Paul Thomas Anderson, desde que surgiu, tem sido apontado como o herdeiro de uma série de grandes realizadores, desde Scorsese a Robert Altman. Se isto, por um lado, atesta o seu enorme talento como cineasta, por outro reduz o valor da sua originalidade, e coloca-lhe um peso acrescido de ter de manter a comparação. Nas críticas que leio a "There will be blood", Anderson volta a ser comparado a outro grande realizador da História do cinema, John Ford, e aí eu pensei: o que faz este homem para que seja equiparado a 3 artistas tão diferentes no seu estilo e nas suas temáticas? Está claro que isso é a prova definitiva da polivalência de Anderson como homem do cinema. "Boogie nights", "Magnolia" e "Punch-drunk love" têm como única ligação concreta passarem-se em S. Fernando Valley, a zona da cidade de Los Angeles onde normalmente se desenrolam os seus filmes.
"There will be blood" pode até passar-se em S. Fernando Valley, mas uns 100 anos antes de todos os filmes de Anderson terem lugar. Estamos na California de 1892 e acompanhamos um prospector chamado Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) em plena actividade de exploração. Os primeiros 20 minutos são absolutamente mudos e de uma economia de caracterização de personagem absolutamente notável: quando Plainview cai num poço de extracção, parte uma perna e encontra um pedaço de prata. Julgamos que a sua maior pressa é ir ao médico. Claro que sim, mas só depois de se arrastar até à cidade mais próxima e se dirgir ao Gabinete de Prospecção para registar a sua descoberta.
Plainview é um maníaco do sucesso e da riqueza; é profundamente obcecado com os seus objectivos; e não parece haver grande espaço para sentimentos no seu interior. Está lançado o mote para um longo de estudo de personagem que dura duas horas e meia. Seguimos a carreira de Daniel e do filho adoptado H.W, que seguem comprando terras onde se situam lençóis de petróleo, por toda a Califórnia. É nesse percurso que encontram aquele que é o outro grande personagem da história, Eli Sunday, auto-imposto pastor evangélico, que funda um pequeno culto numa aldeia onde se encontra um largo lençol de petróleo que Plainview quer explorar. O confronto entre estes dois personagens é o que faz avançar a segunda metade do filme e coloca, simbolicamente, duas forças em confronto: o capitalismo, representado pela sede de riqueza de Plainview, e a religião, simbolizada por Eli Sunday. No entanto, ambos são colocadas desvirtuadas: Plainview vai a extremos na sua ânsia, seja a extorquir aldeões das suas terras, seja pelo seu desprezo pelos outros apenas por serem os outros, onde chega a dizer que a razão pela qual quer se rico é para nunca mais ter de falar com ninguém. De facto, este é um homem cujos únicos lampejos de humanidade são vistos através da sua relação com o filho, mas isto apenas ao início. À medida que o filme se desenrola, sentimos que perdemos Plainview por completo, para um buraco mais escuro que o petróleo que procura.
Eli é a religião manipulativa, um falso profeta com manias de grandeza, mas que se auto-ilude. Usa as pessoas para conseguir ser alguém na vida e vê em Daniel uma fonte de dinhieor que poderá elevar a sua Igreja da pequenez de um lugar perdido no meio do deserto. O confonto de vontades entre estes dois homens, na luta pela influência nas pessoas de Little Boston e posterior uso mútuo daquilo que ambos têm de melhor, ressoa obviamente dois dos grandes pilares do espírito americano, o direito de cada um a enriquecer e de acreditar no que seja, até a maior aldrabice. Anderson consegue, assim, um raro exemplar de épico intimista, grande nas ideias e temas, pintado a pinceladas largas, mas nunca se afastando do seu centro de gravidade, que é Daniel Plainview.
Falar do trabalho de Day-Lewis neste filme é uma imensa redundância. Vão ler aqui o que já leram noutros lados: o homem é o maior, ponto final. Trabalha muito pouco, mas quando aparece, pega em personagens que nunca ninguém se lembrou de criar, transfigura-se e dá performances tão boas que nos fazem querer levantar a meio e bater palmas pelo que estamos a ver. Paul Dano é que merece palavras elogiosas e tem recebido poucas, pois é difícil desviar a atenção do Day-Lewis show. Dano consegue ser carismático como pastor e patético como personagem, um paradoxo que nunca deixa de ser credível. Para além disso, nunca perde o pé quando tem de se confrontar com "the man" himself. No entanto, a interpretação de Lewis quase faz esquecer aquilo que torna este filme verdadeiramente poderoso: Paul Thomas Anderson. Naquele que é o seu melhor filme (e com a carreira deste homem, é muito dizer isto), Anderson, que é habitualmente palavroso e utiliza uma fartura de gimmicks visuais, consegue ser seco, profundamente visual, de uma economia de planos absolutamente impresssionante. Vê-lo utilizar apenas um plano para uma cena quando realizadores de menos categoria utilizariam 5 ou 6 deixa um cinéfilo abismado. Este filme prova, a quem tinha ignorado "Magnolia" e o muito subestimado "Punch-drunk love" que Anderson está a caminho de se tornar num dos grandes da história do cinema recente. Só alguém de categoria terminaria um largo épico numa cena que desenrola entre dois personagens numa sala, com quase um quarto de hora de diálogo. A sério.
Eis um filme que, pelo menos assim a frio, não é um dos melhores filmes da História do Cinema. Para lá caminhará. Não pertenço à categoria de fãs hiperbólicos de Anderson. Mas "There will be blood" é desde já uma das grandes obras cinematográficas do século XXI, sem dúvida, um filme com uma pulsão barrativa fora do comum e um daqueles personagens fascinantes capazes de criar culto no Youtube e de permanecer connosco muito depois de o filme terminar. E sim, também vocês vão sair da sala com vontade de gritar "I drink your milkshake! I drink it up!!!".
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