piada a "Chicago"), mas o meu paladar cinéfilo desenvolvia-se e esse ano trazia-nos "Brokeback mountain", "Munich", "Capote... Claro que, como devem estar recordados, o vencedor foi "Crash" e voltámos à mesma ladainha de sempre. No entanto, o bichinho da previsão ficou dentro de mim, e desde aí que lanço, invariavelmente, os meus bitaites não só sobre a qualidade dos nomeados, mas sobretudo acerca da sua identidade. Como digo muitas vezes, não preciso de ver os filmes para saber quem ganha, e muitas vezes até atrapalha: a primeira regra que se aprende nesta brincadeira é a de que devemos deixar as emoções de fora. Não consigo fazê-lo, tenho-o descoberto, e por essa razão tenho-me afundado, com consciência, nalguns momentos épicos: "The social network", "Lincoln", "The curious case of Benjamin Button"... Falhanços previsíveis, mas se gosto realmente de um filme não me consigo desligar dele. Ponto.
Claro que, andando nisto há quase dez anos, vão-se aprendendo alguns truques e notando tendências que tornam a previsão acertada independente do gosto ou mesmo de se ver as obras a concurso. É isso que gostava de partilhar convosco, se tiverem paciência para me aturar nesta roleta anual.


1 - A única coisa fiável são as "Guilds": Quase todas as categorias dos Óscares premeiam um trabalho específico dentro de um filme, e cada um desses trabalhos pertence a um sindicato, as conhecidas "Guilds". Estas atribuem prémios no espaço de dois meses antes de acontecerem os prémios da Academia e como muitas vezes os seus corpos de voto partilham bastantes membros com os da Academia, pode-se ter uma ideia da tendência de voto. Nos últimos anos, a juntar a isto, temos os BAFTA, os prémios do cinema britânico, que têm mostrado ser um bom indicador principalmente para as surpresas. Há uns anos, ficou toda a gente (incluindo eu) de boca aberta com a vitória de Tilda Swinton em Actriz Secundária, por "Michael Clayton", mas os BAFTA tinham-na premiado, e foram o único percursor a fazê-lo. Alguns videntes do Óscar usam também os prémios da crítica, mas cada vez mais isso é relativo: "The social network", por exemplo, foi o único filme a ganhar todos os prémios da crítica (nacional e de cada estado) nos EUA, e depois chegaram à noite principal e gaguejou "The king's speech". O mesmo se pode dizer em relação aos Globos de Ouro. Nos últimos dois anos, só por duas vezes acertaram "Melhor filme" e foi sempre em anos onde era bastante óbvio quem ia ganhar ("Slumdog millionaire" e "Argo"). Confiem nas "Guilds", embora não sejam completamente infalíveis. A mais importante para a categoria de melhor filme costuma ser a DGA, relativa aos realizadores. Habitualmente, e a não ser num raro ano de divisão filme/realizador, quem ganha o DGA, ganha melhor filme.


2 - O princípio "Está na hora": Todos os anos surge esta maneira de prever vencedores, e há convicção por todos os lados de que esta máxima é inevitável. Não é. Que o diga Peter O'Toole, que nunca ganhou um Oscar em competição e teve 8 tentativas, incluindo a derradeira em 2007, num dos mais flagrantes "Está na hora" que me lembro. Nesse ano, aliás, Julie Christie também teve esse momento, e vejam lá, viu a estatueta fugir numa vitória surpresa de Marion Cotillard (que, mais uma vez, foi prevista pelos BAFTA). O princípio "Está na hora" só funciona se estiverem reunidas duas condições: uma interpretação que seja realmente boa (de preferência com sotaque/alteração física/personagem real) e não exista na categoria nenhuma outra hipótese evidente de vitória. Isto aconteceu na primeira forma deste princípio (a "já foi nomeada tantas vezes, alguma vez tem de ganhar") há uns anos com Kate Winslet. Depois de 5 nomeações anteriores, foi finalmente com "The reader" com a britânica ganhou (merecidamente) a estatueta. Mas quem estava nomeada com ela? Anna Hathawaye Melissa Leo, nas suas primeiras nomeações; Meryl Streep, a quem na altura não tinha sido concedido o indulto de poder ganhar uma nova estatueta; e Angelina Jolie, por um filme onde tinha estado bem, mas cuja expressão nos Óscares era zero. É com base neste princípio que estão a tentar forçar a vitória de Leonardo di Caprio este ano, mas o caso é completamente diferente. Para já, a categoria de melhor actor está extremamente competitiva. Há várias actuações excelentes, e será difícil a uma concentração de votos em Leo. Para compor tudo, o favorito, Matthew MacConnaughey, está a ter um ano perfeito: todos os filmes em que entrou foram triunfos, tem ganho todos os prémios (menos o BAFTA; mas o filme não podia ir a concurso), os discursos de vencedor têm sido de topo, o papel alia uma transformação física a uma intensidade emocional inegável e neste momento, na HBO, rola a melhor campanha de marketing que o seu talento podia ter: a série "True detective". Não vejo como outro actor para além deste possa levar o Oscar, mas cada um com os seus métodos de adivinhação.
O princípio "está na hora" tem duas outras encarnações: uma é a já clássica "O veterano", que funciona habitualmente nas categorias de actor secundário e actriz secundária (nos últimos 15 anos, por exemplo, temos Alan Arkin, Morgan Freeman, Chris Cooper, Jim Broadbent e Chistopher Plummer: tudo actores respeitados, que nunca tinham ganho, e finalmente foram recompensados); a outra é a "merecias ter ganho o ano passado, vamos dar-te um este ano", que levou Colin Firth à glória em 2010 (depois de lhe ter sido negado o Oscar na interpretação superior em "A serious man", onde perdeu para Jeff Bridges, um actor que já tinha sido nomeado várias vezes... sem ganhar) e ofereceu a única nomeação da carreira a Paul Giamatti, em "Cinderella man", num papel ridículo, depois de ter sido ignorado escandalosamente no ano anterior pelo extraordinário trabalho em "Sideways". Há um oposto ao "Está na hora" que é o "Já não há hora" e que se aplica a vencedores póstumos: Heath Ledger é o mais conhecido, mas também Peter Finch, em "Network", venceu pouco depois de ter falecido. James Dean e Spencer Tracy também forma nomeados depois de morrerem, num efeito sentimental que muitas vezes atinge a Academia de diversas formas. Isso leva-nos à terceira dica.


3 - Os votantes gostam de "sentir: É mentira que os Óscares não sejam sobre a qualidade. Há poucos filmes verdadeiramente tamancos que tenham ganho o prémio de melhor filme. Mesmo obras mais razoáveis, como "Argo no ano passado, são filmes bem feitos e com a sua pinta. No entanto, nunca serão obras-primas. Alguns dos grandes escandalos da história dos Óscares nascem deste factor: "Pulp Fiction", "Goodfellas", "The social network", "L.A Confidential"... Entre o filme de qualidade e o filme que faz sentir, o sentimento ganha quase sempre. A não ser que seja uma obra "importante", quer no tema quer no resto. É isso que torna a corrida de melhor filme deste ano a mais difícil de prever dos últimos anos. Pode ir para qualquer lado. No entanto, quando em dúvida, optem pela obra mais fácil de sentir, e não necessariamente o filme de melhor qualidade. Esta é a gente que entregou prémios a "No country for old men", mas também a "Driving miss Daisy".


4 - Nunca confiar em documentários e filmes estrangeiros: De longe, e à distância, estas são as duas categorias mais imprevisíveis dos Óscares. Ao contrário das técnicas e de representação, não há percursores fiáveis e até este ano, o método de votação é diferente. Por isso, muitas vezes, os opinadores do Óscar seguem habitualmente o critério do prestígio crítico, mas invariavelmente essa tendência está condenada a falhar. A partir do ano 2000, na categoria de filme estrangeiro, e só para criar uma base estável de modas, só por 3 vezes o candidato mais óbvio da categoria venceu: "Crouching tiger, hidden dragon" e "Amour" estavam nomeados também para melhor filme, e "A separation" venceu quase por exclusão de partes. De resto, passar os olhos pela lista de nomeados notáveis derrotados é perceber o perigo em que se entra quando se tenta seguir a noção de que o queridinho crítico vence sempre: "Amores Perros", "Le gout des autres", "Amélie", "Hero", "Downfall", "El laberinto del fauno", "Entre les murs", "Waltz with Bashir", "The Baader-Meinhof complex", "Un prophet"", "White ribbon"... Um fartote. O que muita gente se esquece é que quem vota nos Óscares não são os críticos, nem especialistas em filmes: são espectadores como todos nós, mais ou menos tamancos. Habitualmente, entre o complicado e o simples, vão pelo simples.Os três filmes que mencionem como excepções desde o ano 2000 partilham isso: são bem filmados, compreensíveis a gente de uma cultura diferente e tem um punch emocional muito forte e universal. O mais indicado, quando se prevê esta categoria, é ir pelo filme mais universal, e as vitórias dos últimos anos têm provado isso. Por isso é que, enquanto muita gente está a prever o favorito e premiado em Cannes "The great beauty, de Itália, eu estou virado para o dinamarquês "The hunt" e o belga "The broken circle breakdown".
A mesma coisa em relação aos documentários. Principalmente nos dez anos mais recentes e o boom comercial do cinema documental, esta categoria tem sido tão focada como as restantes, e qualquer cinéfilo digno desse nome chega à cerimónia conhecendo a maioria dos nomeados. Como em "melhor filme estrangeiro", a tentação é ir pelo mais conhecido e prestigiado. Erro crasso: entre derrotados desde 2004, temos Banksy, Werner Herzog, Michael Moore ou Alex Gibney, e mesmo Errol Morris, o melhor documentarista norte-americano da actualidade, não conseguiu ser nomeado pelos seus dois últimos filmes. É muito complicado prever não só nomeações, como vencedores (eu que o diga: dois nomeados que considerava certos, neste ano, foram com os cães, e fiquei a esfregar a cabeça depois disso... Eu e muita gente...). Aqui, não há exactamente um critério. Vão pelo documentário que vos pareça mais acessível. Al Gore ganhou com aquilo que é, basicamente, uma apresentação powerpoint em "An inconvenient truth" e "March of the penguins" é um documentário simplista narrado por Morgan Freeman. Estas coisas não seguem uma lógica, mas este é o truque mais próximo que vos posso dar. Este ano, por exemplo, tenho o feeling que vai ganhar "20 feet of stardom", um documentário feel good passado no mundo da música negra norte-americana, mas não consigo deixar de meter "The act of killing", que é das coisas mais marcantes que vi nos últimos anos. Em última instância, façam escolhas que não vos envergonhem e fiquem com elas até ao final.


5 - A importância da Montagem - A categoria mais crucial da noite para saber o vencedor de "Melhor filme" é montagem. Mesmo que o filme seja do mais básico a esse nível, a vitória neste categoria virá porque anda de mão dada com o consenso geral da qualidade do filme. Em toda a história dos Óscares, só nove filmes ganharam "Melhor filme" sem uma nomeação em "Melhor montagem", e a razão talvez seja mais simples do que parece: boa parte da qualidade de um filme está naquilo que se faz na sala de montagem. Por isso, sendo a relação entre realizador e editor tão estreira, normalmente a importância de ambos como percursores da qualidade do filme é também um facto. Mais de metade dos filmes que ganharam o Óscar de "Melhor filme" venceram nesta categoria. Quando acontecem excepções, na maior parte, o filme que vence não está nomeado para a categoria principal (aconteceu, por exemplo, há dois anos com "The girl with the dragon tattoo"). Por isso, quando estão a prever o vencedor aqui, tenham em atenção que podem ter de correlacioná-lo com o vencedor da noite. E isso também se aplica à minha última dica.


6 - A ligação realizador/filme: Não há como negar: quem vence melhor realizador, vence melhor filme. Mesmo os trabalhos de realização mais simplórios e pedestres conseguiram ser reconhecidos simplesmente porque o resultado final ganhou "melhor filme". Há anos que exemplificam esta tendência ao ponto da raiva: em 1976, por exemplo, ganhou John G. Avildsen, por "Rocky", que também viria a vencer nesse ano (vide emoção vs qualidade, na dica 3). Deixou como derrotados, por exemplo, Martin Scorsese, por "Taxi Driver"; Alan J. Pakula, por "All the president's men"; e Sidney Lumet, por "Network". Em 1982, Richard Attenborough ganha por "Gandhi", que viria a ser o vencedor final (e acentuar a tendência do filme prestígio britânico como íman de Óscares). Os derrotados, desta vez, incluíam Sidney Lumet, desta vez por "The verdict"; Steven Spielberg, por "E.T"; Sydney Pollack, por "Tootsie"; e Wolfgang Petersen, por "Das boot". As vitórias de Tom Hooper e Muchel Hazanavicius, no últimos anos, foram uma tal bofetada na cara do bom gosto que isto só se percebe pela lógica interna destes prémios. Não se esqueçam disto quando escolherem as vossas previsões nestas duas categorias. Marimbem-se para a lógica e para a qualidade: a divisão entre os vencedores de filme e realização acontece muito, muito raramente. Nos últimos 25 anos, aconteceu apenas 3 vezes. É um dado estatístico que não se pode ignorar.

Outras dicas tenho para dizer, mas isto já vai longo e esta semana vão enjoar de ouvir e ler sobre este tema. Por agora, espero que tenha sido minimamente interessante e que tenham sobrevivido até aqui. A minha promessa fica feita de que as minhas previsões aparecerão por aqui algures quinta-feira. Até lá, apertem os cintos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Carecas dourados 2014



Amanhã, por volta da uma e meia da tarde, serão anunciadas as nomeações dos Óscares de 2014. Há algum tempo que não havia uma corrida tão imprevisível em todas as categorias, e a começar pelas próprias nomeações. Em actor secundário, por exemplo, só consigo estar certo de uma das minhas apostas: de resto, está tudo tão fluido que as coisas se podem baralhar ainda antes de serem dadas as cartas. Isto mostra bem como este ano, sem um cabecilha aparente, vale tudo e não há padrão. Desde filmes "importantes até obras de estilo, passando por obras dominadas pelos efeitos visuais e filmes clássicos, há muito por onde escolher e ninguém que se possa assumir como favorito. Tudo isto tornará as minhas previsões uma quase certeza de falhanço e certamente que esta edição de 2013/2014 será aquela em que mais me espalharei ao comprido. Não vi a maior parte dos concorrentes, mas como já expliquei muitas vezes, não é preciso quando se tratar de prever nomeados. É um facto triste, mas que se tem concretizado uma e outra vez. Por fim, como sempre deixo o alerta: parte das minhas previsões são emocionais. Posto isto, vamos começar:

MELHOR FILME

"12 years as a slave"
"American Hustle"
"Gravity"
"Captain Phillips"
"The wolf of Wall Street"
"Nebraska"
"Her"
"Dallas Buyers club"
"Inside Llewyn Davis"
"Saving Mr. Banks"

A grande dificuldade é saber quantos filmes serão nomeados. Eu prevejo nove, como nos últimos anos. A ordem pela qual nomearia seria esta, por isso no cenário de 9, "Saving Mr. Banks" saltaria. Não vejo como os primeiros 5 possam mudar: picaram o ponto em praticamente todas as guildas. Os restantes 4 são aqueles que me parecem ter um apoio mais generalizado tanto da crítica, como da indústria.

MELHOR ACTOR

Chiwetel Ejiofor, "12 years as a slave"
MatthewMcConnaughey, "Dallas  Buyers Club"
Bruce Dern, "Nebraska"
Robert Redford, "All is lost"
Leonardo di Caprio, "The wolf of Wall Street"

Os dois últimos lugares estão ainda em discussão. Parece-me que facilmente tanto Christian Bale, em "American Hustle", como Tom Hanks, em "Captain Phillips" aqui podem entrar. Mas aqui, vou-me deixar guiar pela emoção e por duas das melhores composições do ano

MELHOR ACTRIZ

Cate Blanchett, "Blue Jasmine"
Emma Thompson, "Saving Mr. Banks"
Sandra Bullock, "Gravity"
Judi Dench, "Philomena"
Amy Adams, "American Hustle"

Tirando Amy Adams, tudo irá bater certo e seguro. Se Adams saltar, será devido a Meryl Streep, em "August: Osage county". Nunca se deve subestimar Meryl Streep. Mas ainda assim, pelo apoio geral de "American Hustle" e porque Adams é também um camião TIR dentro da Academia, dou vantagem à ruiva

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO

Jared Leto, "Dallas Buyers Club"
Michael Fassbender, "12 years as a slave"
Daniel Bruhl, "Rush"
James Gandolfini, "Enough said"
Barkhad Abdi, "Captain Phillips

Alternativa: Bradley Cooper, "American Hustle"

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA

Lupita N'Yongo, "12 years as a slave"
Jennifer Lawrence, "American Hustle"
June Quibb, "Nebraska"
Julia Roberts, "August: Osage County"
Opran Winfrey, "The butler"

Alternativa: Sally Hawkins, "Blue Jasmine"

MELHOR REALIZADOR

Steve McQueen, "12 years as a slave"
Alfonso Cuáron, "Gravity"
David O. Russell, "American Hustle"
Martin Scorsese, "The wolf of Wall Street"
Spike Jonze, "Her"

Alt.: Paul Greengrass, "Captain Phillips"; Alexander Payne, "Nebraska"
No ano passado, esta categoria foi o maior "shocker" de todos, e este ano é, talvez, a mais difícil de acertar. Os três primeiros nomes estão seguros, parece-me. Os restantes dois podem mudar. Scorsese é sempre uma aposta firme e Spike Jonze é o meu gosto pessoal, mas não tiro da cabeça que Alexander Payne vai por aqui dar a cara

MELHOR DOCUMENTÁRIO

"Blackfish"
"The act of killing"
"Stories we tell"
"The square"
"Tim's vermeer"

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO

"Frozen"
"Wind rises"
"Monster's university"
"Despicable me 2"
The croods"

MELHOR FILME ESTRANGEIRO

"The great beauty" (Itália)
"The hunt" (Dinamarca)
"The grandmaster" (Hong Kong)
"Omar" (Palestina)
"Two lives" (Alemanha)

Quanto a argumentos e categorias técnicas, aqui ficam as tendências que seguem o que eu preveria. Amanhã, cá estaremos para chamar nomes àqueles manhosos! :D